• Bruno Vaiano*
Atualizado em
 (Foto: Ricardo Parada/Cia. das Letras)

(Foto: Ricardo Parada/Cia. das Letras)

"Não é preciso queimar livros para destruir uma cultura. Só faça com que as pessoas parem de lê-los.”

― Ray Bradbury, autor de Farenheit 451, obra distópica que, por ironia, fala de um futuro em que os bombeiros são responsáveis por queimar livros.

Leyla Perrone-Moisés é professora de literatura na era de 50 Tons de Cinza. E faz mais de 50 anos que está na profissão. Hoje na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, a especialista lança Mutações da Literatura no Século 21 (Cia. das Letras, R$ 44,90), livro que, qualquer leitor dedicado poderá atestar, mais parece uma bússola para se guiar pelo mundo confuso da literatura contemporânea.

Como já aconteceu com o rock, com Elvis Presley, com Deus e mais um monte de coisas, a morte da literatura já foi anunciada incontáveis vezes. Mas ao contrário do que ocorre com Elvis — que, até onde se sabe, era um ser vivo — não há teóricos da conspiração penando para ressuscitá-la. Apesar disso, exatamente como acontece com o rock, a literatura já resiste, embora não incólume, a mais de um século de gente respeitável pensando no seu fim

E é assim que o livro começa. Logo nas primeiras páginas, o diagnóstico: uma lista melancólica e interminável de ensaios de crítica literária que discutem o fim da arte da palavra. O Último Escritor, Desencanto com a Literatura, O Último Leitor, A Literatura em Perigo, O Silêncio dos Livros etc. Pois é, não vou continuar, não quero arrancar lágrimas.

O livro, porém, longe de endossar o ar de pessimismo que paira sobre a lista de títulos acima, passa um pente fino consciente pelas manifestações literárias e críticas de nosso tempo. Em sua primeira metade, há passagens pelo estado atual da crítica literária e do ensino de literatura e pela própria definição de literatura pós-moderna. Depois, reflexões esclarecedoras sobre os fenômenos que hoje podemos ver surgir escondidos detrás dos bestsellers nas boas livrarias, como o retorno dos longos romances, a autoficcção e os autores que escrevem sobre outros autores. 

Com a GALILEU, Leyla falou sobre a relação da nossa geração com os livros, sobre a importância da arte, sobre Karl Ove Knausgård ― cujo tradutor, Guilherme da Silva Braga, também conversou com a revista ― e, claro, sobre o momento atual da literatura. 

Você afirma que nossa época é a de “pensar o passado recente e criticar os caminhos do presente. Só depois dessa fase poderão surgir ‘pensamentos novos’. E deixaremos de vê-la como ‘pós’, para vê-la como ‘pré’ alguma coisa que ignoramos”. Outras gerações foram capazes de perceber o surgimento de um movimento? Ou nós podemos estar vivendo um “pré” nesse exato momento sem nos dar conta disso?

"Acho que nenhuma geração tem consciência imediata de que está participando de um movimento novo e importante.""

Acho que nenhuma geração tem consciência imediata de que está participando de um movimento novo e importante. A percepção de um “pré” e de um “pós” só vem num momento posterior, quando as obras daquela geração são vistas em conjunto e mostram traços comuns muito diferentes do que as da geração anterior.

Entretanto, em alguns momentos da história os escritores sentem que algo importante está acontecendo no mundo, como foi o caso do romantismo, anunciador e contemporâneo da Revolução Francesa. Diante daquela mudança, alguns exprimiram a nostalgia do passado, outros o entusiasmo pelo  futuro.

A diferença é que atualmente os homens sentem que há uma mudança positiva e acelerada nas ciências e nas tecnologias, mas nas sociedades só vêem a proliferação da violência, das guerras e do terror, sem um projeto geral de melhoria. E a literatura atual se limita a apontar essa situação, “sem ideal nem esperança”, como no poema Tabacaria de Fernando Pessoa.

Eu adoro que você tenha dedicado um trecho do livro a Karl Ove Knausgård. Se por um lado o que ele faz é boa literatura, por outro tem um apelo popular que poucos livros considerados literários têm. Como você explica a existência de uma obra tão “afinada” com o espírito de seu tempo?

A obra de Knausgård gerou identificação porque ele narra uma existência comum em nosso tempo, desde a infância numa família problemática, passando por uma juventude roqueira e entorpecida pelo álcool, até a maturidade e a formação de uma nova família, que ele deseja tornar mais feliz do que a sua de origem.

Se fosse só isso, sua obra seria apenas um bom documento de época. Mas ela é mais do que a narrativa minuciosa de uma vida comum. Ela é movida por um desejo maior do que o de simplesmente ser feliz: o desejo de ser escritor, que o leva a ser um observador atento, que reflete sobre o que vê em sua volta, fazendo o leitor pensar em suas próprias experiências. A condição para a autoficção ser boa literatura é não ser somente uma exibição da pessoa do autor, como no Facebook, mas ser uma abertura para o mundo e para o outro a que se destina, o leitor.

Você considera “útil” uma palavra perigosa? Muitas discussões sobre a importância da literatura passam por sua “utilidade”. Mas julgar a arte por sua finalidade prática parece algo perigoso.

"É por essa capacidade de modificar a realidade que a arte é considerada perigosa por aqueles que não desejam uma realidade diferente daquela em que vivemos.""

Apalavra "util” não é perigosa; depende do sentido que lhe damos. Nas sociedades atuais, considera-se útil apenas o que é aplicável na vida cotidiana, visando a uma melhoria imediata ou a um lucro monetário. Nesse sentido, a arte não é útil. Ela não nasce de uma finalidade básica, como a moradia e a alimentação. Ela nasce da necessidade humana de algo mais do que a simples sobrevivência. Ela não tem aplicação imediata.

A arte só é útil indiretamente, na medida em que ela lida com objetivos superiores, como o desejo de enxergar e compreender a realidade para além de sua aparência e a capacidade de alterá-la pela imaginação. E é por essa possibilidade de modificar a realidade que ela é considerada perigosa por aqueles que não desejam uma realidade diferente daquela em que vivemos.

A minha geração possui um fetiche pelo livro como objeto que a geração anterior não cultivou. Mas, no geral, não há discernimento entre entretenimento, divulgação científica, arte, ficção científica e romances policiais nos canais do YouTube que comentam livros. Você acredita na ideia de que obras massificadas podem abrir caminho para que os leitores façam a transição para a literatura estudada na universidade? Ou as pessoas tendem a estagnar? 

Atualmente, as obras mais populares de qualquer gênero – ficção científica, policial, sentimental – são diluições de obras literárias anteriores mais complexas e mais inventivas, que os leitores das obras massificadas desconhecem por falta de cultura.

Não acredito nessa transição, porque as obras massificadas habituam os leitores a histórias simples e a uma linguagem fácil, feita de clichês. Os leitores comuns recusam o esforço exigido pela boa literatura, ou por não terem acesso a ela, ou porque esta lhes é apresentada na escola como coisa velha, chata e obrigatória. Se eles tivessem sido devidamente iniciados à leitura de boas obras literárias desde a infância (já que há boas obras para todas as idades), eles descobriram o prazer e o conhecimento que elas oferecem. E os jovens veriam que o livro não é apenas um objeto para por na estante, porque tem uma capa chamativa e porque os colegas o tem, mas uma porta para outros mundos mais significativos e mais reais do que aquele dos super-heróis.

+ Leia também: A nada mole vida de um tradutor de norueguês

+ Leia também: Quanto mais você lê, mais você vive, sugere pesquisa

*Com supervisão de Nathan Fernandes.