Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.3, p. 15-31, 2016
Futebol, família, nação e memória:
O segundo tempo, de Michel Laub
Football, family, nation, memory:
Michel Laub’s O segundo tempo
Pedro Henrique Trindade Kalil Auad
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia / Brasil
pedroauad@gmail.com
Resumo: Este artigo é um estudo da obra O segundo tempo, de Michel
Laub. A partir de considerações de Marcelino Rodrigues da Silva, o
estudo se centra em três esferas que constantemente aparecem em obras
que têm o futebol como tema: o futebol, a família e a nação. Além
desses, como é própria das obras de Laub, soma-se a problematização
da memória e do trauma. A partir disso, considera-se pensar no futebol
como uma espécie de próximos, conceito de Paul Ricoeur.
Palavras-chave: futebol; O segundo tempo; memória; nação.
Abstract: This article is a study of Michel Laub’s O Segundo Tempo
(Second Half). Based on Marcelino Rodrigues da Silva considerations,
the study focuses on three recurrent images in works that have football
as theme: football, family, and nation. Besides these three instances, as is
characteristic of works by Laub, the problematic of memory and trauma
is also considered. That being said, it is possible to regard football in
accordance with Paul Ricoeur’s concept of close relations.
Keywords: football; O segundo tempo; memory; nation.
Recebido em: 31 de agosto de 2016.
Aprovado em: 2 de janeiro de 2017.
eISSN: 2317-2096
DOI: 10.17851/2317-2096.26.3.15-31
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Marcelino Rodrigues da Silva, em texto intitulado “Desainando
a metáfora da nação”, airma que o futebol é frequentemente utilizado
como uma espécie de metáfora para outros aspectos da vida, já que
diante dos limites e armadilhas da representação, a
metáfora – com sua dispersão de sentido e sua abertura
interpretativa, propiciadas pela base analógica que a
sustenta – pode ser um conceito operatório de grande
utilidade na tentativa de captar de modo menos simplista
os mecanismos pelos quais se produz a multiplicidade
semântica do futebol, potencializada pelos inúmeros
contextos históricos e socioculturais em que ele se difundiu
ao longo do último século.1
O autor do texto vai, a partir da noção de metáfora, fazer uma
aproximação entre dois ilmes: O milagre de Berna (2003), dirigido pelo
alemão Sönke Wortman, e O ano em que meus pais saíram de férias
(2006), do brasileiro Cao Hamburger.
O futebol aqui aparece como metáfora que une três eixos: o destino
da seleção nacional de futebol, o destino da família do protagonista e, por
im, o da própria nação. No que se distinguem os dois ilmes em relação
a esses três eixos (a metáfora da nação reconciliada do ilme alemão2 e a
“metáfora dissonante” do brasileiro), o que busco no texto de Marcelino
Rodrigues da Silva é essa sobreposição de planos – futebol, família, nação
– como construção metafórica da representação a partir do futebol. É
interessante notar como esses três círculos fazem parte da construção da
identidade, em diâmetros maiores (nação) ou menores (família).
Esses três eixos têm sido explorados em obras recentes com alguma
regularidade, como é o caso do espetáculo Princípios transgredíveis para
amores precários (2016), do dramaturgo Thales Paradela e dirigido por
Cida Falabella, em que, como no ilme de Cao Hamburger, o futebol
escancara uma espécie de falta de sintonia do trauma da nação em
relação aos exilados do período ditatorial. Esse também vai ser o caso
do livro de que aqui proponho uma leitura, O segundo tempo, de Michel
Laub. O acréscimo que proponho aqui à leitura que Silva fez dos ilmes
SILVA. Desainando a metáfora da nação, p. 265.
Cornelsen, em “Imagem e memória em torno de futebol e política no cinema”, vai
demonstrar que essa uniicação da nação, presumida no ilme alemão, não é totalizante
ou tão harmoniosa assim.
1
2
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17
supracitados é que além desses três eixos há outro que vai se tornar de
suma importância: a memória.
Esse acréscimo se dá até mesmo pelo não paralelismo que é
possível presumir entre o ilme alemão e o brasileiro: enquanto aquele
fala de um período de paciicação e de perdão, o segundo se estabelece em
um período de issuras e traumas. Adiantando um pouco a argumentação,
aponto que o futebol é responsável, no Brasil, não só por nos balizar
enquanto uma espécie de “pacto nacional”, mas também funciona como
uma forma de identiicar e expor nossos traumas. É nesse sentido que
proponho o futebol como um próximos, conceito de Paul Ricoeur, que
se coloca como um intermediário entre a memória coletiva e a memória
individual, como retomarei ao inal do texto.
Judith Butler, em conversa com Gayatri Chakravorty Spivak,
ao pensar no hino mexicano quando cantado nos Estados Unidos da
América, destaca as palavras somos equales. Ela se pergunta se esse
ato discursivo – “que não apenas declara de forma audaz a igualdade
do nós mas também demanda uma tradução para ser entendido – não
instala a tarefa da tradução no coração da nação”.3 E, prossegue ela,
“um certo distanciamento ou issura se torna a condição da possibilidade
de igualdade, o que signiica que a igualdade não é uma questão de
prolongamento ou argumentação da homogeneidade da nação”.4 Butler
pondera que algumas vezes se torna necessária uma espécie de tradução
para que se entenda a própria nação ou construção nacional e que a
igualdade dentro dessa própria nação só seria possível com algum grau
de issura e não como uma homogeneização. De certa forma, o que Butler
argumenta é que o mito da nação, no mundo contemporâneo, só poderia
funcionar através de uma espécie de tradução (ou trabalho de tradução)
a partir de uma “metáfora dissonante” que exporia as contradições e as
issuras da nação.
O futebol brasileiro, como dito, parece não só funcionar como
uniicador nacional, isto é, a camisa que todos vestimos, como também
é representativo de nossos traumas. São bastante clássicas as nossas
constatações de períodos traumáticos para a nação de que podemos fazer
uma espécie de paralelismo com o futebol. A Copa de 1950 e a derrota
da seleção no Maracanã para o Uruguai no inal do campeonato talvez
3
4
BUTLER; SPIVAK. Who sings the Nation-State? Language, politics, belongins, p. 61.
BUTLER; SPIVAK. Who sings the Nation-State? Language, politics, belongins, p. 61.
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seja o mais clássico; mas a recente derrota para a Alemanha, em outra
Copa no país, em Belo Horizonte, por sete a um, parece já fazer parte
do nosso cardápio de traumas. À última derrota, soma-se o período de
turbulência política que atravessa o país desde pelo menos 2013. Nesse
sentido, Marcelino Rodrigues da Silva é muito feliz ao airmar, em outro
texto, que essa derrota abriu espaço para “renegociarmos a imagem
que fazemos de nós mesmos, no futebol e em outros campos”.5 Mas é
importante frisar que essa renegociação está ainda em processo e a ideia
de nosso futebol e de nossa própria nação ainda está em aberto. Retomo
esse ponto ao inal do texto.
A narrativa O segundo tempo não é um texto que irá focar
na seleção brasileira de futebol, mas no clássico gaúcho, mais
especiicamente, no que se convencionou chamar de o “Gre-Nal do
século”. O período traumático da nação não será a ditadura, período de
cicatrizes não fechadas e que ainda é disputado por heranças, no sentido
que Jacques Derrida dá ao termo,6 mas remonta ao período exatamente
pós-ditadura, do governo Sarney, em que a implementação da democracia
e do governo civil não é como sonhada por grande parte da população.
Mas também não é por essas escolhas que o livro não irá ser uma espécie
de “metáfora dissonante” do futebol, do trauma, da memória, da família
e da nação.
Um coming of age
O segundo tempo, de Michel Laub, como aponta Maria Zilda
Ferreira Cury, instaura algumas das preocupações centrais do autor
porto-alegrense,
cujo discurso, iapos de lembranças que buscam reconstruir
o passado, só o faz como possibilidade de fugir à
consciência trágica do presente, num deslocamento “para
dentro”, para o mundo interior de seus narradores, num
voltar-se para um espaço de subjetivação. Narrativas que se
apresentam deslocadas, como “memórias performáticas”
que fazem convergir no espaço da icção a experiência e
o passado, muitas vezes o tempo da infância – tempo em
5
6
SILVA. O que foi feito do país do futebol?, p. 288.
Cf. DERRIDA. Espectros de Marx.
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que melhor se evidencia a linguagem como fenômeno
humano –, e podem ser vistas como “locais de linguagem”
e de exclusivo reconhecimento identitário.7
De fato, o livro supracitado pode ser descrito como um discurso
da lembrança para se tratar de um momento-chave na vida do narrador,
cuja separação dos pais é anunciada às vésperas do “Gre-Nal do século”.
O momento traumático é acentuado, ainda, por ser ele, o narrador, o
responsável por dar a notícia para o irmão mais novo, gremista, aicionado
por futebol, que estava alheio à situação. Pode-se airmar, assim, que a
ancoragem do romance é na memória individual, mas que dialoga, como
será visto, constantemente com uma memória coletiva.
O livro, relembrando momentos da pré-adolescência até a
passagem para a vida adulta, poderia se apresentar como uma espécie de
romance de formação (o Bildungsroman), mas deixaria escapar muitas
das características essenciais do gênero e não é mesmo um romance
de formação, mas de passagem. Nesse sentido, O segundo tempo se
aproxima muito mais de um gênero cinematográico que se tornou
bastante popular na década de 1980 – década em que se passa o narrado
–, o coming of age, cujos exemplos notáveis são os ilmes O clube dos
5 (1985) e Curtindo a vida adoidado (1986), ambos dirigidos por John
Hughes. Neles o drama e a comédia se misturavam, chegando a tempos
mais atuais com um tom muito mais melancólico, como é possível
perceber igualmente em ilmes como As vantagens de ser invisível (2012),
de Stephen Chbosky, ou George Washington (2000), de David Gordon
Green. O coming of age em geral se centra em algum acontecimentochave na vida do protagonista, em que se daria a passagem para a vida
adulta, trazendo transformações em sua personalidade, visão política
ou sexual.
Esse momento-chave na vida do narrador de O segundo tempo se
dá, como dito, no momento da separação dos genitores. O pai estava com
uma amante e a mãe, sofrendo de profunda depressão. Na incumbência
de anunciar isso para o seu irmão mais novo, tendo como enclave o
jogo da semiinal do Campeonato Brasileiro de 1988 (o jogo foi no dia
12 de fevereiro de 1989), em que o Internacional ganha do Grêmio por
dois a um, de virada, com um jogador a menos desde o primeiro tempo,
o narrador retoma períodos que antecedem e postergam o da separação
7
CURY. Novas geograias narrativas, p. 13.
20
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propriamente dita. É interessante notar que esse momento-chave, de
extrema desilusão, da separação dos pais acontece simultaneamente
ao desencanto que o jovem passa a ter em relação ao futebol. Isso já é
anunciado logo na primeira frase do livro: “Hoje o futebol está morto,
e duvido que alguém ainda chore por ele, mas não era assim no dia 12
de fevereiro de 1989”.8 Ao im e ao cabo, parece haver uma sensação
com o que Pasolini denominou também de “futebol de poesia”. “Na era
do futebol como espetáculo globalizado, midiático e transformado em
mercadoria, parece não haver mais espaço para o ‘futebol de poesia’
categorizado por Pasolini”, diz Cornelsen.9
Sendo a narrativa um momento de coming of age é interessante
notar que os três eixos citados por Marcelino, futebol, família e nação,
vão estar entrecruzados em um momento de perda da inocência e todo
o livro é construído a partir da encenação da memória daqueles dias. Na
visão do narrador, o futebol não estaria morto simplesmente porque ele
não poderia se reerguer diante da derrota do Grêmio para o Internacional,
mas porque o futebol já não era ou já não poderia ser o que um dia havia
sido. É bastante notória a nostalgia que se registra a respeito de um
“antigo futebol” da “inocência”, substituído por um jogo modernizado
que avançaria em questões relativas à organização tática, mas ao mesmo
tempo falsiicaria certa “autenticidade”.
Existe um ilme Húngaro bastante signiicativo a respeito: Régi
idök focija, de 1973, dirigido por Pál Sándor (em inglês foi traduzido
como Football of the good old days, algo como “Futebol dos bons e
velhos tempos”). Nele, o saudoso futebol ainda apresenta uma boa dose de
amadorismo e paixão que se encarregaria de dar um certo grau de verdade
ou mesmo validade para o desporto. Não se tratava de dinheiro, nem de
estrelas e de fama, mas de defender certa ideia, concepção de mundo
ou mesmo ideologia, ou seja, o próprio futebol. É assim que o futebol
amador, no ilme, apela para que seu grande goleiro não se proissionalize,
já que isso seria a “morte” de um futebol mais “autêntico”. É notório, por
exemplo, como o discurso produzido em relação ao futebol brasileiro é
carregado dessa nostalgia de uma “autenticidade”, principalmente quando
8
LAUB. O segundo tempo, p. 11.
CORNELSEN. A “linguagem do futebol” segundo Pasolini: “futebol de prosa” e
“futebol de poesia”, p. 194.
9
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se trata dos jogadores que jogavam “pelo amor à camisa”, ou em relação
a clubes que representavam, de fato, algum segmento da sociedade:
Falarmos de “futebol de poesia”, hoje em dia, parece
implicar necessariamente um “olhar nostálgico”. Todavia,
parece-nos que não é por acaso o fato do declínio da
“arte” no futebol ter se desenvolvido sobretudo a partir da
exploração mercadológica do esporte, tornando-o mais
uma “mercadoria”.10
Nesse sentido, a partir do olhar de Pasolini, pode-se dizer de uma
certa semelhança entre a nostalgia do “futebol de poesia”, um futebol de
“antes” e a desilusão com o futebol “atual”, tal qual acontece no livro
de Laub.
Em O segundo tempo, isto está presente também como uma
espécie de clivagem que une tanto o pai ao protagonista quanto este
ao irmão mais novo. O pai, que seria o inaugurador do sentimento
futebolístico do ilho, aos poucos também vai perdendo o encanto pelo
esporte, assim como aconteceu com o protagonista:
À medida que eu me familiarizava com as tradições
do estado, um goleiro que aceitava suborno, um cego
que fazia cálculos sobre posições de clubes na tabela,
um treinador que sacava o revólver em restaurantes de
frutos do mar, o interesse dele foi diminuindo. Em 1989
ainda era possível que o ponteiro esquerdo do Inter, Edu,
reforçasse o orçamento nas férias trabalhando num táxi
em Salvador. Mesmo assim o pai já havia desanimado:
o futebol ensaiava o que viraria em breve, em qualquer
esquina se sabia dos empresários, das cotas das emissoras
de TV, dos julgamentos sobre exames antidoping. Era a
desculpa para ele criar raízes no sofá e só levantar para
suas longas viagens.11
Para o narrador o futebol perdera a magia já antes do “Gre-Nal
do século”, quando do anúncio, pelo pai, da separação; mas o futebol
ainda seria tudo para o irmão Bruno e aquele jogo era a própria vida
CORNELSEN. A “linguagem do futebol” segundo Pasolini: “futebol de prosa” e
“futebol de poesia”, p. 196-197.
11
LAUB. O segundo tempo, p. 15.
10
22
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dele. Chamo a atenção, nessa clivagem, para a nostalgia de um futebol
e, mais especiicamente, de um tipo de futebol brasileiro, no livro, não é
algo como simplesmente dado, mas algo geracional, em que a passagem
da juventude para a vida adulta passa, inclusive, pela desilusão ou perda
de inocência em relação ao esporte.
A passagem para a própria modernidade do futebol aqui pode
ser vista como uma certa tônica do futebol brasileiro e, daí, da própria
nação, cindida entre o impulso modernizante e a nostalgia perdida.
Diversos autores, a exemplo de Marcelino Rodrigues da Silva e José
Miguel Wisnik, indicam esse tipo de impulso que tenta “modernizar”
o futebol – aliás, em toda crise do futebol brasileiro esse argumento é
utilizado – e que, por outro lado, destrói a nossa ideia muito particular
do que seria o futebol. Entre o antigo e o moderno, há uma passagem, a
perda da inocência e o desamparo.
A passagem
O protagonista do livro parece perceber que a passagem é um
processo e não um momento pontual. Apesar de que muitas vezes
tentarmos encontrar o turning point de uma passagem, o que acontece
é que, como um jogo de futebol, não é somente o gol – seu grande
momento – que deine uma partida ou que deine holisticamente o jogo:
Aliás, nunca falei muito sobre os enganos do Gre-Nal do
Século, sobre como eles podem ter inluenciado nos rumos
daquele domingo, porque em geral as mudanças não são
identiicadas apenas num momento. É um processo, ica
mais fácil acreditar, que começa muito antes e termina
muito depois – que perdura ao longo da vida, nunca
desaparecendo por completo. Eu poderia dizer que a
história do meu pai indo embora começou não em 1989,
mas em 1987, ou 1986, ou acho até que em 1985, num
dia em que ele me levou ao mercado público no centro de
Porto Alegre.12
É em 1985 que, pela primeira vez, o narrador conhece Juliana,
amante de seu pai e futura madrasta que lhe daria um terceiro irmão. A
perda da inocência não é a partir de um episódio estritamente traumático
12
LAUB. O segundo tempo, p. 25-26.
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e pontual, mas, justamente, de um processo que vai se construindo desta
data até a decisão do pai de se separar da mãe e se mudar para Goiás.
José Miguel Wisnik é muito feliz ao airmar que “o placar descreve e
não descreve a partida, é ‘justo’ e ‘injusto’. Ao contrário das artes em
geral, a competência pode ser contabilizada porque se traduz em gols.
Mas ao contrário dos outros esportes, a contabilização não dá conta do
acontecimento”.13 Enim, como num jogo de futebol, em que o gol é um
momento, não o acontecimento, a instauração do trauma do passado não
é a separação do pai em si, mas os processos que levam a esse momento.
Na distinção que faz entre o luto e a melancolia, Freud coloca
que “o luto, via de regra, é a reação à perda de uma pessoa querida ou
de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal
etc.”.14 O psicanalista austríaco não coloca que o luto é por uma partida
intempestiva ou decisiva, mas que pode ser engendrado por uma abstração
ou pode estar relacionado a outros fatores que não sejam, simplesmente,
vinculados a uma pessoa com quem temos alguma ligação afetiva.
Se a perda da inocência em relação ao futebol é bastante clara, para
o personagem-narrador também o é o trabalho de elaboração do luto
em relação à própria perda do pai e da família enquanto abstração que
está em jogo: “eu não podia dizer a Bruno que desconiei do pai desde
o início. Não foi só por causa da falência do minimercado, das viagens
da companhia de seguros ou porque ele deixou de ir ao estádio, de nos
levar uma única noite ao cinema ou a um restaurante”.15
O luto, entretanto, não está sozinho. O que temos também é um
trabalho com o trauma, presença insistente na literatura de Laub. Laura
Assis e Karl Erik Schollhammer, ao analisar outro livro do autor, Diário
da queda (2011), vão insistir nesse mote. Fazendo uma leitura deste livro
a partir de um apontamento de Seligmann-Silva a respeito do trauma
freudiano, os autores destacam a volta ao evento traumático, o aprèscoup das cenas que desencadearam o processo:
O termo après-coup (que tem como possível tradução
“depois do golpe”) possui na psicanálise o sentido de
ressigniicação, ou seja, o tempo de um segundo tempo
que dá significado e sentido ao primeiro, exatamente
WISNIK. Veneno remédio: o futebol e o Brasil, p. 111.
FREUD. Luto e melancolia, p. 47.
15
LAUB. O segundo tempo, p. 57.
13
14
24
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como acontece na narração do protagonista de Diário da
queda. Esse “segundo tempo” pode ser visto no livro como
o momento da enunciação, ou seja, o momento posterior
da narração, quando o protagonista reorganiza os eventos
em um discurso estruturado pelos desvios da memória.16
É na reorganização do trauma, através de um esforço de memória,
que o narrador dá sentido ao luto. O trabalho do luto, é bom lembrar,
acontece quando “a prova de realidade mostrou que o objeto amado já não
existe mais”17 e por isso é necessário um retorno (o après-coup), mas em
um segundo tempo – título do livro –, no qual se dá o retorno à memória
e que é também o próprio lugar da tragédia no jogo que acompanhamos.
É no segundo tempo do jogo que o Internacional vira a partida e
o drama vivido pelo narrador – de anunciar ao irmão mais novo, Bruno,
a separação dos pais – se acentua. O próprio gol do time rival daquele
para o qual eles torciam se torna, assim, a instauração traumática:
Eu vi Bruno implodir quando me dei conta de que faltavam
apenas vinte minutos, o resto da partida seria disputado
por atletas fantasmas, visto por uma plateia de fantasmas,
oitenta mil mortos testemunhando o im de uma semana
e de um tempo que não voltariam. Eu nunca mais entraria
num estádio ao lado do meu irmão.18
Tudo aquilo que podia ser
Entre os períodos traumáticos de nosso país, um tem pouco
destaque nas produções artísticas, a Era Sarney. Essa fase de profundas
contradições sinalizava a abertura democrática, mas ao mesmo tempo
colocava como presidente um civil que foi suporte para o regime de
exceção que imperou no país por mais de vinte anos. Ao mesmo passo
em que se pensava em uma nova constituição, acentuava-se um desastre
econômico insinuante desde o im do governo dos militares, cuja forma
de conquista do poder pelos civis foi por eleições indiretas, soterrando
ASSIS; SCHOLLHAMMER. Narrando a queda: temporalidade e trauma em um
romance de Michel Laub, p 61.
17
FREUD. Luto e melancolia, p. 49.
18
LAUB. O segundo tempo, p. 87.
16
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25
o sonho das Diretas Já. Lilia Schwarcz e Heloisa Starling destacam que
a Nova República “começou num clima de muita frustração e pouca
novidade”.19 A Constituição de 1988, marco da Nova República e desse
governo que, enim, era presidido por um civil,
também é imperfeita. Envolveu movimentos contraditórios
e embates formidáveis entre forças políticas desiguais, e
inúmeras vezes errou de alvo. [...] Fruto de seu inevitável
enquadramento histórico, nasceu velha em seus capítulos
sobre o sistema eleitoral e em sua ânsia de regular as
minúcias da vida social. Mas a Constituição de 1988 é a
melhor expressão de que o Brasil tinha um olho no passado
e outro no futuro.20
Destaco na citação acima justamente a percepção de um país
cindido entre um passado que não consegue abandonar – mesmo com
as cicatrizes deixadas pelo regime de exceção – e por um futuro a que
anseia chegar. Como dizia anteriormente, o movimento é semelhante
ao do futebol brasileiro, cindido entre a nostalgia de um futebol mais
“autêntico” ou “de poesia” e o impulso modernizante para os períodos
em crise. Esse movimento, ainda, é semelhante ao da família do narrador
do livro, entre o passado traumático e o processo de luto desenvolvido
em um après-coup da narração, que retoma aqueles momentos.
Apesar de marcas menos destacadas, as agruras do governo
Sarney, as crises econômicas da época do Plano Cruzado, e o próprio
caos social e político do país estão nas páginas do livro e constituem uma
espécie de memória coletiva que não se opõe à memória individual do
narrador, à qual, ao contrário, soma-se. A falência do mercadinho familiar,
o trabalho como vendedor de seguros do pai, o dinheiro contado para o
pagamento das contas da casa e até mesmo a mudança para outra cidade
fazem parte desse pano de fundo da narrativa que vai se confundindo
com o desmoronamento familiar e com a narração do Gre-Nal. É nesse
contexto que se pode falar de um mal-estar que se relete também nos três
círculos – nação, família, futebol – que se entrecruzam no romance: “o
mal-estar é uma sensação que se mistura no dia-a-dia, que vai tomando
formas inesperadas à medida que você se acostuma a ele. A angústia se
19
20
SCHWARCZ; STARLING. Brasil: uma biograia, p. 487.
SCHWARCZ; STARLING. Brasil: uma biograia, p. 488-489, grifos meus.
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torna pior do que o fato temido em si, um fato para o qual você passa a
criar versões detalhadas, cheias de motivos incongruentes”.21
É interessante notar que Laub vai construindo o romance não
como alguém que narra paralelamente cada uma das histórias, seja a do
jogo em si, seja a da família ou da crise da nação. Na narração do livro
esses fatos se sobrepõem como se formassem imagens especulares em
todas essas esferas. Nesse sentido, o livro vai se descortinando como a
passagem da perda de uma inocência que se dá simultaneamente tanto
quanto ao futebol quanto à família e à nação, fazendo com que os ios
que ligam pai e ilhos e ilho e irmão se entrecruzem ao criar essa espécie
de olhar duplo: entre o passado que tem de ser enunciado e o futuro que
será negado. Esse olhar duplo é, no im, a instauração de uma crise:
Na quinta-feira, eu já estava convencido de que o Gre-Nal
do Século amenizaria a decepção de Bruno comigo. Que
cada lance do jogo, e é por isso que os descrevo aqui, como
se fosse um narrador barato nas cabines de imprensa, um
desses homens que comparam o futebol a uma luta, a uma
guerra, a uma vida inteira, seria capaz de amenizar a mágoa
dele comigo – a crise que ele enfrentaria no inal do jogo,
quando já estivéssemos voltando para casa e eu iniciasse
a mais difícil das conversas.22
Utilizo “crise” aqui em um sentido próximo daquele de Husserl,
um momento de profunda divisão, em que se abre possibilidades de
outros caminhos. É certo que quando o ilósofo alemão vai se utilizar
desse termo – em The crisis of European sciences and transcendental
phenomenology –, ele pensa que a crise não é para uma guinada a uma
outra Europa, mas uma retomada, digamos, da ilosoia europeia como
uma categoria universal. Derrida, ao ler Husserl, vai indicar o caráter
duvidoso dessa constatação, já que a crise se daria, sobretudo num
âmbito europeu.23 Situo aqui essa interpretação para o termo “crise” por
indicar, como visto, que um momento de guinada como possibilidade
não necessariamente é em direção a um futuro, mas a um passado e a
um futuro. A crise, via Husserl, pressuporia também um futuro que não
escapa de um pretérito.
21
LAUB. O segundo tempo, p. 61.
LAUB. O segundo tempo, p. 77.
23
DERRIDA. The problem of genesis in Husserl’s philosophy.
22
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27
A crise, portanto, da questão familiar, perpassa o próprio jogo que
acompanhamos e, igualmente, a própria situação da nação. A negociação
aqui não é somente para o que seria, mas o que poderia acontecer a
partir daquele momento que já foi, que já aconteceu, a negociação de
um colapso instaurado por um trauma em processo de luto. O narrador
fazia planos sobre como procederia em relação ao irmão – no caso, fugir
de casa –, mas o próprio inesperado do jogo, isto é, a derrota do Grêmio,
coloca-se como uma mudança de atitude:
Você ainda não entendeu por que o futebol é importante
nesta história? Só um jogo como o Gre-Nal do Século seria
capaz de deixar Bruno assim. Só um jogo desses me poria
diante da reação dele à perda. Era como se o resultado
da minha fuga estivesse ali, antecipado na aparência de
Bruno diante da tragédia, ele como um fio de pavor e
impotência dependente de um gesto meu. Por um segundo
você percebe o que signiica essa tragédia, a verdadeira
dimensão dela, a iminência física de não tolerar viver com
ela, e é então que você descobre que existe um limite dentro
de você. Chame esse sentimento como quiser, mas é algo
que está lá e para mim apareceu aos quinze anos.
[...]
Era como se eu estivesse dando adeus a tudo o que não
tivesse a grandeza desse milagre. Como se o entorno do
milagre icasse obscurecido, e não apenas o compromisso
inútil do futebol. Não apenas o envolvimento inútil, a dor
inútil depois de um jogo como o Gre-Nal do século, o que
só aumentava a consciência de tanto desperdício, mas tudo
o mais não dissesse respeito a Bruno. Tudo que não fosse
tão essencial quanto o que eu sentia pelo meu irmão. O que
naquele momento, enquanto iniciávamos a caminhada de
volta para casa, eu me dei conta de que ainda era capaz de
fazer pelo meu irmão.24
A crise instaurada no romance, por certo, não pressupõe uma saída
rumo ao abandono do passado – como o narrador até cogita fazer – mas a
algo que o cinde porque o passado (e o irmão mais novo) ainda o prende.
24
LAUB. O segundo tempo, p. 96.
28
Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.3, p. 15-31, 2016
Trabalhos do luto
O narrador escolhera o irmão Bruno para icar do lado dele ao
invés de fugir para a praia como pensava que faria. Um ano depois da
mudança do pai para Goiás, ele vem visitar o narrador e o irmão:
Foi por causa da opção por Bruno, que me obrigou a não
mexer mais o passado, a não tentar consertá-lo, e por
consequência eliminar qualquer chance de entendimento,
qualquer possibilidade de perdão ou reencontro, que na
churrascaria eu olhei para o pai, e lembrei da mãe, e até
sorri e iz caretas para Marcos consciente de que eu não
tinha mais nada a ver com eles.25
Apesar de dizer que não remexeria o passado, o narrador faz
exatamente isso ao longo das páginas do livro. De certo se poderia
conjecturar que a negação do passado aponta para uma direção oposta no
romance: uma possibilidade de reencontro. Entretanto, esse processo não
é de contemplar a unidade, mas de perceber, justamente, a issura, a crise.
Hugo Achugar, ao falar de um texto de José Joaquim Brunner, airma que
Não é por acaso que Brunner mencione a família
e a escola como um dos âmbitos onde as épocas de
mudança produzem maiores efeitos, pois esses lugares
representam, no nível do público e do privado, os âmbitos
onde se processa e se constrói a memória; seja esta,
respectivamente, a memória pessoal, a institucional ou
a estatal. Um campo de batalha onde o presente debate o
passado como uma forma de construir o futuro.26
De alguma maneira podemos estender o que Achugar falar a
respeito desse autor a O segundo tempo, de Laub. É entre espaços
privados (a família) e públicos (encarnados no futebol e, principalmente,
no estádio), ou seja, entre a memória individual e coletiva, que a memória
do próprio narrador se debate.
De certa maneira seria interessante pensar o futebol no livro,
mas não só no livro, como uma espécie de próximos, conforme Ricoeur,
LAUB. O segundo tempo, p. 105.
ACHUGAR. Ensaio sobre a nação no início do século XXI: breve introdução in situ
/ ab situ, p. 201.
25
26
Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.3, p. 15-31, 2016
29
cujo trajeto de atribuição da memória “corta transversal e eletivamente
tanto as relações de iliação e de conjugabilidade quanto as relações
sociais dispersas segundo as formas múltiplas de pertencimento”.27 Esses
próximos, atuariam
como em círculos concêntricos que se abrem a partir
de nosso eu individual, estariam, além da família
consanguínea ou simbólica, a escola, a geração, a rua
onde moramos e o nosso bairro, os grupos de sociabilidade,
os amigos, o gênero, as idades da vida, as leituras e tantas
outras mediações e instâncias.28
Como anunciado desde o início do texto que certa literatura em
que o futebol aparece como mote ou tema vincula os eixos família, nação
e futebol. Assim, pode-se pensar que o futebol trabalharia exatamente
como articulador tanto da memória individual (família) quanto da
memória coletiva (nação). Nesse sentido, esse trabalho de memória,
seguindo os passos de Achugar, é uma disputa, um campo de batalha, de
um debate sobre o passado como um desejo de construção de um futuro.
Disse que retomaria as considerações de Marcelino sobre a derrota
do Brasil diante da Alemanha em 2014. O pesquisador airma que ali se
abria espaço para uma renegociação da imagem que fazemos de nós, o
que não deixa de ser um trabalho de memória e que perpassa, inclusive,
o futebol, ainda mais se o entendemos como esse próximos. Cindido
entre o passado e o futuro, o narrador de O segundo tempo conclui nas
palavras inais do romance:
O que sei, e essa também é uma sensação nítida até hoje,
é que eu já não tinha vontade de chorar como na noite
anterior. Eu já não era capaz de sucumbir como na noite
anterior. Eu não conseguia mais me deixar levar até a
última lágrima, como iz no escuro do quarto de hotel,
Bruno dormindo ao meu lado até que o sono também me
apanhasse, e me levasse para este limbo sem dilemas nem
sustos, o presente opaco e eterno que sobreviveu ao jogo,
ao domingo, a 1989 e a todos nós.29
27
RICOEUR. A memória, a história, o esquecimento, p. 141.
NEVES. Nos compassos do tempo. A história e a cultura da memória, p. 29.
29
LAUB. O segundo tempo, p. 112.
28
30
Aletria, Belo Horizonte, v.26, n.3, p. 15-31, 2016
Não sei se é uma questão de perdão como Ricoeur aponta – “não
pode haver perdão a não ser que se possa acusar alguém, presumi-lo ou
declará-lo culpado”30 –, mas de fazer o trabalho do luto. E esse processo
não vai ser superado; é o que parece indicar O segundo tempo, sem o
retorno ao próprio trauma.
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