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As luzes da delação premiada

As luzes da delação premiada

A colaboração do delator oferece ao investigador a oportunidade de iluminar o labirinto da corrupção e descobrir os melhores caminhos para desvendá-lo

DELTAN DALLAGNOL
04/07/2015 - 00h03 - Atualizado 04/07/2015 00h48

Corrupção e impunidade estão intimamente relacionadas. Alguns dos “papas” do estudo da corrupção no mundo, como Robert Klitgaard e Rose-Ackerman, chegam a ilustrar a decisão de uma pessoa em se corromper através de uma fórmula, em que tem destaque não só o montante da punição, mas também a probabilidade de a punição ocorrer. Cá entre nós, a punição de um corrupto é bastante improvável, especialmente porque a corrupção é um crime extremamente difícil de descobrir e comprovar. Aqui entra, em nossa jornada contra a corrupção, a figura da colaboração premiada, que é uma técnica especial de investigação e, simultaneamente, uma estratégia de defesa, notabilizada na Lava Jato. Ela jamais é suficiente para condenar alguém, mas pode ser um excelente começo para a investigação. Veremos, a seguir, que a colaboração é um importante instrumento que otimiza o uso de recursos públicos, maximiza a punição de corruptos e o ressarcimento dos cofres públicos, bem como desagrega organizações criminosas. Observaremos, ainda, quanto é infundada a principal crítica que se faz ao sem emprego na Lava Jato.

GUIA Agentes da PF levam para a prisão diretor da Odebrecht. Delação ajuda a buscar provas dos esquemas de corrupção  (Foto: Rafael Arbex/Estadão Conteúdo)

De início, deixemos claro que, num mundo ideal, todos deveriam ser responsabilizados, integralmente, por todos os crimes cometidos... ou mesmo, no mundo ideal, não responsabilizaríamos ninguém, porque sequer crimes existiriam. O fato é que lidamos com o mundo real. Neste mundo, a corrupção é sussurrada entre quatro paredes. Corruptor e corrupto fazem um pacto de silêncio. Não há testemunhas. O ato corrupto é disfarçado de ato legítimo, que pode ser defendido com argumentos técnicos, ou, por vezes, é um ato discricionário que seria perfeitamente legal se seu motivo não fosse o pagamento da propina. A própria propina é paga de modo disfarçado, por meio de sofisticados métodos de lavagem de dinheiro que dão aparência lícita aos pagamentos e dificultam ou impedem o rastreamento do dinheiro.

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No mundo real, se o número de investigadores e promotores já é insuficiente para dar conta dos casos criminais comuns e visíveis – é a “cifra negra da criminalidade” –, quanto mais para investigar crimes praticados às escondidas e com alta sofisticação. Mesmo quando aparece algum indicativo do crime, os maiores estudiosos mundiais da produção da prova ensinam que há infinitas possibilidades investigativas diante de um pedaço de prova. Em uma realidade bastante limitada, como um jogo de tabuleiro tal qual “detetive”, em que há poucas pessoas, lugares e instrumentos possivelmente envolvidos em um crime, há mais de 600 diferentes possibilidades que poderiam ser investigadas. É humanamente impossível dar conta da investigação de todas as possíveis frentes.

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Dentro desse contexto, a colaboração de um investigado funciona como um guia, um catalisador, que otimiza o emprego de recursos públicos, direcionando-os para diligências investigatórias com maior perspectiva de sucesso. É como se o investigador caminhasse dentro de um labirinto e a cada passo deparasse com muitos caminhos possíveis. A colaboração é uma oportunidade para que o investigador espie por cima do labirinto e descubra quais são os melhores caminhos, isto é, aqueles com maior probabilidade de sucesso na angariação de provas. Em um documento apreendido com um investigado na Lava Jato, por exemplo, constava a seguinte anotação: “Pgto to Gr@ + Gr! Dedznd partGr@KA * 127,000”. Muitas conjecturas poderiam ser feitas para explicar essas anotações. A partir da colaboração de um investigado, foi possível não só compreender o que significavam – basicamente, valores de propinas e sua divisão –, mas também, o que é mais importante, buscar provas que comprovassem materialmente o pagamento de tais propinas.

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Além disso, a colaboração tem um importante efeito multiplicador, que chamamos de “efeito dominó” ou “efeito cascata”. Quando alguém que é investigado por um dado crime decide colaborar, ele trará informações e provas não apenas da ocorrência do crime originalmente investigado e de quem são seus autores, mas também de diversos outros crimes e de que foram seus perpetradores, os quais eram até então desconhecidos. Isso confere um efeito exponencial às investigações, ainda mais quando alguns dos delatados decidem, igualmente, colaborar. Esse efeito dominó é muito importante na compreensão do que aconteceu no caso Petrobras, em que o valor das propinas foi multiplicado 238 vezes ao longo da investigação. De fato, a corrupção originalmente investigada girava em torno de R$ 26 milhões, e passou a ser de R$ 6,2 bilhões. Fenômeno semelhante aconteceu em relação ao número de pessoas e empresas investigadas, que cresceu vertiginosamente, o que permitirá uma responsabilização de um grande número de pessoas por inúmeros novos fatos, maximizando também o ressarcimento aos cofres públicos.

EFEITO DOMINÓ O delator Paulo Roberto Costa, na CPI da Petrobras. A delação desagrega as organizações criminosas (Foto: André Dusek/Estadão Conteúdo)

A colaboração traz, ainda, outros benefícios. O ressarcimento promovido pelo colaborador, que de outro modo aguardaria o fim de uma guerra judicial por mais de década, passa a ser imediato. Na Lava Jato, até agora, já foram devolvidos aos cofres públicos, por colaboradores, mais de R$ 750 milhões, algo sem precedentes no Brasil. Além disso, a colaboração desonera a Justiça, facilitando o trâmite do processo em face do colaborador. Colaborações podem também ter efeitos positivos na atuação de outros órgãos públicos, como no caso Banestado, em que elas viabilizaram lançamentos tributários pela Receita Federal que superaram a casa de R$ 5 bilhões. Por fim, a existência de um sistema de incentivo à colaboração é um importante fator desagregador no seio de organizações criminosas. Ao minar vínculos de confiança, a possibilidade de colaboração torna a empreitada criminosa mais arriscada, desestimulando-a.

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O emprego da colaboração deve se cercar de algumas cautelas. Primeiro, porque as penas do colaborador são diminuídas na medida de sua colaboração. De fato, no mundo ideal, a pena do criminoso deveria ser integral. Contudo, como se observou, cede-se algo para que se possa obter muito mais, o que jamais seria alcançado no mundo real. Os benefícios concedidos ao criminoso, como incentivo para a colaboração, devem ter por parâmetro o alcance de benefícios superiores em favor da sociedade. Para que essa equação funcione de modo adequado, a colaboração deve ser feita quando estão presentes três pressupostos: o reconhecimento de culpa, o ressarcimento, na medida do possível, do dano, bem como a entrega de fatos e provas novos, potencializando a responsabilização e o ressarcimento em relação a terceiros.

Em segundo lugar, o uso da palavra do colaborador deve ser feito com bastante cautela. Ela jamais será suficiente para, por si só, condenar alguém. É, normalmente, um ponto de partida para aprofundar medidas de investigação. Propicia, se verossímil, uma suspeita fundada para que se possa, num passo seguinte, por exemplo, obter autorização judicial para coletar documentos em endereços de criminosos, analisar operações financeiras ou examinar a licitude da evolução do patrimônio daqueles que foram apontados como possíveis criminosos. Essas medidas tendem a alcançar novas provas que, estas sim, podem ser suficientes para uma condenação.

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Apesar dos evidentes benefícios, há quem critique o uso da colaboração na Lava Jato. A crítica mais notória, e absolutamente infundada, é de que as prisões seriam usadas como instrumentos de pressão para obter colaborações. Se isso fosse verdade, as prisões teriam sido julgadas absolutamente improcedentes pelos tribunais, quando o que temos visto é sua manutenção na imensa maioria dos casos. As prisões foram pedidas, decretadas e mantidas da primeira à Suprema Corte porque estavam presentes os requisitos das prisões. Ponto. Além disso, embora os acordos tenham sido feitos pelo Ministério Público, em todos os casos a iniciativa foi dos investigados, que os buscaram como uma estratégia de defesa, o que igualmente se contrapõe à suposição de que há pressão para réus colaborarem. Some-se que houve acordos feitos diretamente perante a Suprema Corte, o que retira sentido do direcionamento da crítica à atuação em Curitiba. Por fim, o argumento do uso de prisões para pressionar é ferido de morte quando se observa que ele tem uma premissa absolutamente inverídica, pois mais de dois terços das colaborações foram feitas com investigados soltos, que jamais foram presos, isto é, que não sofreram essa suposta pressão.

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Enfim, porque não vivemos no céu, mas no mundo real, não temos dúvidas de que a colaboração premiada pode trazer grandes benefícios para a sociedade, resguardadas as devidas cautelas em seu emprego. Não é à toa que a colaboração é um instrumento de investigação usado em diversos países democráticos, como Estados Unidos, Itália, Espanha, Portugal e tantos outros. Seu emprego é recomendado pela Convenção da ONU contra a criminalidade organizada transnacional, de que o Brasil é signatário. Embora busquem a narração de fatos e o fornecimento de provas, a colaboração e a tortura estão diametralmente afastadas, pois a primeira promete um benefício legal como incentivo para que o réu voluntariamente rompa o silêncio, enquanto a segunda impõe à força um mal injusto, ilegal e grave. Por tudo isso, colaboração e democracia convivem muito bem. A decisão de colaborar com a Justiça, mais que merecer nosso respeito, merece nosso incentivo. Se quisermos, na Lava Jato e em outros casos, continuar expandindo as investigações para identificar e punir crimes de corrupção ainda impunes, inclusive em outros órgãos públicos, as colaborações deverão prosseguir.

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DELTAN DALLAGNOL é procurador da República em Curitiba, Paraná, e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato (Foto: Folhapress)







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