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Desentrlização, intersetorialidade e rede na gestão da cidade* * Uma versão deste texto foi publicada na Revista FEA-PUC SP, Vol. 1, p. 57-72, 1999.

Resumo

A descentralização, intersetorialidade e rede são abordadas como estratégias de um novo modelo de gestão municipal na gestão das políticas sociais, tendo em vista a qualidade de vida dos munícipes. A descentralização, enquanto propõe a transferência de poder de decisão sobre as políticas sociais para os níveis periféricos da cidade, possibilita que a sua gestão ocorra com o envolvimento dos seus usuários. Essa transferência de poder, necessariamente, não otimiza a gestão integrada dessas políticas. A intersetorialidade constitui uma alternativa para otimizar essa gestão, pois integra as diversas políticas sociais na solução dos problemas sociais, que afetam grupos de população que ocupam determinado território. A rede, como a construção de relações entre atores sociais, preservando sua identidade, viabiliza e otimiza recursos necessários ao encaminhamento da gestão das políticas sociais. Analisa-se dois casos de modelos de gestão, no Brasil, a partir dos pressupostos, a experiência da reforma administrativa de Fortaleza, estado do Ceará, e a criação de uma rede intermunicipal de municípios da região de saúde de São João da Boa Vista, no estado de São Paulo.

Abstract

The decentralization, intersectionality and networks as strategies for a new city management model due to the social policies aiming the better life quality of the citizens. While the decentralization proposes the transfer of the decision power over the social policies to the peripheral levels of town, it also permits that its management occurs with the embrace of its users. This transfer of power doesn't necessarily optimize this management of these policies. The interaction among the sectors establishes an alternative to optimize this management, since it combines the various social policies as the solution for the social problem that affects groups of the population that occupies determined region. The networks, as the construction of the relation among social actors, preserving their identity, makes it feasible and optimizes sources needs to direct a management of the social policies. We analyze two cases of models management in Brazil, from this presuppositions, the experience of administrative reform of Fortaleza, State of Ceará, and the creation of a intermunicipal net of counties at Saúde de São João da Boa Vista, in São Paulo state.

INTRODUÇÃO

A cidade é o espaço onde as pessoas vivem e se relacionam, em que também manifestam seus problemas e têm acesso aos serviços que lhes proporcionam meios para satisfazer suas necessidades. Isso coloca para o gestor da cidade a importância de identificar estratégias para gerenciá-la e as suas políticas, visando a garantir aos munícipes condições de vida saudáveis.

A descentralização, a intersetorialidade e a rede constituem alternativas de gestão das políticas municipais e, em especial, das políticas sociais. Isso porque os problemas sociais, sendo de natureza diversa, afetam uma mesma pessoa ou grupo de pessoas, situadas, em geral, no mesmo espaço. Essa maneira de ver os problemas sociais ainda não ocasionou mudanças nas práticas de solucioná-los. Cada política social encaminha a seu modo uma solução sem considerar o cidadão na sua totalidade e nem a ação de cada política social, que também busca a melhoria da qualidade de vida.

Abordar os problemas sociais de maneira integrada, no espaço onde se manifestam, considerando os diversos atores sociais envolvidos como sujeitos do processo, coloca como necessária a descentralização da gestão das políticas municipais. Com isso, as soluções dos problemas sociais poderão ser encaminhadas de maneira integrada, respeitando a contribuição e a autonomia de cada ator nesse processo.

Daí a importância de considerar os conceitos de descentralização, de intersetorialidade, de rede e sua interdependência. Isso permitirá que as soluções dos problemas sociais sejam buscadas de maneira integrada, fazendo com que os munícipes possam fruir uma vida com qualidade.

Esse texto inicia com o entendimento dos conceitos de descentralização, intersetorialidade e rede, visualizando o papel de cada um na mudança das práticas políticas e institucionais, que interferem na gestão da cidade, para torná-la mais saudável. Em seguida, são apresentados dois casos em que esses conceitos foram trabalhados. Um, a reforma da Prefeitura Municipal de Fortaleza, centrada na descentralização e na intersetorialidade, e outro, Rede Adolescente, concebida e gerida no âmbito de municípios de uma região de Saúde do estado de São Paulo.

DESCENTRALIZAÇÃO E A GESTÃO DA CIDADE

A descentralização é um conceito importante na gestão das políticas sociais. É um discurso que ocupou e ainda ocupa um lugar de destaque na discussão da eficácia das políticas sociais, especialmente da saúde, a partir da década de 80. Contudo, do discurso à prática há uma distância significativa. E não basta a lei para tornar realidade a política sem considerar outras determinações, as práticas institucionais, os interesses corporativos.

Descentralizar significa transferir decisão, trazer para junto dos usuários o poder de decidir. Mas poder de decidir sobre o quê? Por isso que quando se fala em descentralização é importante ter claro transferir o quê, para quem e como.

A descentralização como um processo de transferência de poder determina a redistribuição do poder de decisão como resposta à centralização. Esse processo envolve mudanças na articulação entre estado e sociedade, entre o poder público e a realidade social, e implica mudar a atuação do estado, seu papel na gestão das políticas sociais. Apesar da sua importância para garantir aos cidadãos seus direitos sociais, o estado não pode substituir a sociedade em qualquer que seja o sistema.

Descentralizar não é apenas um processo de transferência de atribuições e competências que ocorre no âmbito do estado, entre os três níveis de governo entre as suas organizações. Essa transferência pode ocorrer também para entes privados de caráter público. Assim, o estado pode transferir, por exemplo, a prestação dos serviços, sejam de saúde, de educação que são de sua competência, para entes não estatais, mas preservando o seu poder de regulação (MARTINS, 1994MARTINS, C. E. O circuito do poder: democracia, participação, descentralização. São Paulo: Entrelinhas, 1994.). O ente privado de caráter público que recebe as competências permanece rá sujeito às normas, à avaliação e aos controles de qualidade estabelecidos pelo poder cedente.

Esse processo de descentralização não se esgota apenas na transferência de atribuições. E necessário, para que tenha eficácia, considerar os beneficiários das políticas sociais como sujeitos e participantes da sua gestão. Para isso, é necessário que as políticas sociais sejam consideradas como direito, no seu caráter distributivo e não apenas compensatório. E essa mudança só ocorrerá através da educação para a cidadania, quando os diversos atores sociais tomarem consciência dos seus direitos de cidadãos.

A cidadania é um processo de aprendizado, que se atualiza na medida em que as pessoas vão experimentando relações e percebendo que seu saber e sua experiência têm importância e são respeitados. A cidadania se consuma mediante o exercício do papel de sujeitos e de seus valores face a sujeição a liberdade e não ao poder (MANZINI-COVRE, 1996MANZINI-COVRE, M. L. No caminho de Hermes e Sherazade - cultura, cidadania e subjetividade. Vogal Editora, Taubaté, SP, 1996.: 37).

Assim, a realidade socio-econômica, política e cultural das organizações, para quem o poder é transferido, determina diferentes maneiras de seus diversos ato res lidarem com esse poder, até sem dar acesso às decisões à população cliente. Por isso que se diz que a descentralização não garante, necessariamente, a participação, podendo, em algumas circunstâncias, até reiterar as diferenças. A possibilidade de participar não homogeneiza os interesses que permeiam a relação, inclusive pela descrença no poder de influenciar os acontecimentos. As mudanças sociais benéficas requerem, com freqüência, o uso de poder diferencial, mantido apenas pelos privilegiados (GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo, 1990 Editora UNESP.: 154).

A INTERSETORIALIDADE COMO ESTRATÉGIA DE GESTÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

A dicotomia que se observa na gestão das políticas sociais só pode ser superada através de uma ação integrada, pois mesmo aquelas de caráter universal, isoladamente, têm dificuldade em promover a eqüidade e a integralidade do atendimento. Apesar dos problemas sociais manifestarem-se setorialmente, sua solução está na dependência da ação de mais de uma política.

É no âmbito do município, como o espaço onde a população tem acesso aos serviços, onde seus problemas se manifestam, que a articulação das políticas sociais se viabiliza, dando maior eficácia a sua gestão.

Assim, é no município, como espaço definido territorial e socialmente, que se concretizará a integração interinstitucional e a ação intersetorial. Essa interação pode ser construída através de um processo dinâmico entre os sujeitos, mediada por novos paradigmas, que devem informar a mudança das instituições sociais e de suas práticas.

É um processo de aprendizagem e de determinação dos sujeitos, que resulta também na gestão integrada das políticas sociais, para responder com eficácia aos problemas da população de um determinado território.

A lógica intersetorial de atuação deve referir-se, basicamente, à população e ao espaço onde se situam. Assim, a base populacional e geográfica permite que se identifique os problemas e as possibilidades de sua solução para atingir uma vida com qualidade.

A intersetorialidade é a "articulação de saberes e experiências no planeja mento, realização e avaliação de ações para alcançar efeito sinérgico em situações complexas visando ao desenvolvimento social, superando a exclusão social" (JUNQUEIRA; INOJOSA, 1997)JUNQUEIRA, L.A. P.; INOJOSA, R. M. Desenvolvimento social e intersetorialidade: a cidade solidária. São Paulo: FUNDAP (mimeo), 1997.. É uma nova lógica para a gestão da cidade, buscando superar a fragmentação das políticas, considerando o cidadão na sua totalidade. Isso passa pelas relações homem/natureza, homem/homem que determinam a construção social da cidade.

Nessa perspectiva, é interessante ressaltar que a intersetorialidade não é um conceito que engloba apenas as dimensões das políticas sociais, mas também a sua interface com outras dimensões da cidade, como sua infra-estrutura, ambiente, que também determinam a sua organização e regulam a maneira como se dão as relações entre os diversos segmentos sociais (JUNQUEIRA, 1998aJUNQUEIRA, L. A. P. Novas formas de gestão na saúde: descentralização e intersetorialidade, São Paulo, Saúde e Sociedade, 6(2): 31-46, ago-dez 1998a).

Assim, a intersetorialidade constitui uma concepção que deve informar uma nova maneira de planejar, executar e controlar a prestação de serviços. Isso significa alterar toda a forma de articulação dos diversos segmentos da organização governamental e dos seus interesses.

Essa forma de atuar é nova, por isso deve acarretar mudanças nas práticas e na cultura organizacional. É um processo que tem riscos em função das resistências previsíveis de grupos de interesses contrariados. A ousadia de mudar vai precisar das alianças de todos os que desejam incrementar a qualidade de vida do cidadão, dentro e fora da administração municipal.

Tratar os cidadãos, situados num mesmo território, e seus problemas de maneira integrada exige um planejamento articulado das ações e serviços. Mas isso só não basta. É necessário um novo fazer que envolva mudanças de valores, de cultura como um "fenômeno ativo, vivo, através do qual as pessoas criam e recriam os mundos dentro dos quais vivem" (MORGAN, 1996MORGAN, G. Imagens da organização, São Paulo, Atlas, 1996.:135).

Essa nova realidade deve ser criada no interior das organizações gestoras das políticas da cidade na sua totalidade. Isso exige que os diversos atores, parte dessa rede, se interpenetrem, formando um novo tecido.

É uma nova lógica que determina a atuação das organizações municipais, deixando de ser informada pela especialização, pela setorialização e pela autonomização, mas por uma elaboração integrada de saberes e de percepções do homem e de sua realidade social. Isso remete para a questão da complexidade dessa realidade e da necessidade de um conhecimento que dê conta das diversas dimensões que determinam os problemas sociais e sua interação (DEMO, 2002DEMO, P. Complexidade e aprendizagem, São Paulo: Atlas, 2002.).

Esse processo ganha consistência quando a cidade é considerada na sua totalidade. Quando as necessidades dos grupos populacionais, que se distribuem pelo seu território, tornam-se sujeitos do processo. Sujeitos capazes de percebe rem seus problemas e encaminharem soluções articuladas intersetorialmente.

A REDE NA GESTÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

Ao complementar a dimensão intersetorial das políticas sociais emerge a noção de rede como a interação de pessoas, instituições, famílias, municípios e estados, mobilizados em função de uma idéia abraçada coletivamente. Num ambiente de mudança social, as diferentes atividades que a determinam implicam na formação de redes como a possibilidade de intercâmbio.

O termo rede, em sua multiplicidade, nos remete tanto a uma dimensão conceituai como a um sentido instrumental. Nesse sentido, ela é uma proposta de ação como um modo de funcionamento do social, um modo espontâneo de organização em oposição a uma dimensão formal e instituída. Assim, a rede, em muitos casos, em vez de ser um processo rígido e estereotipado, cede lugar a outros que são criativos e inventivas (SAIDÓN, 1995SAIDÓN, O. Las redes: pensar de otro modo. In: DABAS, E.; NAJMANOVICH, D. Redes. EI Lenguaje de ·los Vínculos, Buenos Aires, 1 ed., Paidós, 1995, p. 205-207.:203).

Nessa perspectiva, a rede como uma construção social depende da sensibilização dos diversos atores sociais para um objetivo comum que melhor se viabiliza através da parceira. Esse processo de parceria estabelece relações interpessoais e interinstitucionais, preservando as diferenças e as especificidades de cada componente que contribui, da sua maneira, para a construção de uma política que preserve os princípios da cidadania, da liberdade e da justiça.

A rede surge da percepção conjunta dos problemas comuns e da possibilidade de resolvê-los não apenas no âmbito de um município, mas da articulação entre outros atores sociais envolvidos com o problema e sua solução.

Quando vemos o mundo pelo olhar das redes, este aparece com uma variedade de cenários que emergem das diversas maneiras como cada membro se sente chamado para participar. Nesse sentido, pensar na perspectiva de rede significa guardar as identidades de cada membro, fugindo das relações estereotipadas e fixas entre organizações e pessoas.

A rede é uma construção coletiva onde organizações, sociedade civil, lide ranças, voluntários interagem para otimizar e ampliar os resultados para o conjunto da população. Pensar em rede é uma possibilidade de facilitar a construção do tecido social, mas não guiado por uma atitude voluntarista, pois a "rede comporta materiais de diversas origens, mas sua produtividade e criatividade" adquire consistência ao longo de seus processos de transformação (SAIDÓN, 1995SAIDÓN, O. Las redes: pensar de otro modo. In: DABAS, E.; NAJMANOVICH, D. Redes. EI Lenguaje de ·los Vínculos, Buenos Aires, 1 ed., Paidós, 1995, p. 205-207.:207).

Pensar em rede favorece, no contexto da mudança social, a possibilidade de reconstruir a sociedade civil, uma vez que ela cresce e se desenvolve quando seus integrantes assumem o papel de sujeitos. Como sujeitos, tornam-se responsáveis nas diferentes redes em que atuam como produtores ativos na construção do bem estar dos diversos segmentos sociais e da sociedade no seu conjunto.

A noção de rede remete também para a idéia de intervenção em um sistema social. Contudo, essa intervenção não determina o sistema, mas faz parte dele, contribui para construir sua história. Cada participante do sistema é um sujeito real, que tem sua identidade, mas que não é dono do sistema. Há vários participantes com diferentes tradições e culturas que dão a sua marca e sua contribuição, mas que não são únicos. Daí a necessidade de uma linguagem e práticas comuns, para organizar e mobilizar os diferentes atores para um único objetivo, para a construção de uma nova realidade social que resulta das relações estabelecidas entre si.

A complexidade aumenta na medida em que a sociedade vai evoluindo e, consequentemente, tornando conhecimento mais multifacetado e complexo. Esse movimento de complexificação é acompanhado pelo surgimento de "problemas novos, imprevistos, e por fenômenos que escapam a nossa compreensão e controle" (GENELOT, 1992GENELOT, D. Manager dans la complexité - reflexions. à l'usage de dirigeants, Paris, INSEP Éditions, 1992.:26).

Essa ausência de controle aumenta a imprevisibilidade e a incerteza que crescem em função da complexidade, com isso busca-se novos modelos de gestão. Nesse contexto, a idéia de rede como interdependência entre atores e instituições é privilegiada, o que possibilita superar os limites da ação mediante a integração de conhecimentos e práticas de cooperação, constituindo um meio para intervir na realidade social.

Nesse sentido, a rede é uma construção coletiva e ela se define na medida que é realizada. Sua verdade está na concretização, na superação das determinações sociais, mediante o estabelecimento de parcerias entre sujeitos individuais ou coletivos, mobilizados por objetivos construídos e apropriados coletivamente, para a construção de uma nova realidade social.

É nessa perspectiva de construção social que devem ser entendidas as experiências que serão descritas a seguir. Construções solidárias que se organizaram possibilitando uma gestão participativa das organizações que compõem a rede (MANCE, 2000MANCE, E. A. A revolução das redes. Petrópolis: Vozes, 2000.).

O objetivo é entender a complexidade da realidade social e, através da integração das políticas sociais, buscar soluções que respondam não às necessidades da população, mas aos direitos dos cidadãos a uma vida com qualidade.

GESTÃO MUNICIPAL DESCENTRALIZADA E INTERSETORIAL: O CASO DO MUNICÍPIO DE FORTALEZA (CE)

É a partir dos pressupostos da descentralização, da intersetorialidade, da territorialização e dos grupos populacionais neles situados, que a Prefeitura Municipal de Fortaleza buscou redefinir seu aparato governamental. Buscou modelar uma nova organização, introduzindo um novo modo de gerenciar o espaço urbano, superando a distância entre o governo municipal e o cidadão, para tornar a cidade saudável.

O município é o espaço onde a atuação do Estado ganha concretude e encontra com o cidadão. Onde esse cidadão tem acesso aos seus direitos constitucionais e aos serviços que lhe garantem esses direitos.

A população de um município não é homogênea, nem em suas características, nem em suas necessidades, nem em suas aspirações. Assim, para interferir nessa realidade, respeitando e atendendo as suas peculiaridades, é preciso estabelecer critérios para que haja uma ação articulada, permitindo estabelecer objetivos e metas que promovam a qualidade de vida, através do acesso a bens materiais e imateriais disponíveis na sociedade contemporânea (JUNQUEIRA; INOJOSA, 1997)JUNQUEIRA, L.A. P.; INOJOSA, R. M. Desenvolvimento social e intersetorialidade: a cidade solidária. São Paulo: FUNDAP (mimeo), 1997..

Um critério é o geográfico, que se refere ao espaço onde vive determinado grupo. Outro, são as características dos grupos populacionais e a transferência de poder para os atores situados em um território. A descentralização emerge como um instrumento de participação, como uma possibilidade de criar uma rede de relações, permitindo que os cidadãos, situados nas regiões da cidade, tenham acesso aos responsáveis pelos serviços públicos municipais.

A descentralização se constitui em um instrumento de expansão da lógica democrática, possibilitando a criação de novas instâncias de negociação e, consequentemente, o reordenamento da estrutura organizacional. Essa nova organização, em princípio, mais permeável às demandas dos cidadãos, permite que se aumente a eqüidade através da articulação e implementação de políticas de desenvolvimento.

Nesse contexto, é importante visualizar a descentralização não apenas através da ótica dos grupos instalados no poder, mas dos cidadãos, daqueles que utilizam os serviços prestados. Nesse sentido, a descentralização da gestão das políticas sociais, no âmbito municipal, permite que os problemas sociais que afetam a população sejam objeto de decisão, tanto dos gestores como dos usuários dos serviços. Com isso, há possibilidade de integração e participação dos diversos atores sociais no gerenciamento dessas políticas, trazendo para o âmbito local as decisões sobre os problemas sociais.

Esse processo interativo determina uma nova concepção do planejamento e gestão das políticas sociais. A descentralização e a intersetorialidade na gestão da cidade traz implícito a idéia de território, de espaço que as pessoas ocupam, interativamente, para decidirem sobre os problemas que afetam a população.

Apesar do caso de Fortaleza não ser novo, creio ser interessante recuperá-lo nessa discussão, porque a experiência da reforma da estrutura organizacional do município, tendo como referência a descentralização e a intersetorialidade, foi exemplar, mesmo que não tenha tido o impacto que se desejava.

O trabalho político que se pretendeu implementar em Fortaleza envolveu a descentralização, a intersetorialidade, o território e a participação, mas isso não era suficiente sem a vontade política de mudar e dos meios necessários à mudança.

A partir dessa decisão de administrar a cidade de maneira descentralizada e intersetorial, o passo seguinte foi definir um projeto político, a reforma administrativa necessária para desenvolvê-lo.

O aparato a ser criado deveria dar nova dinâmica, responder de maneira integrada aos cidadãos das várias regiões da cidade sobre suas necessidades de saúde, educação, habitação, emprego e renda e infra-estrutura urbana. Criada de forma descentralizada e intersetorial, distribuído pelo território, pretendia-se que os munícipes resolvessem seus problemas urbanos perto de suas casas e tivessem acesso garantido e diferenciado aos equipamentos sociais.

O Governo da Cidade de Fortaleza (CE) assumiu essa decisão1 1 Logo depois do primeiro turno da eleição municipal de 1996, o Prefeito eleito, Juraci Magalhães, convidou a FUNDAP para assessorar a elaboração de uma proposta de revisão completa da estrutura do governo municipal a ser apresentada à Câmara Municipal, orientada por dois pressupostos: a descentralização e a intersetorialidade. O projeto-de-lei enviado à Câmara foi aprovado em 29 de janeiro de 1997. A partir desse momento, iniciou-se efetivamente um processo de mudança. de reordenar a estrutura organizacional da Prefeitura a partir de novos critérios que diferem das reformas até aqui implementadas. Determina-se novos paradigmas organizacionais que introduzem uma nova modelagem do aparato governamental. O objetivo dessa reforma administrativa foi dar maior eficácia às organizações municipais, segundo critérios que possibilitassem aos munícipes uma vida com qualidade.

A intenção de mudar ainda não é a mudança, mas o início de um processo de construção de uma nova realidade, e no caso, uma nova cidade. A situação desejável depende de entendimento e do compromisso de todo o corpo diretivo com a nova proposta. Isso nem sempre é possível, porque nem todos os atores têm os mesmos interesses e a mesma visão dos direitos sociais da população. A mudança é um processo que envolve a vontade de mudar, a concepção da mudança, bem como seus objetivos e estratégias. "Conceber não significa criar a realidade, mas reconstruí-la" (DEMO, 2002DEMO, P. Complexidade e aprendizagem, São Paulo: Atlas, 2002.:31).

Esse processo nem sempre tem eficácia pela ausência de atores com competência e clareza da proposta. No caso de Fortaleza, isso pode ter sido um problema. Os interesses políticos nem sempre manifestos, mas encastelados no aparato gestor das políticas públicas que foi desmontado, constituíram, na maioria das vezes, em fatores impeditivos à mudança.

Integrar a gestão das diversas políticas públicas, sejam as sociais, sejam as de infra-estrutura, em um único espaço de poder, não é uma tarefa fácil. Os interesses e valores que permeavam a gestão atomizada dessas políticas não mudam rapidamente. A lógica que deverá permear o novo aparato estatal é de outra ordem, ou seja, dos interesses coletivos e não dos individuais e corporativos, que eram dominantes.

Os atores que passaram a incorporar a nova estrutura organizacional necessitavam, portanto, mudar a concepção das políticas e a sua maneira de gestão. Mas essa mudança para ocorrer de fato, e não apenas no discurso, necessitava de transformações nas práticas e valores dos diversos segmentos das unidades organizacionais da Prefeitura, necessitavam de ser reconstruídas. O novo discurso deveria ser trabalhado com esses atores para que fosse incorporado ao seu quotidiano e desse corpo ao novo modelo de gestão.

A realização de seminários e reuniões buscava discutir e passar a concepção da mudança e de seus valores para os servidores. Apenas esse processo não é suficiente para ocasionar a incorporação dos valores pretendidos pela mudança. Além disso, o jogo político presente na instituição e o medo gerado pela mudança, podem ter impedido que a transformação proposta pela reforma não tenha sido percebida de maneira similar nas diversas instâncias da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Por isso que cada segmento da organização buscou, muitas vezes, articular-se seja para boicotar o processo ou para criar nichos de poder que contrariavam a proposta original.

Creio que a reforma proposta na Prefeitura de Fortaleza criava uma nova instituição, partindo de concepção totalmente diversas existem es na administração pública municipal do país. Essa mudança exigia. uma gerência, pois a inovação deve ser aprendida e organizada como um processo sistemático, para não perder sua força e aprofundar suas raízes (DRUCKER, 1999). Apesar do Prefeito ter tido clareza da proposta e de seus rumos, ele não contou com um gestor da própria Prefeitura para lançar as raízes desse processo.

Tendo dado seus primeiros passos, a nova instituição perdeu alguns de seus atores que acreditavam na proposta e estavam envolvidos com ela, inclusive a consultoria. Outros atores foram incorporados, mas sem a visão da reforma e de seus pressupostos. A mudança é um processo lento e exige ser acompanhado e controlado, para retomar seus rumos e aperfeiçoar sua dinâmica. Parece que foi isso que não ocorreu em Fortaleza. Ao invés de aperfeiçoar os rumos do projeto, buscou-se outras alternativas de mudança e incorporou-se outros atores que não tinham a clareza do processo e de sua direção.

A reforma da Prefeitura de Fortaleza foi importante como modelo de gestão intersetorial das políticas sociais. Outras prefeituras buscaram implantar modelo similar, para· otimizar seus recursos na gestão dessas políticas. Mas tanto a experiência de Fortaleza como as outras experiências estão por ser avaliadas.

INTERSETORIALIDADE E REDE NA GESTÃO DE UM PROJETO: O CASO DE SÃO JOÃO DA BOA VISTA (SP)

Nessa dinâmica de construir o novo e otimizar os recursos disponíveis, foi que se propôs, a partir de um curso de planejamento intersetorial, que envolveu 23 municípios da região de Saúde de São João da Boa Vista, no estado de São Paulo, formar uma rede intermunicipal para atendimento ao adolescente.

A partir da identificação dos problemas sociais que afetam os diferentes municípios da região, selecionou-se aquele que os participantes consideravam susceptível de intervenção e que sua solução seria otimizada pela articulação dos municípios em rede.

Essa rede já tem uma história. Criada em maio de 1998, ainda hoje articula os municípios que vêem na atuação conjunta a possibilidade de otimizar seus recursos na solução e controle de problemas sociais que afetam sua população jovem. A consolidação dessa rede passa pelo poder local, pelo compromisso dos dirigentes municipais com um objetivo definido coletivamente, com a vontade po lítica de oferecer a seus jovens uma vida com qualidade.

Os municípios se integraram para a gestão em rede de uma política social. O problema das drogas e sua disseminação necessitava, na percepção dos diversos atores municipais, de criar zonas de proteção que não dependiam apenas de um município, pois sua solução estava no âmbito da região.

Foi a partir da identificação da importância desse problema social que afetava de algum modo segmentos dos municípios participantes do curso de planejamento, que seus dirigentes e técnicos decidiram articular-se para buscarem uma solução conjunta. Nesse contexto, surge a idéia da criação de uma rede adolescente, que articulasse comunidade, conselhos, organizações da sociedade civil, profissionais e serviços públicos de saúde, de educação, de promoção social, de cultura e de es portes para dar apoio aos adolescentes e suas famílias (INOJOSA, 1999INOJOSA, Rose M. Redes de compromisso social, Revista de Administração Pública - FGV, Rio de Janeiro 33 (5): 115-141, set./out. 1999.).

No processo de conformação dessa rede procurou-se envolver pessoas que, voluntariamente, como representantes de instituições ou, simplesmente, como cidadãos, tivessem interesse em melhorar as condições de vida do adolescente. Definiram metas, que hoje já mudaram, e também os municípios membros. Apesar dos objetivos definidos coletivamente representarem a razão de ser da rede, na medida que o tempo passa e que novos membros são incorporados, eles necessitam ser atualizados. Contudo, os municípios membros da rede que acreditavam no projeto e foram líderes na sua implantação continuam dando sua contribuição. As metas definidas inicialmente foram atingidas com o compromisso de cada município no atendimento dos seus adolescentes e de suas respectivas famílias.2 2 A concepção dessa rede teve o apoio da Diretoria Regional de Saúde - DIR da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e da Fundação do Desenvolvimento Administrativo - FUNDAP. Essa rede constituiu um elo de ligação entre os diversos municípios e apesar de suas diferenças, ela continua sendo construída por cada um que tem sua contribuição. Esse é um processo que vai se aperfeiçoando e incorporando novos atores.

Aqui é interessante visualizar como o conceito de intersetorialidade se articulou com o de rede. A intersetorialidade é um processo que articula políticas sociais, pois uma única política não resolve os problemas sociais. Nessa perspectiva, ela é importante para construir e dar suporte à rede, interação de pessoas, instituições, famílias e municípios mobilizados em torno de uma idéia abraçada coletivamente. Uma causa partilhada, para construção do novo.

As metas, os objetivos, foram formulados em função de um novo modo de oferecer serviços. Cada instituição, cada família, cada participante preservou suas diferentes contribuições sem homogeneizar-se, porque cada componente tem a sua maneira própria de se integrar e contrrbu1r para o atendimento dos jovens. Nesse processo, os municípios envolveram-se mediante a contribuição de seus diversos setores para oferecer aos adolescentes uma vida com qualidade.

Várias questões continuam sendo objeto da rede. Ela é um momento de aprendizado, é um momento de crescer. A rede intersetorial aponta para solução dos problemas da população de uma maneira integrada, criando zonas de proteção contra as drogas para os adolescentes. Esse processo não se realiza apenas a partir de uma cidade, mas da integração entre elas, criando a possibilidade da proteção, mediante a construção de um objetivo coletivo para proteger seus adolescentes.

CONCLUSÃO

A descentralização e a intersetorialidade inovam na gestão da cidade. Trans fere o poder para junto dos que utilizam os serviços prestados e integra a gestão das políticas públicas. No bojo desse movimento, surge a rede como outra noção capaz de dar conta da complexidade da realidade social e buscar soluções que otimizem os recursos disponíveis na gestão das políticas sociais.

Adotar esses pressupostos par modelar uma nova estrutura governamental, como ocorreu em Fortaleza, traz implícito uma nova forma de gestão da cidade. No entanto, isso não significa mudanças efetivas nas práticas organizacionais, que só ocorrem quando há transformação de valores e da cultura das organiza ções. Inclusive não se pode dizer que houve mudanças sem visualizar o impacto que elas ocasionam na realidade social.

A mudança representa sempre um risco. Significa abrir mão do certo para apostar em algo que não se conhece. Daí a necessidade de acreditar na proposta e em seu fiador.

Há várias leituras, vários aspectos a considerar ao assumir um projeto e em comprometer-se com ele. No caso da mudança da gestão da cidade para uma prática intersetorial, exige envolvimento dos diversos segmentos organizacionais e da sociedade, pois é:

  • um processo de crescimento e desenvolvimento do indivíduo como cidadão;

  • um processo político, que se inicia com um compromisso do executivo e do legislativo municipais.

  • uma nova forma de gestão e de organização do poder e como tal pode acarretar perda de espaço político;

  • um processo de transformação das práticas das políticas de saúde, de educação, de assistência social, de habitação, de emprego, que buscam resolver de forma integrada os problemas sociais.

Isso significa mudar a lógica da gestão das políticas setoriais para a intersetorial. Esse processo integra saberes e recursos, para dar respostas mais eficazes à população de um território, garantindo-lhe uma vida com qualidade.

Os problemas sociais são complexos e abordá-los é uma tarefa que exige respeito à contribuição de cada participante, preservando sua identidade, o seu saber. Os atores individuais e institucionais devem identificar-se como sujeitos comprometidos com os objetivos delineados coletivamente, para a construção de uma sociedade justa e equânime.

A experiência municipal de Fortaleza de gestão intersetorial foi importante, mas de eficácia duvidosa. Mesmo tendo mudado a estrutura organizacional sua implantação não teve a permanência esperada. Interesses corporativos e políticos comprometeram seus resultados, inclusive com a desarticulação da gestão intersetorial. Prevaleceu o setorial, porque a gestão integrada significa priorizar a clientela e seus interesses, significa abrir novos espaços de poder e de negociação.

Com a rede introduz-se uma nova possibilidade. Pessoas e instituições conservam sua identidade e sua força política. No entanto, respeitar um objetivo definido coletivamente também significa abrir mão de algumas prerrogativas, pois o coletivo deve prevalecer sobre o individual.

A gestão da cidade exige mudanças e articulações dos diversos atores políticos para a construção do espaço público urbano. Os problemas sociais urbanos que se multiplicam demandam soluções integradas e não setorializadas, pois a realidade social não se manifesta de maneira dicotômica. Com a descentralização, intersetorialidade e a rede como estratégias de gestão da cidade permite-se que os diversos segmentos sociais passem a ser sujeitos das soluções dos problemas que afetam a cidade.

REFERÊNCIAS

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  • *
    Uma versão deste texto foi publicada na Revista FEA-PUC SP, Vol. 1, p. 57-72, 1999.
  • 1
    Logo depois do primeiro turno da eleição municipal de 1996, o Prefeito eleito, Juraci Magalhães, convidou a FUNDAP para assessorar a elaboração de uma proposta de revisão completa da estrutura do governo municipal a ser apresentada à Câmara Municipal, orientada por dois pressupostos: a descentralização e a intersetorialidade. O projeto-de-lei enviado à Câmara foi aprovado em 29 de janeiro de 1997. A partir desse momento, iniciou-se efetivamente um processo de mudança.
  • 2
    A concepção dessa rede teve o apoio da Diretoria Regional de Saúde - DIR da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e da Fundação do Desenvolvimento Administrativo - FUNDAP.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2004
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