Academia.eduAcademia.edu
9 788563 524614 ISBN 978-85-63524-61-4 Escrever é , em si, tanto um exercı́cio de liberdade quanto um processo libertador. Ao escrever nos permitimos criar nosso pró prio conhecimento e contagiar os outros com nossas ideias. Nã o estamos mais submetidos a ideias alheias, aı́ está a liberdade. Da mesma forma, nossos crıt́icos internos, o tempo que nos enclausura, nossa insegurança, sã o todos carcereiros da nossa imaginaçã o. Escrever é , portanto, tomar-lhe as chaves e libertar a criatividade. Aı́ está a libertaçã o. Por outro lado, escrever é um risco. E desnudar-se diante do leitor, deixar ali à mostra suas ideias mais ın ́ timas. E nã o falamos de uma nudez fugidia, uma olhadela furtiva. Escrever é irmar um compromisso com suas ideias. Sim, porque maculado o papel com a tinta na prensa, suas ideias estã o ali eternizadas para quem se dispuser a ler. Tamanho compromisso com as pró prias ideias nã o é tarefa simples. E necessá ria boa dose de segurança e ousadia. Foi este o exercıćio que cada um dos autores dos capıt́ulos desse livro se propô s, assumir responsabilidade por suas pró prias ideias e colocá -las no papel. Foi també m esse o nosso intuito como organizadores do livro, participar desse processo libertador. Nã o buscamos apenas libertar quem já escreveu, como os autores de cada capıt́ulo, nossa meta vai alé m. Querıámos estimular que nosso pú blico-alvo, uma categoria cuja liberdade é tã o tolhida, o professor, se liberte por meio da escrita també m. Realização Os organizadores. PROGRAMA NOVOS TALENTOS PROGRAMAS NOVOS TALENTOS Organizadores: Ana de Medeiros Arnt Cecília França Eduardo Bessa Divulgação Científica e Redação para Professores Copyright © dos organizadores ORGANIZADORES: Ana de Medeiros Arnt Cecıĺia França Eduardo Bessa CAPA Hudson Freire PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Rogé rio Alves Feitosa REVISÃO Joci Rosa IMPRESSÃO Grá fica e Editora Sanches Ltda. E-MAIL DA EDITORA editoraideias@gmail.com 001.31 D6189 Walter Clayton de Oliveira CRB 1/2049 ̃́Divulgaçao cientıfica para professores. ̃́ ivulgaçao cientıfica para professores / E D ́ duardo Bessa; Cecılia França; Ana de Medeiros Arnt (Org.). - T ́ angara da Serra: Ideias, 2015 181 p. ISBN 978-85-63524-61-4 Inclui bibliografia ̃́ . Divulgaçao cientıfica. 2. Produçao de texto. 3. Formaçao docente. 1 Í. Tıtulo. (65)3326.9816 “Escrever é fácil: se começa com uma letra maiúscula e se termina com um ponto final. No meio se colocam as ideias.” Pablo Neruda Para a minha irmã intelectual, Lavínia Schwantes (A.A.). Aos meus pais, ao meu esposo, às minhas filhas, sempre companheiros, por todo amor que temos... e a todos que, como nós, sonham e trabalham incansavelmente para a edificação de um mundo radicalmente diferente deste que temos (C.F.). Para os escritores da minha família, Marina, Mário e José Renato (E.B.). SUMÁRIO Apresentaçã o .......................................................................................................11 PARTE 1: PUXANDO PAPO O QUE E DIVULGAÇAO CIENTIFICA? .........................................................15 Eduardo Bessa A IMPORTANCIA DA DIVULGAÇAO CIENTIFICA...................................19 Rafael Bento da Silva Soares DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE .....................29 Cecıĺia de Campos França SER PROFESSOR, LEITOR E ESCRITOR: POSSIBILITAR OUTROS MODOS DE OLHAR E AGIR NA SOCIEDADE ...........................................47 Ana de Medeiros Arnt PARTE 2: FERRAMENTAS PARA USAR E SUBVERTER DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES ............................................57 Eduardo Bessa A DOR E A DELICIA DE SER JORNALISTA DE CIENCIA .....................67 Reinaldo José Lopes O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS ..........................79 Mauro F. Rebelo COMO, POR QUE E ONDE CRIAR UM BLOG?...........................................97 Atila Iamarino TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ?...105 Mauro F. Rebelo SUMÁRIO PARTE 3: E AÍ, QUE BICHO DEU? LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL....................................................................................131 Jane Ferreira Senra e Silva E POSSIVEL APRENDER A TRATAR A INFORMAÇAO NA EDUCAÇAO INFANTIL?..................................................................................145 Luciani Gallo PROJETO MUSICALIZAÇAO NA ESCOLA ................................................151 Maria Angela Fabrini Gaspar O ACUMULO DE LIXO NO PLANETA ........................................................159 Maria Elizabete e Silva Joselaine Oliveira Santos O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT...................................................................................165 Demerval Pires Gaspar Colaboradores ................................................................................................177 NECTAR ...............................................................................................................181 APRESENTAÇÃO Durante as nossas experiê ncias junto a professores de ensino fundamental e mé dio, nos deparamos frequentemente com relatos sobre a dificuldade em escrever. Isso nos surpreendeu em parte, porque nó s trê s adoramos escrever, fazemos disso uma prá tica frequente em nossas profissõ es e acreditá vamos que fosse um há bito comum a todo professor. Foi com a intençã o de restaurar e reafirmar esse gosto pela escrita que iniciamos um curso pelo Programa Novos Talentos, da CAPES, e que resultou nesta publicaçã o. Na primeira parte do livro, apresentamos uma problematizaçã o teó rica a partir de nossas experiê ncias como docentes, formadores de professores no campo das Ciê ncias e divulgadores de Ciê ncias. Discutimos o que é divulgaçã o cientıf́ica, por que nos preocuparmos em escrever sempre e qual o papel do professor na produçã o de textos. Na segunda parte, continuamos com conhecimentos bastante prá ticos. Ali, indicamos formas de escrever com maior eficiê ncia, com mais criatividade, e damos sugestõ es de como divulgar os textos produzidos. Na ú ltima parte, trazemos o resultado do trabalho dos professores que frequentaram nosso curso. Eles apresentam algumas ricas experiê ncias que tiveram em sala de aula, colocando em prá tica aquilo que aprenderam no curso e permitindo-se escrever. Adorarıámos poder ter com cada leitor a oportunidade que tivemos de sentar e conversar por horas a fio. Você s, leitores, nos contariam muito do que já fizeram, nos falariam de seus medos. Nó s, autores, compartilharıámos os nossos e contarıámos um pouco do que sabemos sobre redaçã o e ciê ncias. Na impossibilidade disso, este livro visa a resgatar parcialmente essa oportunidade. APRESENTAÇÃO Procuramos, nos textos aqui apresentados, estreitar o nosso diá logo e contagiá -los com o prazer que sentimos em poder deixar nossa palavra, nosso olhar, nosso entendimento registrado como forma de provocar um debate, uma discussã o, uma discordâ ncia ou, quem sabe, até uma concordâ ncia com nossos pontos de vista. De qualquer forma, o importante é preservar este canal de relacionamento e interlocuçã o, pois temos clareza, parafraseando Leonardo Boff, de que “todo ponto de vista é somente a vista de um ponto”. Com isso, reconhecemos a importâ ncia que esta publicaçã o tem em nossa trajetó ria como pesquisadores, cientistas, educadores e pessoas, pela valiosa oportunidade de levar nossos textos a lugares longın ́ quos e inimaginá veis para nó s. 1 PARTE 1: PUXANDO PAPO O QUE É DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA? Eduardo Bessa Divulgar vem do latim divulgo e tem a partıćula “vulgar” em sua constituiçã o, que se refere à quilo que é comum, trivial. “Vulgo” tem a mesma origem de volks em alemã o, o folk do nosso folclore. Apesar de “vulgar” ter assumido conotaçã o pejorativa, divulgar significa tornar de domı́nio pú blico. Assim, nã o há princıp ́ io mais nobre à queles que constroem o conhecimento do que torná -lo de domın ́ io pú blico, papel a que se presta a divulgaçã o cientıf́ica. Existem muitas definiçõ es de divulgaçã o cientı́fica, todas elas vá lidas e cheias de defensores. Cada autor de capıt́ulo dará a sua definiçã o, mas achei por bem dar uma definiçã o aqui no inıćio do livro, de maneira que todos saibam a que veio esse volume. A definiçã o dada acima foi bastante ampla: qualquer tentativa de tornar a ciê ncia acessıv́el ao pú blico leigo seria divulgaçã o. Mas há quem excetue daı́ o ensino escolar de Ciê ncias. Outros retiram o jornalismo cientıf́ico mais formal. Ao mesmo passo que a ciê ncia progride, sua permeabilidade na sociedade també m vem aumentando. Os inegá veis progressos alcançados no ú ltimo sé culo em ritmo exponencial tê m passado a integrar o dia-a-dia de cada ser humano, o que levou nosso tempo a ser conhecido como “a era da informaçã o”. E bem verdade que predomina, para a populaçã o, o acesso aos produtos da ciê ncia, suas tecnologias. Contudo, o conhecimento cientıf́ico é hoje, també m, bem pú blico e se dispõ e a ser acessıv́el a todos por meio de diversas formas. O importante é 16 O QUE E DIVULGAÇAO CIENTIFICA? que, se a ciê ncia ainda nã o é acessıv́el a todos, isso nã o decorre da natureza intangıv́el desse empreendimento, mas da ineficiê ncia dos que a tentam popularizar. Contudo, ter acesso a informaçõ es nã o é suficiente, é preciso ir alé m. Para falar sobre o que é divulgaçã o cientıf́ica, vou evocar outro conceito controverso: a pirâ mide DIKW. Profissionais da á rea de teoria da informaçã o e de gestã o do conhecimento há anos vê m discutindo e modificando esse conceito sem chegar a um consenso, mas tentarei defini-lo aqui. A pirâ mide DIKW é uma hierarquia que sugere a seguinte ordenaçã o: dados (D), informaçã o (I), conhecimento (K, de knowledge na sigla em inglê s) e sabedoria (W, de wisdom na sigla em inglê s). Dados sã o a base da hierarquia. Dados agrupados ordenadamente em torno de um tema comum compõ em a informaçã o. Adicionando-se significado a isso, temos o conhecimento. Por fim, se usamos esse conhecimento para tomar decisõ es mais acertadas, o transformamos em sabedoria. Capaz de ajudar a tomar decisõ es vira... Dotada de valor vira... Agrupado em torno de um mesmo assunto vira... O objetivo da divulgaçã o cientıf́ica deve transcender um conjunto de dados enciclopé dicos. Mesmo que esse conjunto de dados seja interessante para o leitor, ater-se apenas a eles é subaproveitar o que a divulgaçã o cientıf́ica pode ter a Eduardo Bessa 17 contribuir. A boa divulgaçã o cientı́fica deveria aspirar à s tomadas de decisã o pautadas na informaçã o e prover o leitor de dados organizados e dotados de valor que lhes permitiriam viver melhor. A divulgaçã o cientıf́ica é feita via qualquer meio de comunicaçã o em massa. Toda aquela divulgaçã o feita por meio de canais jornalıśticos é conhecida como jornalismo cientıf́ico. Aı́ incluem-se a televisã o, revistas e jornais, sites noticiosos e rá dios. Alé m disso, espaços de educaçã o nã o formal, como parques e museus, livros e blogs, sã o canais frequentes de divulgaçã o cientıf́ica. Uma campanha na Inglaterra visava a divulgar o pensamento crıt́ico por meio de cartazes nas traseiras dos famosos ô nibus de dois andares. De fato, tentar listar todas as formas possıv́eis de divulgar a ciê ncia é tarefa á rdua e infinita. E O PROFESSOR COM ISSO? Ningué m duvida que a rotina de trabalho do professor já é atribulada o suficiente. Uma alta carga horá ria, frequentemente em colé gios diferentes, para completar o orçamento. Trabalho levado para casa, seja preparando aulas ou corrigindo avaliaçõ es. Isso sem falar nas atribuiçõ es burocrá ticas da categoria. Entã o por que assumir mais uma tarefa? Como vimos, divulgar ciê ncia é torná -la de domın ́ io pú blico. Assim, ensinar ciê ncias pode ser considerada a forma mais corriqueira de divulgaçã o cientı́fica a que a grande maioria das pessoas terá acesso. O professor de disciplinas cientıf́icas nada mais é do que um divulgador que objetiva familiarizar seus alunos com a ciê ncia, dar significado a ela na vida de cada um e permitir que os alunos se pautem nos conhecimentos dessa natureza para tomar suas decisõ es. Mas há alguns empecilhos à efetiva atuaçã o do professor na condiçã o de divulgador. 18 O QUE E DIVULGAÇAO CIENTIFICA? Na educaçã o bá sica, é notá vel a dependê ncia que o professor tem do livro didá tico. Tais livros sã o uma ferramenta eficiente na delimitaçã o da ementa como auxıĺio na organizaçã o dos assuntos e como base para o professor. No entanto, na maioria das vezes, o professor acaba transformando sua maté ria numa transmutaçã o do livro didá tico. Em parte, isso decorre da insegurança do docente, em parte, da falta de tempo. Em todo caso, é importante que o professor se autorize a produzir o seu pró prio material didá tico sempre que possı-́ vel. Muito se tem falado sobre as deficiê ncias dos livros didá ticos, seu distanciamento da realidade do aluno, seu texto hermé tico. Mas talvez essas deficiê ncias nã o fossem tã o notá veis caso houvesse menos dependê ncia deste por parte do professor. Assim, ter noçõ es de divulgaçã o cientıf́ica, habilidade linguıśtica e familiaridade com veıćulos de divulgaçã o sã o saberes interessantes para os professores. Mesmo que o professor, tı́mido, ainda nã o queira começar escrevendo seu material, algum esforço deveria ser feito no sentido de apresentar aos estudantes os veıćulos de divulgaçã o cientıf́ica. Existe divulgaçã o de boa qualidade em revistas, blogs, programas de televisã o, museus, etc. Sã o inú meras opçõ es nos mais diversos formatos e para todos os paladares. Assim, o professor ofereceria autonomia ao estudante para buscar aquilo que lhe interessa, aumentando o leque de experiê ncias culturais a que eles estã o expostos. Ao mesmo tempo, essa fase pode ser o inıćio do processo de acú mulo de vivê ncias que futuramente enriquecerã o as iniciativas pró prias do professor. As quais sugiro, enfaticamente, que comecem o quanto antes, já que escrever se aprende escrevendo. A IMPORTÂNCIA DA DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA Rafael Bento da Silva Soares Falar da importâ ncia da divulgaçã o cientıf́ica é falar da importâ ncia que a pró pria ciê ncia tem em uma sociedade. Durante grande parte do tempo, nã o nos demos conta de como os conhecimentos cientıf́icos sã o extremamente necessá rios, ou de como, muitas vezes, nossas vidas dependem disso. Neste capıt́ulo, trataremos nã o só da importâ ncia da ciê ncia, mas també m de como a divulgaçã o cientıf́ica pode auxiliar no entendimento e na aplicaçã o de conceitos cientıf́icos pelas pessoas que ainda estã o em perıo ́ do de aprendizagem formal na escola e pelos que já saıŕam dela. O conceito de divulgaçã o assumido por este capıt́ulo nã o engloba a educaçã o formal escolar. Trata-se aqui de textos jornalıśticos, textos de opiniã o, museus, exposiçõ es, livros, documentá rios, sites, blogs e tudo mais que nã o é obrigató rio na escola, mas que poderia e deveria ser estimulado por ela. Para quantificar a importâ ncia da ciê ncia, sempre vamos ter que considerar em que contexto ou de qual sociedade estamos falando. Isso porque as pessoas vã o precisar de conhecimento na medida em que esse conhecimento interferir no seu dia-a-dia. Para ilustrar, podemos usar um exemplo extremo: em uma tribo nô made das savanas africanas, saber como funciona a eletricidade nã o tem a mesma importâ ncia que para a maioria da populaçã o, que segue o padrã o ocidental de vida que mais conhecemos, em que a eletricidade está tã o presente e da qual dependemos tanto. 20 A IMPORTANCIA DA DIVULGAÇAO CIENTIFICA Sendo assim, podemos perguntar: qual é o valor do conhecimento cientıf́ico na nossa sociedade brasileira? Podemos dividir a importâ ncia da ciê ncia em duas á reas: uma mais prá tica e aplicada – que interfere diretamente no dia-a-dia das pessoas e que é muito influenciada pelos avanços tecnoló gicos disponıv́eis no cotidiano – e outra que é a socioeconô mica – em que o progresso cientıf́ico-tecnoló gico faz parte de um organismo maior e interage com poderes polıt́icos, econô micos e culturais, sendo ele mesmo um poder nessa relaçã o. Vamos discutir cada uma dessas á reas mais a fundo e mostrar como a divulgaçã o cientıf́ica pode auxiliar aumentando o acesso a esse conhecimento cientıf́ico tã o necessá rio. CIENCIA PARA O COTIDIANO Aconteceu, certa vez, que um rapaz estava limpando a caixa de gordura de sua casa com soda cá ustica e acabou deixando cair um pouco dessa soda no braço. Imediatamente, foi lavar o braço com á gua, o que acabou por deixar a queimadura pior. Ele nã o sabia ou nã o se lembrava, mas jogar á gua em uma base forte, como é a soda cá ustica, gera uma reaçã o exoté rmica que libera calor e acaba queimando mais ainda a pele. Essa maté ria de á cidos e bases da Quım ́ ica faz parte do currıćulo escolar, ou seja, essa pessoa passou por essa aula no seu tempo de colé gio, mas, muitas vezes, os alunos nã o lembram ou nã o percebem a ligaçã o e a importâ ncia que isso tem na sua vida fora da escola. Se essa pessoa tivesse lembrado das suas aulas de Quım ́ ica, saberia que a melhor forma de lavar uma base é com algo levemente á cido, como o vinagre, que acaba por neutralizar a base forte. O mesmo ocorre ao contrá rio: quando se entra em contato com um á cido forte, o correto é se lavar com uma base leve, como um pouco de bicarbonato de só dio. Rafael Bento da Silva Soares 21 Nesse mesmo sentido, saber minimamente como funciona a eletricidade permite que uma pessoa nã o faça reparos elé tricos com as mã os molhadas de á gua, e conhecer a Teoria da Evoluçã o pode convencer uma pessoa a nã o interromper um tratamento com antibió tico, evitando selecionar bacté rias resistentes ao tratamento. Pode-se perceber, com esses exemplos, a importâ ncia de alguns conhecimentos que já estã o diretamente ligados ao nosso cotidiano. Esta presença no dia-a-dia depende de como a sociedade assimila os produtos gerados pela ciê ncia na forma de tecnologia, que pode ser consumida pelas pessoas, sendo, nesses exemplos, a soda cá ustica, o fornecimento de eletricidade e o medicamento. Esses produtos da ciê ncia, transformados em tecnologia, estã o em toda a parte de nossa cultura, e saber como funcionam permite que os utilizemos da melhor maneira possıv́el, nã o só para a nossa proteçã o, como nos exemplos anteriores, mas també m como uma forma de ascensã o social. Existe uma correlaçã o entre nıv́el de conhecimento cientıf́ico e classe social, em que pessoas com mais conhecimento cientıf́ico tê m melhor condiçã o socioeconô mica. CIENCIA PARA A CIDADANIA Pouco tempo antes da Segunda Guerra Mundial, a influê ncia do conhecimento cientıf́ico-tecnoló gico na vida do cidadã o comum ainda era muito restrita, mas foi no pó s-guerra que essa presença foi tomando corpo na sociedade, com avanços muito significativos, graças à rá pida transferê ncia de resultados de pesquisas cientıf́icas para á reas como a medicina – em que podemos citar a descoberta dos antibió ticos – e a tecnologia – com a invençã o do radar e de materiais sinté ticos, por exemplo. Esses desenvolvimentos tiveram um grande 22 A IMPORTANCIA DA DIVULGAÇAO CIENTIFICA impacto mundial, fazendo com que a ciê ncia assumisse seu papel no cotidiano das pessoas, nos jornais e nas conversas informais. Claro que o contın ́ uo aumento do nıv́el educacional que vinha acontecendo no mundo ajudou na popularizaçã o de todos os conhecimentos, inclusive do cientıf́ico. Até esse ponto, havia uma confiança plena que fazia com que a sociedade pouco interferisse no processo de geraçã o desse conhecimento, afinal, a ciê ncia era vista sempre como sinô nimo de avanço e progresso. Mas, como toda empreitada humana, a ciê ncia começou a mostrar suas falhas e seu lado perverso. O impacto ambiental causado pelo desenvolvimento, o esgotamento de recursos naturais e questõ es é ticas importantes també m começaram a despontar, até que o sım ́ bolo maior de como empregar o conhecimento cientıf́ico em algo perigoso mostrou-se de forma radical: as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Fica clara, para a sociedade, neste momento, a necessidade de controlar o processo cientı́fico para prevenir seus impactos negativos. E o primeiro passo para esse controle é entender o processo. Por isso, nã o foi coincidê ncia que neste pó s-guerra é que começaram a surgir iniciativas mais sistemá ticas de popularizaçã o da ciê ncia e tecnologia. Um exemplo de tema polê mico atual envolvendo esse controle da pesquisa cientıf́ica pela sociedade é o caso das cé lulas-tronco humanas embrioná rias, que teve sua constitucionalidade posta à prova em votaçã o no Supremo Tribunal Federal em 2008. Parte da sociedade estava do lado dos cientistas, que queriam autorizaçã o para usar embriõ es congelados, gerados para fertilizaçã o in vitro, mas que nã o iriam mais ser utilizados pelos doadores, para pesquisas na á rea de regeneraçã o de tecidos. Apesar dos grandes benefıćios futuros dessas pesquisas para a saú de, muitos setores da sociedade levantaram-se contra essa té cnica, apontando questõ es é ticas e religiosas. Por causa dessa movimentaçã o da sociedade, o Rafael Bento da Silva Soares 23 caso foi levado ao Supremo Tribunal Federal, que acabou votando a favor das pesquisas com as cé lulas-tronco embrioná rias. Esse caso deixou claro para todos, inclusive para os cientistas, que a decisã o de como a pesquisa deve ser feita no Brasil passa pelo crivo de toda a sociedade brasileira, afinal, os ministros do Supremo sã o cientificamente leigos, como todos os cidadã os nã o cientistas que ou apoiaram, ou foram contra a decisã o. Outros temas importantes em questã o atualmente e que interferem diretamente na vida do cidadã o sã o as questõ es ambientais, como o aquecimento global, a sustentabilidade e a economia verde. Em casos como esses, fica evidente que, hoje em dia, para exercer a sua cidadania de forma completa, as pessoas precisam de uma base de conhecimento cientıf́ico para ter uma opiniã o minimamente embasada sobre assuntos importantes e influenciar no processo decisó rio desses temas, sendo que esse cidadã o pode atuar como um formador de opiniã o, um tomador de decisã o ou simplesmente como um eleitor. Alé m disso, o pró prio cientista tem que ter em mente que ele també m é um agente social e deve levar em conta o seu impacto na sociedade e assumir o seu papel nessas decisõ es. FINANCIAMENTO PUBLICO DA CIENCIA Outro fato interessante e que todo cidadã o tem que ter em mente sobre a pesquisa cientıf́ica é que a maior parte dela é financiada pelos governos, com dinheiro pú blico, ou seja, dinheiro do pró prio cidadã o. Esse fato só reafirma o direito que a sociedade tem de discutir sobre a aplicaçã o dos resultados gerados pelo conhecimento atual e definir os rumos das pesquisas futuras. Mas se as pessoas nã o souberem o mın ́ imo sobre ciê ncia, como poderã o exigir prestaçã o de contas ou saber se os investimentos feitos sã o importantes ou nã o? 24 A IMPORTANCIA DA DIVULGAÇAO CIENTIFICA IMPORTANCIA DA DIVULGAÇAO CIENTIFICA Uma das caracterıśticas mais marcantes da ciê ncia é que ela está sempre inovando, inventando algo ou derrubando antigos conceitos e substituindo-os por outros mais adequados. Sabendo disso, como definir uma grade curricular para ensinar algo que está sempre mudando? Como manter materiais didá ticos atualizados com essas mudanças? Como adicionar mais maté rias para serem ensinadas nas escolas quando o tempo existente já nã o é suficiente para ensinar o que já faz parte do curso? Talvez a resposta para todas essas perguntas seja a divulgaçã o cientıf́ica. A velocidade com que a ciê ncia avança é cada vez maior, e se nã o bastasse a quantidade de informaçã o crescer tã o rapidamente, a complexidade das informaçõ es també m acompanha esse ritmo. Ou seja, temos cada vez mais informaçã o e cada vez mais complexa. Assim se torna impossıv́el acompanhar todas as frentes de pesquisa, até mesmo dentro de uma pequena subá rea. Quando o assunto é fıśica quâ ntica, até dentro da pró pria ciê ncia, um pesquisador da á rea de Biologia Molecular é tã o leigo quanto um bancá rio. Sendo assim, a escola sempre estará defasada com relaçã o à ciê ncia de ponta, e isso nã o chega a ser um demé rito por si só , já que a façanha é inatingıv́el, mas ela deve estar atenta e aberta para outras formas de informaçã o e educaçã o nã o formal que podemos chamar de divulgaçã o cientıf́ica. Pelo fato de essa divulgaçã o ser feita fora dos muros da escola, ela tem um papel importante na complementaçã o do conteú do, justamente abordando temas ainda nã o incluıd ́ os no currıćulo escolar, e pode servir tanto ao professor quanto ao aluno. Rafael Bento da Silva Soares 25 O professor pode aproveitar o material de divulgaçã o para se atualizar em temas que nã o foram trabalhados ou que simplesmente ainda nã o existiam na é poca de sua formaçã o. Uma vez que a ciê ncia avança tã o rapidamente, mesmo os profissionais de ensino mais engajados e que frequentam cursos de atualizaçã o podem se deparar com assuntos apresentados na mıd ́ ia e que sã o de interesse dos alunos, mas nã o sã o de seu conhecimento pelo fato de serem (assuntos) muito novos. Certa vez, um professor disse que ficava muito ansioso à s segundas-feiras, porque era quando, quase sempre, era questionado pelos alunos sobre um assunto cientıf́ico abordado pelo programa de televisã o “Fantá stico”, apresentado aos domingos pela Rede Globo, e, muitas vezes, ele nã o tinha conhecimento um pouco mais aprofundado para discutir com esses alunos. Um exemplo foi a gripe suın ́ a, ou influenza AH1N1, que foi muito abordada pela mıd ́ ia, mas pouco explicada, deixando a populaçã o muito instigada, mas sem ter onde se informar de maneira mais aprofundada. Na é poca, a fonte em portuguê s mais completa sobre esse era um blog de divulgaçã o cientıf́ica. Assim, talvez a melhor forma que a escola tenha para incorporar temas atuais em sua rotina seja nã o sobrecarregando a grade horá ria com mais maté rias a cada vez que surge um novo tema, mas sim ter um pequeno espaço fixo e aberto para que se discuta sobre essas á reas novas e se utilize de material de divulgaçã o cientıf́ica para embasar as discussõ es. Esse é um dos papé is da divulgaçã o cientıf́ica: deixar informaçõ es atualizadas sempre disponıv́eis e em linguagem acessıv́el para quem esteja procurando sobre determinado conteú do. Outro papel fundamental da divulgaçã o é ser atraente. A funçã o citada anteriormente é mais passiva, pois é apenas disponibilizada para quem a procura. Ser atraente, no entanto, vem de outra necessidade: gerar o interesse em assuntos 26 A IMPORTANCIA DA DIVULGAÇAO CIENTIFICA importantes em uma populaçã o que ainda nã o é engajada na busca pelo conhecimento cientıf́ico. O que ilustra essa situaçã o no Brasil é o fato de as pessoas declararem que se interessam muito por assuntos relacionados à s ciê ncias, como saú de e medicina, ou tecnologia, mais até do que se interessam por esportes ou celebridades. Mas o que vemos quando analisamos o trá fego de acessos na internet, nã o confirma essas declaraçõ es, afinal, sites de esporte e celebridades sã o muito mais acessados do que sites com informaçõ es de saú de e tecnologia. Isso quer dizer que o brasileiro sabe que precisa de informaçã o sobre medicina e tecnologia e sabe que isso é importante, mas, por algum motivo, outros assuntos lhe chamam mais a atençã o. E papel do divulgador tornar a ciê ncia atraente para que as pessoas possam realmente agir da forma como declaram que gostariam. Nessa funçã o de atrair as pessoas, os museus, os projetos audiovisuais e os sites interativos sã o os que mais tê m apelo, sendo que sã o os que mais se aproximam do entretenimento, oferecendo conhecimento embutido em uma experiê ncia prazerosa. Assim, a pessoa que buscava apenas prazer, de forma informal e nã o intencional, acaba aprendendo. Ainda nã o se sabe qual a real importâ ncia da divulgaçã o cientıf́ica na formaçã o de um cidadã o. Existem pesquisas que afirmam que a base para o conhecimento cientıf́ico é estabelecida durante os primeiros anos de escola, mas outros estudos mostram que a divulgaçã o cientıf́ica tem sua importâ ncia porque a escola falha em dar uma sustentaçã o de longo prazo, sendo que essa sustentaçã o seria ainda parte integrante da educaçã o do indivıd ́ uo. Mesmo que a divulgaçã o cientıf́ica perca da educaçã o formal no embasamento cientıf́ico de uma pessoa, as suas vá rias funçõ es na formaçã o de cidadã os conscientes da grande Rafael Bento da Silva Soares 27 influê ncia da ciê ncia na sociedade já sã o legitimadoras de sua existê ncia e també m justificam um grande investimento polıt́ico e econô mico a seu favor. DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E O TRABALHO DOCENTE Cecília de Campos França Divulgar o que é produzido em ciê ncia é condiçã o necessá ria a todo e qualquer cientista, independentemente da á rea em que atua. E compromisso social e polıt́ico. No entanto, há muitas e variadas formas disso ser feito. Um texto de jornal, de revista especializada, de revista para crianças, um filme, uma mú sica, uma crô nica, um texto teatral, um site, um blog, um programa de TV, uma notıćia de rá dio podem divulgar resultados de pesquisas. A matriz cientıf́ica a qual se filia o pesquisador/escritor també m irá sugerir formas de relaçã o entre leitor e autor. A linguagem utilizada será importante para analisar significados e sentidos produzidos no texto e sua inserçã o em um contexto complexo de premissas que delinearã o a direçã o interpretativa sugerida pelo seu autor. Há basicamente dois contextos de divulgaçã o cientıf́ica: um que se dirige a especialistas na á rea e outro que contempla as demais pessoas, o pú blico em geral. E possıv́el diferenciarmos, mais precisamente, o pú blico, o leitor de um texto de divulgaçã o dessa natureza. Os leitores pretendidos para o texto que produzimos podem ser: crianças, adolescentes, professores com mesma graduaçã o que o cientista, sociedade em geral e assim sucessivamente. E importante lembrar que um cientista/especialista em determinada á rea coloca-se como leigo para uma outra á rea do conhecimento. Portanto, a linguagem a ser utilizada em um texto que se pretende divul- 30 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE gar deve estar de acordo com o leitor que se pretende atingir. Nosso entendimento sobre divulgaçã o cientı́fica está de acordo com Silva (2006), quando diz que: Parece que o termo divulgaçã o cientıf́ica, longe de designar um tipo especıf́ico de texto, está relacionado à forma como o conhecimento cientıf́ico é produzido, como ele é formulado e como ele circula numa sociedade como a nossa (p. 53). Sendo assim, é tarefa complexa responder à indagaçã o: quais sã o as caracterıśticas de um texto de divulgaçã o cientıf́ica? Pois essa suposta resposta deve contemplar os diferentes modos de se fazer ciê ncia, as diferentes premissas que ele contempla, qual a posiçã o em que o autor coloca a ciê ncia, como ele vê o leitor e quais as relaçõ es sinalizadas no texto entre o autor e o leitor. Se temos claro que a ciê ncia nos oferece respostas provisó rias para nossas questõ es, o texto que divulgará as formulaçõ es ú ltimas de uma dada ciê ncia terá essa marca. Na sociedade atual, ocidental, capitalista, vemos a valorizaçã o da ciê ncia e da tecnologia. Essa constataçã o també m pode ser verificada mediante a aná lise dos editais das agê ncias de fomento, os quais priorizam á reas produtoras de conhecimento que possibilitam a produçã o e o desenvolvimento de produtos que atendam aos interesses da polıt́ica e da economia. O que a sociedade espera é que tanto a ciê ncia como a tecnologia possam trazer maior bem-estar social, e o que devemos deixar claro é que nã o se trata de uma relaçã o sempre observá vel. Muito já foi produzido pelas ciê ncias, no entanto, existe uma assimetria entre o que acumulamos de conhecimento, as possibilidades que a ciê ncia abriu para o mundo contemporâ neo, o acesso a esses bens e produtos e o chamado bem-estar social, que prevê condiçõ es dignas de existê ncia para todos. Cecília de Campos França 31 Divulgar a produçã o cientıf́ica é uma açã o que busca informar a sociedade em geral sobre as pesquisas e os conhecimentos produzidos nas diversas ciê ncias. As ferramentas que a era da informaçã o nos oferece e o alcance da mıd ́ ia podem ser aliados importantes para se realizar esse objetivo. O que presenciamos, muitas vezes, é que, nas maté rias veiculadas pela mıd ́ ia, é frequente os profissionais darem ê nfase para alguns pontos que vã o na direçã o de interesses, valores, concepçõ es de um grupo de poder, formando o que podemos denominar de comunicaçã o tendenciosa de informaçã o, com fins claramente polıt́icos. A divulgaçã o cientıf́ica é parte do processo de produçã o do conhecimento e nã o pode ser dissociada desse. Ao discutir a questã o da linguagem e do conhecimento, da produçã o e circulaçã o da ciê ncia, Guimarã es (2009) enfatiza que o modo como a ciê ncia circula em uma dada sociedade é fortemente orientado pela polıt́ica cientıf́ica, que é um aspecto das polıt́icas pú blicas, e se constitui por conflitos constantes entre Estado, de um lado, e, de outro, a sociedade e a mıd ́ ia, que estabelecem uma relaçã o de aliança e tensã o. Na leitura de um texto, é possıv́el identificarmos afiliaçõ es teó ricas, pressupostos subentendidos e ideias explıćitas que nos dã o pistas de que lugar o cientista/autor de um artigo fala. Quando a divulgaçã o de um texto cientıf́ico é feita por um jornalista ou outra pessoa que nã o o pró prio cientista ou especialista no assunto, precisamos redobrar a nossa atençã o para a leitura, pois as informaçõ es podem trazer dados interpretativos daquele que divulga e nã o estar em correspondê ncia com o que se produziu de fato em determinada á rea de conhecimento. Há uma dimensã o é tica no processo de divulgaçã o cientı́fica, pois ao fazermos circular ideias e divulgarmos resultados de pesquisa, movimentamos diversos pontos de 32 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE vista, relaçõ es, valores, teorias que podem trazer impactos para o social e para a cultura, ferindo ou criando rupturas que a descoberta do novo promove. Debater livremente ideias e colocá -las em situaçã o de confronto é importante como exercı́cio de reflexã o sobre o que estamos pesquisando e divulgando. Importante salientar que, para Candotti (2002) é desafio dos nossos tempos preservar a capacidade de financiamento pú blico para esse exame crıt́ico e para garantir a existê ncia de foros permanentes habilitados a orientar e balizar os caminhos das pesquisas e seus usos. A questã o da clonagem de seres vivos e do patenteamento do sequenciamento gené tico sã o casos exemplares ainda nã o resolvidos (p.17). Este cuidado deve estar contemplado nas açõ es do Estado, bem como nas dos cientistas que nã o podem se eximir de quaisquer responsabilidades advindas de seu trabalho. Entendemos, como Candotti (2002), que sã o as instituiçõ es pú blicas – universidades, institutos, etc. – as ú nicas que tê m a possibilidade de resistir à s pressõ es dos interesses econô micos ou corporativos. Deixar essa responsabilidade aos indivıd ́ uos, mesmo que sejam cientistas respeitá veis, seria abandonar a possibilidade de preservar entre nossos ideais o de construir um mundo mais justo e igualitá rio. Por mais que as pressõ es hoje sejam contrá rias, o papel do Estado e seus institutos na definiçã o, no controle e na execuçã o da polıt́ica da ciê ncia é fundamental. Caberá a nó s, cientistas e cidadã os, zelar pelo funcionamento democrá tico desses institutos, bem como informar e promover a discussã o dessas polıt́icas com dados e reflexõ es que o bom-senso recomendar (p. 18). Cecília de Campos França 33 Feitas essas consideraçõ es iniciais, fica explıćito que o contexto em que as ciê ncias estã o inseridas determina como essas serã o tratadas pelas polıt́icas pú blicas e pelos interesses que as financiam. NOVOS TALENTOS No Projeto Novos Talentos, estã o previstas açõ es de estudo em grupo, pesquisa e atividades de extensã o. Sob a temá tica Divulgaçã o Cientı́fica, organizamos cursos nas cidades de Nova Olım ́ pia e Tangará da Serra, em 2011, ambas pertencentes ao Estado de Mato Grosso, a fim de, simultaneamente, trocar experiê ncias e conhecimentos acerca dessa temá tica e oportunizar aos professores da rede pú blica a divulgaçã o dos trabalhos que realizam no cotidiano de sua profissã o. Novos Talentos1 é o que este trabalho busca evidenciar. Dentre um universo grande de profissionais anô nimos, comprometidos com a sua profissã o, nosso grupo de pesquisadores visa a abrir canais de divulgaçã o de trabalhos realizados por essas pessoas para a sociedade em geral. Iniciamos nossas atividades propondo questionamentos como: O que pode ser denominado de ciê ncia? O que vem a ser ciê ncia? Existe somente um ú nico modo de fazer cientıf́ico? Quais as implicaçõ es entre diferentes modos de pensar e construir conhecimentos cientıf́icos? As ciê ncias estã o distantes das pessoas em sua cotidianidade? E possıv́el identificarmos produtos dela em nosso dia-a-dia? Qual a importâ ncia, para as pessoas, de conhecer os modos de pensar, os pressupostos e as respostas provisó rias que as ciê ncias nos oferecem? As diferentes modalidades de ciê ncias constroem produ1 Novos Talentos é o nome dado pela CAPES no edital de ampla concorrê ncia para a realizaçã o deste trabalho de pesquisa e extensã o. 34 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE tos vendá veis na sociedade? Quando dizemos – Esse é um texto de divulgação científica –, sabemos quais sã o as suas caracterıśticas e quais relaçõ es ele suscita entre leitor e pesquisador/escritor? Quais ideias estã o explıćitas, pressupostas e subentendidas em um texto de divulgaçã o cientıf́ica? Depois de ampla discussã o sobre as ciê ncias e seus diferentes modos de realizaçã o, outras questõ es serviram como eixo central para conhecer um pouco o trabalho dos profissionais que participaram conosco dos cursos ministrados. Sã o elas, a saber: como se utilizar das informaçõ es dos textos de divulgaçã o de resultados cientıf́icos já produzidos e publicados, em sala de aula? O que está posto nos livros didá ticos é visto como verdade provisó ria tıp ́ ica da ciê ncia, ou verdade incontestá vel? O que precisa ser feito para contestar um possıv ́ el resultado, hipó tese ou pressuposto de uma afirmaçã o? Quais sã o as possibilidades que o professor tem para conduzir, em sala de aula, processos de problematizaçã o de respostas oferecidas pela ciê ncia em que ele se graduou? Muitas foram as respostas dadas para esses questionamentos que procuraremos sistematizar aqui. O livro didá tico foi apontado como um recurso interessante para a organizaçã o do trabalho docente. No entanto, houve certa unanimidade em afirmar que, para a realizaçã o de atividades de qualidade, é necessá rio investir em outros recursos. Um dos argumentos levantados foi o de que o livro didá tico traz certa facilidade e organizaçã o ao trabalho do professor, que está visivelmente precarizado em suas condiçõ es estruturais, econô micas, polıt́icas e sociais. No entanto, nã o abrange, via de regra, as especificidades regionais e locais. Um risco apontado em relaçã o ao livro didá tico foi o de construir acomodaçã o ao docente e paralisar novas buscas de informaçã o, enfraquecendo o processo de problematizaçã o da realidade da comunidade em que se insere a escola. Esse risco está diretamente vinculado a uma concepçã o de que a ciê ncia produz verdades e que essas respostas estã o acima de questionamentos. Se a Cecília de Campos França 35 concepçã o do professor é essa, ele traz as respostas construı-́ das pela ciê ncia como sendo a ú nica ou a melhor possibilidade de entendimento de certa questã o ou fato. O docente nã o põ e à prova as verdades cientıf́icas, nã o as questiona e nã o menciona, ainda que brevemente, a histó ria da ciê ncia que evidencia suas construçõ es como provisó rias e seu valor para explicar certos fenô menos e nã o outros. O processo de problematizar em sala de aula inicia-se com a habilidade em fazer perguntas sobre as questõ es que se pretende estudar. Para formular uma pergunta, a pessoa necessita ter noçõ es a respeito do assunto, observar os princı-́ pios que regem a razã o, tais como: lógica, a não contradição, o terceiro excluído, identidade2. Alé m disso, ler, ouvir, considerar e dialogar com pessoas de diferentes á reas de conhecimento para abrir novas possibilidades de pesquisa, dando inıćio ao processo de questionamento de ideias, de pressupostos, de princı́pios, permitindo levantar hipó teses que subsidiem estudos e pesquisas que possam elucidar as questõ es propostas. A esse processo chamamos de problematizaçã o. Os professores que participaram conosco dos cursos oferecidos vinham de á reas de conhecimento diversas. Essa condiçã o resultou em discussõ es muito interessantes acerca das temá ticas propostas. DIVULGAÇAO CIENTIFICA E TRABALHO DOCENTE Fizemos um levantamento, junto aos professores que participaram dos cursos oferecidos pelo Projeto Novos Talentos, a respeito do há bito de escrever e da experiê ncia de 2 Para ler mais sobre os princıp ́ ios da Razã o, recomendo a leitura da obra “Convite à Filosofia”, de Marilena Chauı,́ e o “Dicioná rio de Filosofia”, de Nicola Abbagnano. Leituras de filosofia nos auxiliam a compreender tanto as pertinê ncias como as contradiçõ es de um determinado conhecimento. 36 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE publicar alguma atividade de pesquisa ou trabalho pedagó gico que realizaram no exercıćio da profissã o. Identificamos que muitos dos docentes com os quais trabalhamos sequer haviam pensado nessa possibilidade. Alguns deles questionaram se suas atividades poderiam ser consideradas como cientıf́icas e outros nã o se autorizavam a pensar ou mesmo divulgar o seu trabalho docente como produçã o cientıf́ica. Isso nos chamou atençã o, pois ouvimos em nossos encontros muitas e interessantes histó rias sobre a conduçã o de suas atividades pedagó gicas no exercıćio da profissã o. Um professor dos anos iniciais, formado em pedagogia, nos relatou que elaborou um projeto junto aos alunos do ensino fundamental para a recuperaçã o de um rio que corta a cidade em que mora. Muitas de suas aulas foram destinadas à plantaçã o de espé cies nas margens do rio com o objetivo de evitar deslizamentos. Depois de alguns meses de trabalho, puderam presenciar a recuperaçã o das condiçõ es do rio e foram alvo da mıd ́ ia local. O professor expressou sua felicidade e empolgaçã o com o trabalho realizado e foi por nó s encorajado a descrever essa experiê ncia e divulgá -la para inspirar outros colegas no mesmo sentido, poré m, infelizmente, isso nã o aconteceu. Os professores participantes do curso que ministramos sobre Divulgaçã o Cientıf́ica, nas cidades de Nova Olım ́ pia e Tangará da Serra, ambas pertencentes ao Estado de Mato Grosso, foram estimulados a responder, em formato texto, perguntas norteadoras sobre as atividades que desenvolveram em suas escolas e que dizia respeito à ciê ncia e à divulgaçã o dos resultados obtidos. Na sistematizaçã o destas respostas, organizamos os seguintes motivos apresentados por eles: nã o desenvolveram o há bito de escrever; apresentavam dificuldades quanto à escrita; faltavam conhecimentos sobre como escrever um artigo ou texto cientıf́ico; tinham jornadas extensas de traba- Cecília de Campos França 37 lho, faltava tempo no dia-a-dia para outras atividades; percebiam a precarizaçã o do trabalho docente; sentiam exaustã o apó s as atividades profissionais; estavam desmotivados; desinteressados; muitas vezes se acomodavam; ministravam aulas de muitas e diferentes disciplinas, o que requeria muito esforço do profissional; gostavam de leitura, mas nã o de escrever; desenvolveram o há bito de falar, poré m, nã o de escrever; percebiam a fala como uma habilidade mais fá cil do que a de escrita; nã o pensaram em registrar por escrito alguma prá tica como professor; desconheciam essa habilidade acadê mica; nã o gostavam de escrever. A seguir, trazemos citaçõ es das falas dos professores, como primeira atividade do curso de divulgaçã o cientıf́ica, com o objetivo de referendar a nossa sistematizaçã o: — Não tenho o hábito de escrever (L. M. S.). — Penso que há resistência, falta de interesse, desmotiva- ção ou por não saber como se faz... por parte de meus colegas de trabalho (L. M. S.). — Trabalho com todas as matérias e a isso chamo de se virar nos trinta. É muito trabalho e pouco tempo (E. S. S.). — Não tenho o hábito de escrever. Por esse motivo, nunca tentei publicar sequer uma notícia, imagine um artigo (E. S. S.). — Apesar de ter participado de muitos eventos, não passava em minha mente como se dá o processo de escrita de divulgação desses trabalhos (E. S. S.). — Não vejo em nenhum de meus amigos o interesse em publicar as atividades que realizamos na escola (E. S. S.). — Gosto de ler, mas nunca publiquei, embora sonhe com isso (E. S. A.). — Sou leitora atuante, mas escrevo pouco (R. R. O.). — Acho que nossos colegas de trabalho estão um tanto acomodados e cansados, nem sei como definir, ou desestimula- 38 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE dos, pois não é fácil ser professor da educação básica (M. E. S.). — Não tenho o hábito de escrever, mas já publiquei como 2ª e 3ª autora (D. S. A. G.). — Não conheço muitos professores que escrevem. A única vez foi no ano passado [...] quando os professores divulgaram práticas publicando na revista da escola (D. S. A. G.). De acordo com o exposto nas falas dos professores, podemos observar que a maioria deles nã o tem o há bito de escrever. Essa condiçã o de ficarem somente na oralidade e nã o se proporem a registrar suas experiê ncias e reflexõ es foi construıd ́ a ao longo do processo formal de ensino fundamental e mé dio, que, durante muito tempo, priorizou elementos de gramá tica em detrimento da produçã o e interpretaçã o textuais. Essa conduta está alicerçada em certa concepçã o educacional em que o professor deté m o conhecimento e o aluno é o receptá culo deste. Na educaçã o bancá ria3, professores e alunos constroem relaçã o assimé trica de poder e se posicionam como consumidores de conhecimento, e nã o como produtores deste. As consequê ncias de um processo educacional autoritá rio sã o nocivas ao desenvolvimento de autonomia de professores e alunos, criando impedimentos psicoló gicos para escreverem suas ideias e argumentos. A condiçã o de precarizaçã o do trabalho docente també m se fez presente em diversas falas, pontuando as horas excessivas de trabalho, a exaustã o do professor no final do dia, o trabalho com muitas maté rias, o desâ nimo, o desestım ́ ulo e a acomodaçã o. Podemos acrescentar a esse quadro a desqualificaçã o recorrente da funçã o de professor por parte das polıt́icas pú blicas e da sociedade em geral, o baixo salá rio, alé m da dificuldade que esse docente tem para se organizar e buscar qualificaçã o devido à carga excessiva de trabalho – duas, trê s 3 Educaçã o bancá ria é expressã o cunhada por Paulo Freire e presente em muitas de suas obras. Cecília de Campos França 39 escolas para lecionar, a fim de conseguir o mın ́ imo para a sua subsistê ncia e de sua famıĺia. Quando quer participar de algum curso ou evento durante a semana, precisa conseguir professor substituto para as suas aulas, para nã o ter as horas de sua ausê ncia descontadas. Sã o eles, os professores, que pagam seus substitutos. O desconhecimento té cnico de como elaborar um artigo foi um dado bastante presente nas falas dos professores e contribuiu para que eles nã o se lançassem nessa atividade até o momento. Nã o se autorizavam a escrever um artigo de divulgaçã o de suas prá ticas, algumas vezes, por nã o as reconhecerem como ciê ncia, por nã o saber como fazer isso e por falta de tempo e condiçõ es para tal. A desqualificaçã o que vivenciam continuamente na sociedade deixa marcas indelé veis na dinâ mica psicoló gica dos professores e, muitas vezes, aumenta e alimenta o desâ nimo e os sentimentos de solidã o e tristeza no trabalho. Nas discussõ es e debates que promovemos, tratamos de questõ es como: o que significa “errar”; como era, para eles, assumirem as dificuldades para pensar a prá xis pedagó gica; como se constituıám as relaçõ es entre eles, professores e alunos; qual o significado de escrever o que pensamos e estudamos; quais sã o as possibilidades de entendimento do conhecimento cientıf́ico; quais fragilidades ou dificuldades sã o mais frequentes no cotidiano de nossa atuaçã o docente; o que legitima a autoridade do professor em sala de aula? Apó s os trabalhos de discussã o e debate no curso de divulgaçã o, reunimos as seguintes falas: — Tenho alguma produção de texto para a participação em evento (J. F. S. S.) . — Em muitos momentos, a minha prática e a de muitos colegas de profissão merecem ser registradas com escritas de relatos de experiências e, por que não, com artigos? (J. F. S. S.). 40 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE — Fiz uma matéria para ser divulgada no jornal local sobre a data de fundação da cidade de Nova Olímpia (MT), seus colonizadores e outras informações sobre o município (R. R. O.). — O professor precisa divulgar constantemente as suas ações dentro do ambiente escolar (R. R. O.). — Trabalhos importantes são realizados no espaço escolar com frequência, porém, não têm visibilidade, pois não são publicados (J. F. S. S.). — Divulgar os trabalhos que são realizados dentro da escola é mostrar à população as ações que acontecem lá e também mostrar o seu trabalho como professor. A maioria das ações não é divulgada e fica apenas no âmbito escolar (R. R. O.). — Vejo muitas possibilidades de divulgação do trabalho em sala de aula, porém, falta um pouco de incentivo e vontade. Acaba que entramos num comodismo e deixamos de lado o que poderia ser divulgado (D. S. A. G.). — Este curso modificou minha forma de ver e entender a questão de divulgação científica (D. S. A. G.). — Vou procurar, daqui para frente, registrar e divulgar meu trabalho na escola (E. S.). Apó s discussã o e debate sobre os temas propostos, observamos uma mudança significativa nas declaraçõ es dos professores que nos mostraram que estã o abertos para pensar, aprender e refletir sobre suas condiçõ es de trabalho e possibilidades diante da profissã o. Reconheceram que há movimentos importantes e interessantes nas prá ticas pedagó gicas exercidas nas escolas e que merecem ser divulgadas para a sociedade, assim como para os colegas docentes, dando, portanto, visibilidade ao trabalho que desenvolvem. O reconhecimento da sociedade, em parte, passa pelas informaçõ es que essa tem dos trabalhos pedagó gicos que, cotidianamente, sã o realizados nesses espaços de educaçã o formal. Se houver maior publicidade do que se faz na escola, dos resultados e Cecília de Campos França 41 transformaçõ es que ela promove, da importâ ncia dessa para a vida de tantas pessoas, é possıv́el que consigamos maior cumplicidade das comunidades em relaçã o à educaçã o e à s condiçõ es em que a instituiçã o se encontra. Escolas e comunidades devem estar de mã os dadas como parceiras nesta trajetó ria educacional, mas, para que isso aconteça, é preciso que haja uma relaçã o mais estreita entre elas, de forma que cada uma conheça a outra e se disponibilize a trabalhar com objetivo de interferir e transformar o que se quer diferente. O conhecimento e a cumplicidade sã o elementos-chave para que se consiga atingir esse objetivo. Sendo assim, a divulgaçã o cientı́fica cumpre a funçã o de estreitar vın ́ culos, promover conhecimento e oportunizar o diá logo entre pessoas. Uma reivindicaçã o dos professores por melhores condiçõ es de trabalho, se contar com apoio da comunidade, terá maior força polıt́ica e de mobilizaçã o do poder pú blico do que se encontrar oposiçã o e resistê ncia do contexto social em que se insere. Buscar parceiros, construir cumplicidade é uma via interessante de aumentar o poder reivindicató rio junto ao poder pú blico. Problematizar e debater as condiçõ es educacionais brasileiras com os colegas de profissã o e com as comunidades abre possibilidades de desenvolvimento crıt́ico em relaçã o à pauperizaçã o constante a que somos, todos, expostos por essa ló gica mercantilista de lucro fá cil para alguns e precarizaçã o, sucateaçã o das condiçõ es de existê ncia, para a maioria. CONSIDERAÇOES FINAIS Na era da informaçã o, divulgar o trabalho docente que obteve excelentes resultados, tanto sob o ponto de vista pedagó gico como social, é imprescindıv́el como estraté gia de desconstruçã o das representaçõ es que a sociedade tem 42 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE manifestado em relaçã o à educaçã o pú blica e ao docente, via de regra, negativas. A resistê ncia de muitos jovens na escolha desta profissã o, a acomodaçã o de muitos profissionais para se mobilizar como classe e reivindicar direitos e condiçõ es de trabalho, já é resultado dessa desqualificaçã o constante que a profissã o vem sofrendo ao longo dos tempos. Os resultados positivos que muitas escolas e professores vê m conseguindo, apesar das dificuldades enormes a que sã o expostos, cotidianamente, precisam ser divulgados, pois podem contribuir para desmantelar representaçõ es negativas que circulam constantemente. Quiçá ainda, sensibilizar as pessoas e o poder pú blico para a urgê ncia e importâ ncia de maior atençã o para a educaçã o brasileira, alé m de convidar a sociedade e as comunidades a se posicionarem, de fato, como aliadas nesse processo tanto educacional como polıt́ico. Manter a baixa produçã o escrita dos docentes é encarcerá -los à mercê dos discursos polıt́icos tendenciosos que encontramos por toda parte. Incentivar essa produçã o, oferecendo conhecimento té cnico, espaços de diá logo, troca de conhecimento e relaçõ es autê nticas, aos moldes freireanos, é trabalhar nossa capacidade de resistir ao movimento hegemô nico do capital e (re)construir novas possibilidades de ser em sociedade. A sensibilizaçã o é parte desse processo de politizaçã o, de bem-querer a si mesmo, de ter esperança, de ser firme e agir de acordo com o que professa a é tica universal que Paulo Freire nos fala em suas obras, explıćita e implicitamente, tais como “Pedagogia da autonomia”, “Pedagogia da esperança”, “Pedagogia do oprimido”, “Açã o cultural para a liberdade”4, dentre outras. No tempo em que estivemos junto aos professores no curso de Divulgaçã o Cientıf́ica, fomos sistematizando algumas 4 Todas as obras de Paulo Freire podem ser baixadas gratuitamente na Web. Cecília de Campos França 43 ideias que nos ocorreram sobre os significados e sentidos para o ato de escrever. Em seguida, trouxemos reflexõ es sobre a temá tica: Escrever é a açã o de registrar e de assumir um posicionamento. E colocar uma ideia, um argumento, parte de si mesmo à mostra, tornando-se passıv́el de crıt́icas, avaliaçõ es e julgamentos. E desvelar e tornar explıćito o que antes estava resguardado no universo da intimidade, do subjetivo, do invisıv́el. E disponibilizar-se para o diá logo com outros que, talvez, nem venhamos a conhecer em condiçã o de encontro olho no olho. E sinalizar aos outros que se tem algo a dizer a partir de uma perspectiva, de uma localizaçã o que deve ser considerada. E estar em condiçã o de empoderamento em face aos espaços de diá logos. E nã o ter medo de reconhecer que se pode estar em um caminho pouco visitado, ou mesmo, que se está em uma trilha comum a muitos. E valorizar sua voz, sua leitura, seu texto e contexto fazendo desse, algo importante. E exercıćio de autopoiesis5, compromisso profissional e polıt́ico daqueles que elegeram o conhecimento e seu processo de produçã o como seu objeto de estudo, pesquisa e trabalho diá rio. E oportunizar a (re)leitura de si mesmo e do mundo. E saber que seu melhor texto ainda está por vir e que a transparê ncia, a generosidade e a humildade sã o caracterıśticas de um bom escritor. E ter coragem suficiente para se saber inacabado, imperfeito e, ainda assim, ousar realizar, registrar, comunicar, debater e colocar-se em condiçã o de diá logo. E realizar, simultaneamente, a condiçã o daquele que ensina e aprende. Autopoiesis é a açã o de se autocriar, a partir de recursos tornados seus, de processo de elaboraçã o pessoal e social, para se construir como se quer. 5 44 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE Divulgar o que produzimos é perceber valor em nó s e em nossa produçã o. E dialogar com outros, reconhecendo a importâ ncia deles para a construçã o de nossas experiê ncias. E um convite para estabelecermos relaçõ es em determinada direçã o, e nã o em outra. Parafraseando Nietzsche: é ser demasiadamente humano. No inıćio do curso, os professores mostraram-se inseguros e pouco confiantes para realizar a atividade de escrita. Alguns disseram ter dificuldades para escrever, mas que procuram nã o demonstrar isso para os alunos. No final de nossos encontros, já era possıv́el notar o nascimento de outra postura em relaçã o à possibilidade de registro e divulgaçã o de seu trabalho docente. Muito ainda há que ser feito para que construamos as condiçõ es basilares para a formaçã o de pessoas crı́ticas, leitoras e escritoras. No entanto, com o Projeto Novos Talentos, as respostas que até o momento obtivemos desse trabalho nos sinalizam e nos dã o pistas de que ele tem sido fundamental para a construçã o destas condiçõ es de autonomia, criticidade e empoderamento dos professores da rede pú blica, com os quais desenvolvemos as atividades previstas nos cursos ministrados no ano de 2011. Um nú mero significativo de professores que estiveram conosco mostraram-se dispostos a se comprometer com o seu pró prio desenvolvimento e á vidos pelo conhecimento que podemos construir juntos. Isso, para nó s, representa a maté ria-prima necessá ria para conseguirmos transformaçã o no que diz respeito à questã o da escrita e da divulgaçã o cientıf́ica do trabalho docente. A possibilidade que o Projeto Novos Talentos abre para a publicaçã o dos excelentes trabalhos realizados pelos professores da rede pú blica no Estado de Mato Grosso é valiosa para que nossa esperança de intervençã o e construçã o de maior Cecília de Campos França 45 qualidade para a escola pú blica vá se consolidando. Em meio a muitas dificuldades enfrentadas cotidianamente pelos professores, e que devem ser pauta de reivindicaçã o coletiva, eles criativamente vã o mostrando a todos que qualidade educacional implica, necessariamente, em envolvimento, politizaçã o, compromisso, vontade e espıŕito de luta constante para que suas vozes apareçam e sejam consideradas na trama de muitos discursos e retó ricas ideoló gicos que visam tã o somente polıt́ica partidá ria e benefıćio privativo de uma minoria social. Com esses espaços de diá logo e troca, todos nó s, professores e comunidade, somos enriquecidos e fortalecidos nessa ousada empreitada em busca de melhoria educacional e do tã o esperado bem-estar social fundamentado por princı́pios é ticos e pela açã o polıt́ica presentes em nossa prá xis cotidiana. REFERENCIAS ABBAGNANO, Nicolas. Dicionário de Filosofia. Sã o Paulo: Martins Fontes, 1998. CANDOTTI, Enio. Ciê ncia na educaçã o popular. In: MASSARANI, Luiza; MOREIRA, Ildeu de Castro; BRITO, Fá tima. Ciência e Público: caminhos da divulgação científica no Brasil. Rio de Janeiro: Casa da Ciê ncia – Centro Cultural de Ciê ncia e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fó rum de Ciê ncia e Cultura, 2002. p.15-24. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Sã o Paulo: Atica, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 18ª Ediçã o. Rio de Janeiro: Paz e Terra , 1988. 46 DIVULGAÇAO CIENTIFICA E O TRABALHO DOCENTE ______. Por uma Pedagogia da Pergunta. 2ª Ediçã o. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. ______. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 25ª ediçã o. Sã o Paulo: Paz e Terra, 1996. (Coleçã o Leitura). ______. Pedagogia da Esperança. Sã o Paulo: Paz e Terra, 1992. ______. Ação Cultural para a Liberdade e Outros escritos. 5ª ediçã o. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981. (O Mundo Hoje v. 10). GUIMARAES, Eduardo. Linguagem e Conhecimento: Produçã o e Circulaçã o da Ciê ncia. Revista Rua. Campinas. N. 15, vol. 2, Nov/2009, p. 1-15. SILVA, Henrique Cé sar da. O que é Divulgaçã o Cientı́fica? Ciência & Ensino. Vol. 1, n.1, dez/2006, p.53-59. SER PROFESSOR, LEITOR E ESCRITOR: POSSIBILITAR OUTROS MODOS DE OLHAR E AGIR NA SOCIEDADE Ana de Medeiros Arnt “Diz quem foi que inventou o analfabeto E ensinou o alfabeto ao professor” (Chico Buarque, “Almanaque”) Para que serve o conhecimento que ensinamos na escola? O professor apenas transmite conhecimentos produzidos por outros? Podemos produzir algo para nossos alunos? Quem, afinal, somos nó s para escrever, reescrever, elaborar algo sobre os conteú dos escolares ou sobre nossas experiê ncias docentes? Ora! Nó s somos... professores! Ao longo de minha trajetó ria como professora e formadora de professores, percebi, por diversas vezes, o quanto é difıćil organizar uma aula ou disciplina sozinha. Em especial, eu sentia a necessidade de trocar experiê ncias com colegas nos momentos de: decidir quais sã o os conteú dos que devem ser ensinados; quais sã o as prioridades em cada ano ou semestre letivo; que abordagens adotar para cada conteú do; quanto tempo eu deveria dedicar para cada temá tica ou trabalho desenvolvido; dentre outras questõ es... Em minha formaçã o como docente – em qualquer instâ ncia de ensino – sempre considerei que ir a uma sala de aula ensinar tem um sentido mais amplo do que apenas ler livros didá ticos (tratado muitas vezes como o “manual prá tico 48 SER PROFESSOR, LEITOR E ESCRITOR: POSSIBILITAR OUTROS MODOS DE OLHAR E AGIR NA SOCIEDADE do professor moderno”, ao invé s de “mais um recurso” a ser utilizado na escola), ou resumir os conteú dos da universidade. Ser professor é muito mais do que isso. E é sobre esse significado e o “colocar em açã o” esse significado que falarei neste artigo. SER PROFESSOR Nossa profissã o é tida, ao menos nos discursos que vemos na mıd ́ ia televisiva ou impressa, como uma das mais importantes para a constituiçã o de um paıś, para o desenvolvimento da cidadania. Mas será que já paramos para pensar sobre o que é ser professor e o que envolve essa profissã o? No dicioná rio Houaiss6, o verbete professor tem como significado: “Aquele cuja profissã o é dar aulas em escola, colé gio ou universidade; indivıd ́ uo muito versado ou perito em (alguma coisa)”. Somente observando esses significados já teremos subsı́dios para uma importante discussã o: a do professor como intelectual (que é muito versado). Isto é , algué m que é definido como conhecedor de uma á rea e que passa adiante esse saber. Esse passar adiante, no entanto, nã o se faz de modo simples e impensado, nã o se relaciona com aquela famosa expressã o “transmissã o de conhecimentos”, tã o usualmente falada. Giroux (2001) defende que nó s, professores, somos mais do que meros transmissores, devemos ser responsá veis e ter responsabilidade pelo conhecimento ensinado e levado à escola, devemos estar engajados em uma formaçã o de sujeitos, de uma sociedade. Voltando-nos aos significados da palavra professor, em especial à sua etimologia (estudo da origem das palavras), 6 Retirado de http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=professor& stype=k Ana de Medeiros Arnt 49 ainda no dicioná rio Houaiss, encontraremos, do latim: “o que se dedica a, o que cultiva”; e do radical professum temos: “manifestar-se, afirmar, assegurar, prometer, protestar, obrigar-se, confessar, mostrar, dar a conhecer, ensinar”. A partir dessas palavras que vemos no dicioná rio (e brincando um pouco com elas), defendo que ser professor é (ou deveria ser) um ato polıt́ico, ou seja, é ser atuante na sociedade, aquele que se dedica à formaçã o de pessoas. Somos importantes por sermos formadores, porque buscamos (ou deverıámos): assegurar conhecimento à s pessoas e protestar contra o modo como o conhecimento (cientıf́ico e popular) é tratado nos dias atuais. Como ensinar sem envolver-se substancialmente com os conhecimentos que estamos lidando? Como formar pessoas sem que estejamos entregues completamente à fascinaçã o que o conhecimento nos proporciona? Como encantar sujeitos (e em nosso caso, alunos) sem que nos deixemos encantar pela nossa á rea de formaçã o? Larrosa (2006) afirma que a ideia de formaçã o relaciona-se com uma teoria da arte, nã o se trata (somente) de aprender algo. Formar (e formar-se) é uma açã o intencional de interaçã o, cujo objetivo é modificar, transformar os sujeitos e “isso nã o é feito por imitaçã o, mas por algo, assim, como ressonâ ncia. Porque se algué m lê , ou escuta, ou olha com o coraçã o aberto, aquilo que lê , escuta ou olha ressoa nele” (p. 52). E é esse ressoar que faz parte da funçã o e da responsabilidade do professor que é o fazer da docê ncia, o encantamento. E tornar o ato de dar aula uma parte dessa fascinaçã o que temos por conhecer e por gerar e proporcionar conhecimento. Em consonâ ncia com essa ideia, podemos inferir sobre o significado da palavra “dar”, na expressã o “dar aulas” ou “dar a conhecer”. Novamente, apoiando-me no dicioná rio, o verbete dar significa: oferecer como presente ou brinde a. Desse modo, 50 SER PROFESSOR, LEITOR E ESCRITOR: POSSIBILITAR OUTROS MODOS DE OLHAR E AGIR NA SOCIEDADE ser professor mostra-se como mais do que ensinar, é um ato de compartilhar, oferecer (um presente). Mas... ensinar (ou oferecer) o quê ? Parece simples a resposta: o conteú do (e o que mais seria?)! Eis aı,́ na dificuldade dessa pergunta e resposta, que percebemos a funçã o do professor como intelectual: algué m que, situado na sociedade, busca modos de açã o nas problemá ticas locais, qualificando o saber cultural com o saber cientıf́ico – nã o desconsiderando o saber popular, mas partindo das prá ticas sociais em que está , relacionando a ciê ncia com a nossa vida, e nã o com conceitos abstratos e distantes de nossa realidade. Nesse caminho, a resposta nã o é simples... SER LEITOR E ESCRITOR Se a resposta nã o é simples, tampouco é impossıv́el... Mas é procurando respondê -la que deparamos com aquilo que, neste livro, tentamos apresentar como fundamental no dia-a-dia docente: a tarefa de escrever. O encantar-se com o conhecimento é , també m, extravasar(-se) e compartilhar o conhecido. Oferecer isso, tal como no verbete explorado anteriormente, como um presente. Ao falar sobre a liçã o, o ensinar e o aprender, Larrosa (2006, p. 146) diz que o professor, ao pensar e escrever um texto para as suas aulas, o faz nã o somente remetendo aos estudantes, mas convocando-os à leitura. E ao se permitir ler e escrever, o professor també m convoca à leitura e à escrita, desligando-se da linearidade dogmá tica dos conteú dos prontos e pré -definidos, que nos aprisionam a um ritmo, nã o importando o que surge no cotidiano escolar e em todos os acontecimentos possıv́eis e inerentes do ato de aprender. Nesse sentido, Larrosa (2002, p. 26) afirma que ensinar a ler: “Nã o é transmitir um mé todo, um caminho a seguir, um conjunto de regras prá ticas mais ou menos gerais e obrigató rias a Ana de Medeiros Arnt 51 todos”. Ensinar a ler torna-se, desse modo, ensinar as possibilidades do pensar e as possibilidades de permitir(-se) escrever o pensado. Partindo desse pressuposto, a pergunta feita anteriormente “ensinar o quê ?” – que remete a um conjunto de conceitos universais e desvinculados da realidade – perde o sentido. Talvez fosse mais apropriado interrogar: “Como ensinar e possibilitar que as pessoas aprendam a agir e a pensar a partir dos conhecimentos que temos a oferecer?”. Escrever é , nessa perspectiva, permitir-se aprender e se permitir contaminar pelo conhecimento e extravasá -lo, intencionalmente. Escrever é responsabilizar-se pelo aprendizado, o nosso e o dos outros, é pensar sobre o que deve ser (ou foi) ensinado. Pois a escrita nã o precisa ser, claro, somente de conteúdos escolares, ou para nossos alunos. O escrever é sobre nó s, para nó s. Ou seja, nã o se trata aqui de uma produçã o textual “somente” para ser usada na escola, mas conseguirmos nos contaminar por uma vontade de escrever(-nos), produzir um conhecimento sobre nossa prá tica mostrando para outros, por que nã o? Para Larrosa (2006), o texto é uma conversa e, por isso, o aprender pela leitura nã o é a transmissã o do que existe para saber, do que existe para pensar, do que existe para responder, do que existe para dizer ou do que existe para fazer, mas sim a co-(i)mplicaçã o cú mplice no aprender daqueles que se encontram no comum. E o comum nã o é outra coisa que aquilo que se dá a pensar para que seja pensado de muitas maneiras, aquilo que se dá a perguntar para que seja perguntado de muitas maneiras e aquilo que se dá a dizer para que seja dito de muitas maneiras. A leitura nos traz o comum do aprender, enquanto que esse comum nã o é senã o o silê ncio ou o espaço em branco de onde se mostram as diferenças. Ler com os outros: expor os signos no heterogê neo, multiplicar suas ressonâ ncias, pluralizar seus sentidos (p. 143). 52 SER PROFESSOR, LEITOR E ESCRITOR: POSSIBILITAR OUTROS MODOS DE OLHAR E AGIR NA SOCIEDADE Pode nã o parecer, mas uma das maiores inseguranças para um professor-escritor, ou (e també m) professor-leitor (incluindo-me nessas inseguranças e dificuldades), é se dar conta que esse modo de organizar um pensamento, colocar “no papel” e compartilhar com nossos alunos é pluralizar sentidos, tal como coloca Larrosa. Realmente, compartilhar ideias é difıćil, uma vez que nos expomos. No entanto, també m corremos o risco de sermos mais compreendidos e de atender melhor o pú blico com o qual lidamos: os estudantes. Quem melhor do que um professor para saber o que se passa e quais as suas dificuldades? E quem seria melhor do que o pró prio professor para organizar as ideias e expô -las de um modo mais claro e objetivo, mais compreensıv́el? Por outro lado, se ler com outros é pluralizar sentidos, essa també m é uma dificuldade que temos em sala de aula: possibilitar que existam respostas diferentes... Mas eis aı́ uma das belezas do aprendizado! Possibilitar a emergência de conhecimentos, a pluralidade de sentidos nã o é permitir que algo diferente aconteça em sala de aula. E só aceitar isso como algo que acontece cotidianamente. Se aprender é dar sentido ao mundo, significar e ressignificar experiê ncias; oportunizar pluralidades é , tã o somente, compreender que elas existem e aprender a valorizá -las també m. SER PROFESSOR, LEITOR, ESCRITOR Ao concordarmos com a ideia de que o ensino da leitura e da escrita está intrinsecamente ligado à noçã o de aprendizado, també m acabamos por nos envolver fortemente com a formaçã o (nossa, ao ler e ao escrever, e dos outros, ao ler e permitir/possibilitar que escrevam) capaz de questionar e produzir os conhecimentos para a (e na) sala de aula, para alé m dos planejamentos restritos aos livros didá ticos, para alé m das noçõ es tã o largamente vistas hoje, de senso comum. Ana de Medeiros Arnt 53 E exatamente nesse ponto que vejo como fundamental esse aprendizado na leitura e na escrita, um aprendizado que inclui uma busca à s próprias palavras, daquelas que se tornam próprias. Palavras lidas e escritas que se articulam com os saberes cientı́ficos e tornam-se nossas. As possibilidades geradas ao permitir-se escrever envolve apresentar aos outros que é possıv́el ler (para ir alé m do lido) e escrever. REFERENCIAS GIROUX, Henry. Praticando estudos culturais nas Faculdades de Educaçã o. In: SILVA, Tomaz Tadeu. (Org.). Alienígenas na sala de aula. Petró polis: Vozes, 1995. p. 85-103. LARROSA, Jorge. Nietzsche e a Educação. Belo Horizonte: Ed. Autê ntica, 2002. ______. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Ed. Autê ntica, 2006. 2 PARTE 2: FERRAMENTAS PARA USAR E SUBVERTER DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES Eduardo Bessa Nã o sei quanto a você s, mas a pá gina em branco me irrita. Olhar aquela tela imaculada apenas com o cursor pretinho piscando me dá nos nervos e paralisa. Como começar? Vou contar algumas coisas que funcionam para mim. Quem sabe sejam ú teis a mais algué m. Antes de tudo, gosto de preencher os seguintes ingredientes no meu texto: 1) O tema – E o assunto sobre o qual quero escrever e ele deve apresentar pelo menos alguns dos seguintes ingredientes: apelo (atrair a curiosidade), conflito (falar sobre uma discordâ ncia), empatia (aproximar o texto do leitor), improbabilidade (ser inesperado), proeminê ncia (afetar muitos leitores) e utilidade (ser aplicá vel). 2) O objetivo – Refere-se ao que desejo com aquele texto. Cuidado com objetivos do tipo “informar sobre os tipos de partıćula subatô mica”, pois, nesse caso, ele só busca informar. Lembram-se da pirâ mide DIKW do primeiro capıt́ulo? O bom texto deve estar carregado de valor (conhecimento), pretender mudar comportamentos (sabedoria). E aı́ que está o objetivo do texto. 3) O pú blico-alvo – Sempre que me disponho a escrever, penso nisso como um ato transitivo direto e indireto. Obviamente, escrevemos algo, mas, talvez ainda mais importante, escrevemos para algué m. Todo texto precisa ser pensa- 58 DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES do para uma audiê ncia, mesmo que ela seja desconhecida. O professor conhece relativamente bem seus alunos, e isso é uma tremenda vantagem. O divulgador, num sentido mais amplo, deve ao menos imaginar um. Leitor é personagem fugidio, tem inú meros outros interesses esperando um deslize do autor para roubar-lhe a atençã o. 4) O espaço – Saber o espaço que tenho é um bom norteador, porque me ajuda a priorizar as informaçõ es que mais ajudarã o a atingir o objetivo. Nã o é preciso encarar isso como uma camisa de força, pois se pode extrapolar um pouco o limite que a ediçã o posterior encolhe o texto. Dizem que Graciliano Ramos gostava tanto de cortar supé rfluos em suas revisõ es que temia um dia publicar “Vidas secas” em branco. Tendo os ingredientes, sugiro um teste: desenhar cada pará grafo, incluindo seus argumentos e assuntos. Assim fica visıv́el onde temos conteú do demais e onde nos falta. Ajuda a aprofundar a leitura nos lugares certos. També m fica fá cil ordenar coerentemente as ideias. Podemos agora escrever com mais confiança. QUAL A ESTRUTURA DE UM TEXTO DE DIVULGAÇAO CIENTIFICA? Nã o existe fó rmula, o que vale é ser criativo e correto. Mas se o meu objetivo é incitar você a divulgar a ciê ncia, preciso dar algumas dicas. Alé m do mais, determinadas pessoas ficam absolutamente paralisadas pela falta de regras. Seguem abaixo, portanto, algumas sugestõ es que ficarei muito feliz em vê -los seguindo ou, vez por outra, quebrando para tornar o texto mais interessante. Um jornalista tem vá rias pessoas, entre redatores e editores, cobrando que ele siga as regras sagradas do estilo jornalı́stico. Leitor, goze dessa liberdade ao escrever. Eduardo Bessa 59 O formato clá ssico do texto jornalıśtico é o da pirâ mide invertida. Logo de cara, o autor apresenta o principal do texto no chamado lide (veja o capıt́ulo a seguir). Os pará grafos seguintes irã o trazer informaçõ es cada vez menos centrais. Claro que nenhuma informaçã o ali deve ser de todo supé rflua, ou nã o teria razã o para estar no texto pelo bem da concisã o. Na linguagem á gil da internet já se fala na nova pirâ mide invertida, o texto em T (SQUARISI, 2011). Nele, há uma introduçã o ampla seguida de pará grafos muito curtos com o aprofundamento do assunto. Observe a seguir um exemplo de texto em pirâ mide: Cientistas encontram nova espécie de macaco em Mato Grosso [Título ou Manchete] Uma expedição formada por unidades de conservação da Reserva Extrativista Guariba-Roosevelt, no Noroeste do Mato Grosso, descobriu uma nova espécie de macaco. [Lide] O novo primata Callicebus – conhecido como zoguezogue – foi encontrado entre os rios Guariba e Roosevelt pelo biólogo Júlio Dalponte. Segundo ele, uma "barreira" criada pelos dois rios e seus afluentes pode separar ao menos três espécies diferentes do mesmo gênero de macacos. [Informação principal, ou sublide] "Cada espaço desses tem uma espécie. Então, é difícil encontrarmos este mesmo macaco em outros lugares, por exemplo. Daí a importância de conservar essas áreas", disse o biólogo à BBC Brasil. "Este zogue-zogue, que encontramos entre as margens direita do rio Roosevelt e esquerda do rio Guariba, possui um padrão de coloração de pelo diferente de todas as outras espécies conhecidas do mesmo gênero naquela região." Dalponte acrescentou que uma possível segunda nova espécie de macaco foi avistada perto do rio Guariba, mas ainda é preciso fotografá-la. [...] [Informações secundárias] A descrição completa das características do novo zoguezogue deve levar pelo menos seis meses para ser 60 DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES concluída. Mais um ano pode ser necessário para que um estudo sobre ele seja aprovado pelos comitês de publicações científicas especializadas. A descoberta do animal é um trabalho da organização de proteção animal WWF Brasil, em parceria com a Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso. [Informações acessórias] Outro formato interessante de texto possui estrutura de losango. Ele inicia-se com um estudo de caso, entã o se apresenta o fato que permeia aquele estudo de caso e só daı́ o texto é refinado. Ele tende a ser mais prolixo do que o texto em pirâ mide invertida, por isso é menos utilizado, mas tem muito valor na hora de o leitor se identificar com o texto. Um exemplo de texto losangular fictıćio poderia ser como o que segue. Observe que a maté ria nã o é sobre a Ana Paula, mas sobre a internacionalizaçã o da pesquisa brasileira: Ana Paula está de malas prontas e passaporte carimbado. Nos próximos seis meses, ela experimentará como é fazer pesquisa em um laboratório internacional de ponta. [Estudo de caso] As diversas agências de financiamento científico nacional têm procurado atender a uma grande demanda de pesquisadores interessados em colaborar com laboratórios estrangeiros. Para isso, a Presidente Dilma Rousseff prometeu 75 mil bolsas de estudo internacionais até 2014. De fato, “colaborações internacionais são mencionadas como um dos fatores que ainda tornam as pesquisas brasileiras pouco visíveis na comunidade internacional”, é o que afirma o diretor da editora científica Elsevier para a América Latina. [Informações principais] Com essa oportunidade, Ana Paula espera completar seu doutorado em mais um ano e poder se fixar como professora em uma universidade federal. “É por amar o meu país que eu estou indo para fora aprender, retornar e compartilhar o que aprendi”, diz a doutoranda. [Fechamento] Eduardo Bessa 61 O texto em perguntas e respostas é a ú ltima possibilidade que apresento. Nele, o escritor simula um diá logo com o seu leitor. Para compor esse tipo de texto, é necessá ria certa habilidade de compreender o leitor, que, muitas das vezes, nã o é conhecido de quem escreve ou é muito heterogê neo. Veja abaixo um exemplo de texto em perguntas e respostas: O que você precisa saber sobre a gripe suína 1 - O que é o vírus da gripe e o que quer dizer H1N1: Existem três tipos de influenza, o vírus que causa a gripe, o A, o B e o C. O vírus influenza A é o mais variável e que causa mais estragos todos anos. Ele tem oito pedaços de RNA (RNA mesmo, não é DNA) dentro de uma cápsula. Duas proteínas deles são mais importantes para entendermos. Uma é chamada de Hemaglutinina, fica do lado de fora do vírus e serve para fazer contato com a célula. Como ela se liga em células, quando o vírus é colocado em uma gota de sangue, os glóbulos vermelhos ficam aglutinados (hemo aglutinina, hemaglutinina). A outra é a Neuraminidase. Ela quebra os açúcares com os quais a hemaglutinina se liga para liberar os vírus recém-formados. Como a hemaglutinina e a neuraminidase ficam para fora do vírus, são as proteínas mais reconhecidas por anticorpos e usadas nos testes de diagnóstico. Por isso as linhagens de influenza são nomeadas pelas letras HN, como H1N1, H3N2, de acordo com o tipo de cada uma. São conhecidos 16 tipos de Hemaglutinina e nove de Neuraminidase. Só alguns são frequentes em seres humanos, H1, 2 e 3 e N1 e 2. Todos os outros são encontrados em aves aquáticas, principalmente patos, que são o reservatório natural do Influenza A. As aves migratórias misturam os vírus em escala mundial, pois nelas a gripe não causa sintomas e infecta o sistema digestivo em vez do respiratório. Quando param em lagos para comer durante a migração, defecam e a água fica forrada de influenza. Num lago com água fria, o vírus chega a durar 30 dias. Os mais perigosos, que matam mais galinhas e pessoas quando transmitidos, são os H5 e H7. 62 DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES Retirado de Átila Iamarino, do blog Rainha Vermelha em 26/04/2009. Outros tipos de texto sã o bem possıv́eis, mas atençã o à economia do tempo do leitor, nã o pense que a ú nica coisa que ele tem a fazer é ler o seu texto. Por outro lado, nã o deixe de usar a sua criatividade. Conheço excelentes histó rias de ficçã o cientıf́ica que introduzem conceitos importantes da ciê ncia. Narrativas e até descriçõ es podem vir bem a calhar dependendo do tema e do objetivo do texto. SINTOMAS DE UM TEXTO BOM Vamos falar agora sobre quatro caracterıśticas de um texto bem escrito. Boa parte, aprendi no livro de Ana Estela de Souza Pinto (2009), responsá vel pelo treinamento dos jornalistas da Folha de S. Paulo. 1) Unidade – é a existê ncia de um eixo central, o seu tema, do inıćio ao fim do texto. Num texto uno, o autor nã o se perde em divagaçõ es e parê nteses longos, fugindo assim da ideia principal. Ao passo que a literatura fica rica com divagaçõ es (vide os contos dentro de outros contos de “As mil e uma noites”), o texto de divulgaçã o cientıf́ica deve evitá -las ao má ximo, sob pena de cansar o leitor. 2) Coerê ncia – significa que o texto tem um inıćio claro, um meio que desenvolve a mensagem e termina numa conclusã o. Todas as ideias ali estã o na ordem adequada, sem saltos ló gicos nem repetiçõ es. Os termos té cnicos sã o explicados. Pense numa ordenaçã o cronoló gica dos fatos, ou numa escala do mais amplo ao mais detalhado. O texto coerente é facilmente acompanhado pelo leitor, o que leva à compreensã o do conteú do, ou seja, ajuda a atingir o objetivo da divulgaçã o. 3) Concisã o – é a inclusã o de todos os dados e somente aqueles necessá rios à sua compreensã o. Nã o sobra nada que Eduardo Bessa 63 nã o construa a conclusã o do texto. Informaçõ es també m nã o ficam mal explicadas, deixando o leitor incapaz de seguir a argumentaçã o do autor e de julgar as suas premissas e conclusõ es. No final, primar pela concisã o també m torna o texto mais curto e, consequentemente, agradá vel ao leitor. 4) Enfase – é a capacidade de explicitar o seu objetivo, desde o tıt́ulo até a conclusã o. Sempre que possıv́el, os termos e frases devem remeter à ideia central que será discutida. Uma ferramenta ú til de ê nfase pode ser o uso de frases ou pará grafos curtos em que as ideias principais serã o lidas. Frases e pará grafos curtos també m quebram o ritmo de leitura, chamando atençã o do leitor. ATENÇAO. FUJA! Ao divulgar ciê ncia, evite alguns problemas (VIEIRA, 2006). Fuja de informaçõ es erradas. Divulgar ciê ncia é um compromisso com a acuidade. Lembre-se que a simplicidade do texto ou o prazer que ele deverá proporcionar ao leitor nã o sã o conflitantes com a precisã o da informaçã o. De nada adianta popularizar um conhecimento se ele estiver errado. Aliá s, conhecimento errado nã o deve ser divulgado mesmo! Atençã o especialmente aos charlatanismos travestidos de ciê ncia. Eles foram feitos para serem sedutores, mas enganam. Lembre-se de deixar sempre claro o que é resultado do trabalho que se pretende divulgar e o que sã o elucubraçõ es do autor da pesquisa – que a revista cientıf́ica jamais publicaria – ou, mais ainda, os devaneios do divulgador cientı́ f ico. Esclareça a quem pertence cada ideia. Numa maté ria sobre um medicamento, por exemplo, fuja de criar falsas esperanças de cura. De maneira mais pontual, fuja dos jargõ es, especialmente sem explicaçã o. Os termos té cnicos podem parecer dar 64 DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES precisã o e seriedade ao texto, mas eles nã o servem para leitores que os ignoram. Cace os jargõ es e julgue se todos estã o explicados. Se precisar, procure um colega leigo para apontar dú vidas. Fó rmulas matemá ticas nada mais sã o do que representaçõ es simbó licas de um jargã o ou conceito. Por isso elas també m devem ser traduzidas para o leitor. Troque: C6H12O6 Forrageamento ̃́Regiao Paleartica P.V=n.R.T Por: Glicose Busca por alimento Europa e Asia ̀̃A temperatura aumenta proporcionalmente a pressao A medida que a divulgaçã o se compromete com a precisã o, ela deve primar por substituir adjetivos por maiores detalhes ou dados concretos. Esses dados enriquecerã o seu texto, demonstrarã o a profundidade da pesquisa realizada e darã o maior noçã o de proporçõ es ao leitor. Troque: A rotina da pesquisadora era exaustiva. ́ planeta Jupiter e muito grande. O Existe uma alta biodiversidade. Por: A ̀ pesquisadora despertava as 3h da madrugada, armava as redes para coletar aves e seguia vistoriando as armadilhas por 6 horas. ́Jupiter e trezentas vezes maior que a Terra. ́Existem 64 especies, considerado muito pelos especialistas. Antes de publicar seu texto, busque pleonasmos, cacofonias e palavras sobrando em geral. Textos mais curtos serã o mais facilmente lidos. Observe abaixo a transformaçã o de um pará grafo do inıćio do texto. Troque: Os pesquisadores levaram em ̃consideraçao que precisarao repetir de novo os testes. Foi entregue um comprimido por cada ́voluntario. Encontraram o elo perdido... ̂O farmaceutico usou seu filho nos experimentos. Por: Os pesquisadores consideram que p ̃ recisarao repetir os testes. Foi entregue um comprimido por ́voluntario. ̂́Cliche! Elimine sem do. Toda semana ́alguem encontra um elo perdido de alguma coisa. ̂O farmaceutico usou o filho dele nos experimentos. Eduardo Bessa 65 Original: De posse dos ingredientes, sugiro ainda um teste: desenhar cada pará grafo, da introduçã o à conclusã o, incluindo os argumentos e assuntos que gostaria de incluir em cada um. Dessa maneira, fica visıv́el onde temos conteú do demais e onde nos falta mais informaçõ es derivadas da bibliografia. Ajuda a aprofundar mais um pouco a leitura nos lugares certos. Assim també m fica fá cil ordenar adequadamente as ideias com coerê ncia. Podemos agora começar a escrever com mais confiança e segurança. [413 caracteres] Segunda versão, cortar os excessos: De posse dos ingredientes, sugiro um teste: cada pará grafo será desenhado por nó s, incluindo os argumentos e assuntos de cada um. Dessa maneira, fica visıv́el onde temos conteú do demais e onde nos falta. Ajuda a aprofundar a leitura nos lugares certos. Assim també m fica fá cil ordenar adequadamente as ideias com coerê ncia. Podemos agora começar a escrever com mais confiança e segurança. [327 caracteres] Terceira versão, expulsar a ordem indireta: De posse dos ingredientes, sugiro um teste: desenhar cada pará grafo, incluindo os argumentos e assuntos de cada um. Dessa maneira, fica visıv́el onde temos conteú do demais e onde nos falta. Ajuda a aprofundar a leitura nos lugares certos. Assim també m fica fá cil ordenar adequadamente as ideias com coerê ncia. Podemos agora começar a escrever com mais confiança e segurança. [316 caracteres] Versão final, substituindo palavras e termos: Tendo os ingredientes, sugiro um teste: desenhar cada pará grafo, incluindo seus argumentos e assuntos. Assim fica visıv́el onde temos conteú do demais e onde nos falta. Ajuda a aprofundar a leitura nos lugares certos. També m fica fá cil ordenar coerente- 66 DICAS DE ESCRITA PARA DIVULGADORES mente as ideias. Podemos agora escrever com mais confiança. [264 caracteres] Nã o deixe de fazer uma revisã o gramatical e ortográ fica. Confira concordâ ncias e regê ncias nominais e verbais. Corrija a ortografia, os erros de digitaçã o e a acentuaçã o. Cuidado com corretores ortográ ficos eletrô nicos. Eles nã o conseguem diferir entre círculo e circulo. Se necessá rio, recorra ao dicioná rio. Troque palavras repetidas por sinô nimos. Leia todo o texto em voz alta, avaliando a pontuaçã o e a sonoridade do texto. Use conectivos para ligar frases e pará grafos que deixarã o seu texto mais fluido. Para concluir, esse capıt́ulo teve por objetivo apresentar algumas das principais ferramentas das quais o autor iniciante pode lançar mã o para melhorar seus textos. Acredito que as exercitando, seja na construçã o preliminar, seja ao longo de repetidas revisõ es, você s poderã o produzir textos excelentes e levar a ciê ncia a todos. REFERENCIAS PINTO, Ana Estela de Souza. Jornalismo Diário: Reflexões, Recomendações, Dicas e Exercícios. Sã o Paulo: Publifolha, 2009. SQUARISI, Dad. Manual de redação e estilo para mídias convergentes. Sã o Paulo, Geraçã o Editorial, 2011. VIEIRA, Cá ssio Leite. Pequeno manual de divulgação científica, dicas para cientistas e divulgadores de ciência. Rio de Janeiro, Instituto Ciê ncia Hoje, 2006. A DOR E A DELÍCIA DE SER JORNALISTA DE CIÊNCIA Reinaldo José Lopes Nã o é sem alguma hesitaçã o, ou trepidaçã o, que sento na frente do computador para tentar transmitir a um pú blico formado principalmente por cientistas e professores algo da experiê ncia de lidar com jornalismo cientıf́ico todos os dias, escrevendo e editando reportagens para um grande jornal diá rio há pouco mais de dez anos (sem falar nas muitas reportagens para revistas de grande circulaçã o e nos textos publicados na internet ao longo desse mesmo perıo ́ do). Eu nã o diria que existe propriamente um abismo entre o pesquisador e o jornalista, mas os há bitos de pensamento, a rotina de trabalho e as expectativas desses dois grupos bem distintos de profissionais sã o bastante diferentes, disso nã o há dú vida. Meu objetivo nesse capı́tulo é tentar encolher esta distâ ncia da maneira mais prá tica possıv́el: mostrando como a linguagem jornalıśtica normalmente é usada para contar ao pú blico dos meios de comunicaçã o de massa o que é um trabalho cientıf́ico e qual é a sua importâ ncia. Nã o é exagero dizer que as ferramentas que o jornalista de ciê ncia usa estã o à disposiçã o de qualquer pessoa com bom domın ́ io do pró prio idioma e conhecimento de algumas poucas estraté gias de té cnica narrativa. Em ú ltima instâ ncia, portanto, essas ferramentas, normalmente usadas pelos jornalistas, podem se revelar uma arma poderosa para que o cientista se comunique de maneira eficaz com o pú blico e també m com jornalistas. 68 A DOR E A DELICIA DE SER JORNALISTA DE CIENCIA Como as redes sociais e plataformas como blogs deixam cada vez mais permeá vel (ao menos teoricamente) a fronteira entre a mıd ́ ia tradicional e o “jornalista-cidadã o”, pode-se argumentar que cientistas com capacidade comunicadora tê m, diante de si, a oportunidade de tomar, ao menos em parte, as ré deas da interaçã o com a sociedade quando se trata de sua á rea de especialidade. A compreensã o da estrutura do texto jornalı́stico pode ser um primeiro passo importante para colocar em prá tica essa atitude. A SUBJETIVIDADE DA PAUTA No princı́pio era a pauta, parafraseando os textos bıb ́ licos. No jargã o jornalıśtico, “pauta” nada mais é do que o tema que pode ser abordado numa reportagem ou sé rie de reportagens, o foco de um texto jornalıśtico. A trıáde que comumente leva à transformaçã o de um assunto em pauta é formada por atualidade (o tema tem de ser, em alguma medida, novo e atual), proximidade (o assunto tem de ser pró ximo do leitor, seja no sentido de acontecer fisicamente perto dele, seja no de alterar sua vida ou afetá -lo pessoalmente de alguma maneira) e relevâ ncia (talvez o mais subjetivo dos crité rios, o qual mede a importâ ncia de determinado assunto e acontecimento, quantas pessoas ele afeta, como ele muda o mundo). A maioria dos jornalistas (com isso, me refiro aos que nã o sã o jornalistas cientıf́icos, grupo que é minoria absoluta no jornalismo em qualquer lugar do mundo) provavelmente dirá que é fá cil discernir a prioridade de qualquer pauta, do buraco na rua ao impeachment de um Presidente da Repú blica, com base neste trio de crité rios, mas que é difıćil aplicá -lo a muitas pautas envolvendo ciê ncia. Eu, obviamente, discordo. E perfeitamente possıv́el fazer jornalismo cientıf́ico levando em conta estes trê s pilares, Reinaldo José Lopes 69 desde que eles incorporem as nuanças necessá rias que o tema demanda. Num nıv́el mais superficial, por exemplo, quando se pensa em atualidade, nã o há motivo para quebrar a cabeça. A principal fonte para uma notıćia de ciê ncia é o mais recente paper publicado numa revista com revisã o por pares e alto fator de impacto. De fato, posso dizer que esse é o arroz com feijã o da cobertura cientıf́ica nos principais jornais do mundo, mas obviamente trata-se de um cardá pio que, embora nutritivo, també m é limitador. Isso ocorre pela simples razã o de que relativamente poucos artigos cientıf́icos isolados, mesmo os publicados em revistas de alto impacto, realmente "viram o jogo" em determinada á rea de pesquisa. Pode-se argumentar, por isso mesmo, que a atualidade deve abranger dois outros aspectos complementares. Numa ponta, o que podemos chamar de grandes tendê ncias, o que seria quase o equivalente a uma revisã o bibliográ fica em formato jornalıśtico: uma explosã o de artigos sobre determinado tema num curto perıo ́ do de tempo (isso aconteceu de 2007 a 2009 no caso das cé lebres cé lulas-tronco pluripotentes reprogramadas, ou iPS, como també m sã o chamadas) certamente demonstra que aquela á rea está ganhando solidez e importâ ncia. Na outra ponta, trabalhos interessantes apresentados em congressos cientı́ficos també m já passaram por algum nıv́el de revisã o por pares e merecem alguma atençã o, embora o filtro seja, obviamente, um tanto menos severo que o de uma revista cientıf́ica semanal ou mensal. E, claro, quando se tem o privilé gio de acompanhar o trabalho de um cientista em campo, seja um etó logo que observa primatas, ou um paleontó logo que acaba de achar um trilobita, se a coisa está acontecendo no presente e representa um novo esforço para recolher e sistematizar dados, o crité rio da atualidade també m está plenamente satisfeito. 70 A DOR E A DELICIA DE SER JORNALISTA DE CIENCIA Já o crité rio da proximidade depende, obviamente, da consciê ncia sobre o pú blico do meio de comunicaçã o para o qual se está produzindo. Eu sei, por exemplo, que dois terços dos compradores dos cerca de 300 mil exemplares diá rios da Folha de S. Paulo moram no Estado de Sã o Paulo e que, de qualquer maneira, o jornal tem a pretensã o de ser um diá rio de alcance nacional. Obviamente, portanto, meu pú blico, na condiçã o de jornalista de Ciê ncia nesse jornal, é , em grande medida, paulistano e, claro, brasileiro. E necessá rio, por isso mesmo, levar tais informaçõ es em conta quando se escolhe quais publicaçõ es cobrir. Cientistas brasileiros necessariamente merecerã o destaque, em especial quando a sua pesquisa envolve assuntos que possam afetar o cotidiano, a economia ou a sociedade de Sã o Paulo ou do Brasil. Estudos sobre a dinâ mica de transmissã o da dengue ou sobre o genoma da cana-de-açú car obviamente terã o precedê ncia diante de pesquisas sobre o metabolismo de esquilos do Alasca no inverno polar (embora o crité rio da relevâ ncia possa me levar a inverter essa prioridade, como veremos a seguir). O imediatismo, que, muitas vezes, é uma das grandes pragas do jornalismo, faz com que, para muitas pessoas, a relevâ ncia das notıćias de ciê ncia nã o seja enxergada. A resposta automá tica de quem edita a primeira pá gina de um jornal, por exemplo, é que praticamente qualquer assunto da polıt́ica ou da economia sai ganhando dos temas cientıf́icos na hora de merecer destaque na capa do diá rio, da revista ou do site noticioso. As exceçõ es sã o coisas també m ó bvias, como alguma nova terapia de sucesso estrondoso. Nã o é por causa deste automatismo, no entanto, que deverıámos deixar de lado as especificidades do universo da ciê ncia na hora de decidir o que é relevante. A importâ ncia de uma notıćia da á rea nã o deve se resumir apenas à aplicaçã o prá tica de determinada descoberta, mas també m, e talvez Reinaldo José Lopes 71 principalmente, à potencialidade dessa notıćia como algo que redefine o conhecimento humano. E nã o apenas o conhecimento, mas o imaginá rio das pessoas, a sua autopercepçã o, a noçã o que elas possuem sobre o seu pró prio lugar no universo. Para dar um exemplo mais concreto: como jornalista de ciê ncia, eu escolheria dar muito mais destaque à descoberta de que chimpanzé s fabricam ferramentas, tal e qual seus parentes humanos (infelizmente eu nem era nascido ainda quando a primató loga Jane Goodall fez suas observaçõ es seminais sobre a tecnologia chimpanzé em Gombe, na Tanzâ nia), do que ao desenvolvimento de uma nova droga emagrecedora. Mas, é claro, sempre haveria a possibilidade de que meus chefes discordassem de mim. Concordo, em linhas gerais, com uma frase que era repetida com frequê ncia por Marcelo Leite, que foi meu mentor quando ele era editor de Ciê ncia na Folha de S. Paulo (onde eu ainda trabalho): a missã o do jornalismo de ciê ncia é tornar interessante o que é importante, e nã o fazer com que o meramente interessante pareça importante. No entanto, pensando no papel ao menos parcialmente educativo do jornalismo cientıf́ico, em seu potencial para fazer com que o pú blico em geral se interesse por ciê ncia, o meramente interessante pode ter um papel nem um pouco desprezıv́el: o de levar o leitor a se maravilhar com o universo e, quem sabe, a partir desse gostinho inicial, ir alé m. SUA MAJESTADE, O LIDE E hora de falar da estrutura propriamente dita do texto jornalıśtico e de como ela pode parecer pouco familiar para quem se treinou mentalmente para escrever papers, por exemplo, ou mesmo dissertaçõ es. 72 A DOR E A DELICIA DE SER JORNALISTA DE CIENCIA Em jornalismo escrito, o lide (do inglê s lede ou lead), se nã o é tudo, é pelo menos 70% do texto. Esse é o nome que se dá para o primeiro pará grafo de uma reportagem (à s vezes se estendendo para o segundo e o terceiro pará grafos, normalmente chamados de sublide). Talvez a principal diferença entre o texto de um artigo cientıf́ico, ou de uma redaçã o de vestibular, e uma reportagem escrita é o fato de o jornalista nã o poder se dar ao luxo de traçar todo o contexto histó rico de uma á rea antes de apresentar os resultados novos. O contexto fica para depois – se houver espaço, o que nem sempre há . O necessá rio é condensar, da maneira mais memorá vel, breve e chamativa possıv́el, qual é a novidade da qual o texto tratará . Tradicionalmente, o lide responde logo de cara à s perguntas "quem, como, onde, quando, por quê ", que estruturam qualquer notıćia. E claro que, muitas vezes, nã o dá para responder a todas essas perguntas de uma vez, ou fazê -lo de forma completa, considerando que o lide també m precisa ser breve, nã o cansar demais o leitor. Esse ú ltimo ponto é importante. Creio que deve estar claro, para muita gente, o fato de que vivemos uma era de excesso de informaçã o e de completa falta de tempo para processá -la. Quem deseja falar com um pú blico amplo tem de estar preparado para disputar a atençã o do leitor, e por isso a brevidade e a força do lide sã o ferramentas essenciais. Ademais, considera-se que a correria do cotidiano, muitas vezes, faz com que os leitores abandonem a leitura de uma reportagem já no lide, se estiverem sem tempo. Portanto, o ideal é que ele seja o mais autocontido possıv́el e traga o má ximo de informaçõ es para que o leitor – forçado a abandonar aquele texto logo no começo (ou que simplesmente nã o tenha se animado a continuar a leitura por nã o se interessar pelo tema) – obtenha, ainda assim, um mın ́ imo de conteú do informativo. Reinaldo José Lopes 73 Longe de mim soar arrogante ao ponto de dar a impressã o de que eu sou um exım ́ io produtor de lides brilhantes, mas talvez alguns exemplos que saıŕam do meu teclado recentemente ajudem a tornar um pouco mais concreto o que estou dizendo. Exemplo 1: "A imagem de um tiranossauro de uma tonelada e meia, recoberto por penugem semelhante à de um pintinho, parece até campanha para desmoralizar o mais temıv́el dos dinossauros. Mas é a mais pura verdade, dizem cientistas da China e do Canadá ." (Sobre um membro primitivo do clado dos tiranossauroides que parece ter tido penas.) Exemplo 2 (incluindo lide e sublide): "Quem lê uma pesquisa que acaba de ser publicada no site da revista especializada Journal of Archaeological Science se sente seriamente tentado a repetir o bordã o do guerreiro gaulê s Obelix: 'Esses romanos sã o loucos!'. De fato, só um impé rio nã o muito certo das ideias seria capaz de levar camelos para lugares tã o frios quanto as atuais Greenwich (subú rbio de Londres), Arlon (Bé lgica) ou Windisch (Suıḉa)." (Sobre a presença de ossos de camelos em sıt́ios arqueoló gicos romanos do Norte da Europa.) Exemplo 3 (também com lide e sublide) "Tem gente que vive com um pé no passado, mas um estranho hominıd ́ eo de 3,4 milhõ es de anos abusava do direito de ser saudosista. Enquanto outros membros primitivos da linhagem humana já tinham dominado totalmente a arte de andar com duas pernas, a criatura ainda tinha um dedã o do pé que funcionava como polegar, como o dos chimpanzé s e gorilas de hoje, por exemplo." (Sobre uma possıv́el nova espé cie de 74 A DOR E A DELICIA DE SER JORNALISTA DE CIENCIA hominıd ́ eo descoberta na Etió pia, contemporâ nea do totalmente bı́pede Australopithecus afarensis, que parece ter conservado um padrã o de locomoçã o mais primitivo.) Nã o sei se estes exemplos sã o particularmente felizes (espero que sejam!), mas eles, ao menos, sã o sobre estudos publicados recentemente em revistas com revisã o por pares, o que facilita na hora de checar se eles, de fato, refletem as pesquisas originais. De qualquer maneira, acho que eles representam bem como eu acredito que o jornalismo cientıf́ico deve ser feito para satisfazer, ao mesmo tempo, a necessidade de precisã o e a de manter o leitor interessado no que tem diante dos olhos. Alé m dos pará grafos curtos (bem mais curtos do que os que compõ em esse capıt́ulo!) e da linguagem á gil, eles també m possuem doses de um elemento que eu considero essencial: o humor. Sejamos honestos: as pessoas tendem a temer o que nã o entendem. Temas cientıf́icos supostamente sã o "complicados", "difıćeis", "pesados", até para quem tem formaçã o universitá ria e boa cultura geral em á reas que nã o tê m a ver com as ciê ncias naturais – poucos advogados se sentiriam à vontade para explicar como funciona a passagem do DNA para as proteın ́ as dentro da cé lula, por exemplo. O humor ajuda a quebrar a primeira barreira de medo e incompreensã o que cerca um tema. Ajuda, alé m disso, a mostrar a possibilidade de se divertir com ele, por mais abstruso que pareça – daı́ as referê ncias que fiz aos quadrinhos de Asterix ou à suposta campanha de desmoralizaçã o de dinossauros. Parece um pouco ridı́culo comparar isso à quelas propagandas de brinquedos educativos, nas quais o fabricante (à s vezes um tanto picareta) garante que a criança vai "aprender brincando", mas a analogia nã o é descabida. Um segundo ponto crucial, que pode ou nã o ser separado da questã o do amor, é o das metá foras, presente na reporta- Reinaldo José Lopes 75 gem do hominıd ́ eo ao dizer que ele tinha "um pé no passado" ou que ainda nã o tinha dominado a "arte de andar com duas pernas". A questã o das metá foras é um tanto controversa porque, para muita gente, elas sã o excessivamente abertas a interpretaçõ es errô neas. Para ficar nos pró prios exemplos que dei, é ó bvio que ser bıp ́ ede nã o é uma arte. Alguns primatas do Mioceno e do Plioceno (ainda nem sabemos com certeza quem eram eles) chegaram a essa adaptaçã o por meio do complicado e nada intencional processo de variaçã o gené tica aleató ria combinada com a "peneira" (caramba, outra metá fora que aparece sem ser convidada!) da seleçã o natural. Usar essa linguagem mais vıv́ida nã o é um convite a deseducar o leitor? Pode ser, mas trata-se de um risco que precisa ser corrido, e é , aliá s, um risco que a pró pria ciê ncia corre o tempo todo em sua nomenclatura especıf́ica, pela pró pria natureza da linguagem. Nã o é exatamente a mesma coisa que acontece quando, ao falar de biologia molecular, usamos termos como a "transcriçã o" e a "traduçã o" da informaçã o contida na molé cula de DNA? Existe uma metá fora por trá s de quase todos os termos té cnicos supostamente isentos e neutros da ciê ncia. A questã o, portanto, é escolher a metá fora que combine clareza de expressã o e vividez com precisã o. Se bem usada, a estraté gia traz um mundo pouco familiar para mais perto da experiê ncia normal do leitor e, ao mesmo tempo, evita que ele tenha uma impressã o errada sobre o que está escrevendo. Outro exemplo, ainda no domın ́ io quase onipresente do DNA, foi-me ensinado por meu guru, Marcelo Leite. Ele sempre fez questã o que evitá ssemos frases como "o gene que comanda/altera/domina" essa ou aquela funçã o do organismo, porque sabemos que a sequê ncia de determinado gene na molé cula de DNA é basicamente passiva, dependendo fundamentalmente de toda a maquinaria de fatores de transcriçã o, splicing alternativo, etc. para ter algum papel na cé lula. E por 76 A DOR E A DELICIA DE SER JORNALISTA DE CIENCIA isso que tomá vamos todo o cuidado para escrever "o gene que conté m a receita para a produçã o de determinada proteın ́ a". A cé lula, claro, nã o é um bolo, mas o gene está mais para receita do que para cozinheiro, disso nã o há dú vida. E muito difıćil trazer à tona em todos os detalhes o lado quantitativo da ciê ncia, até porque pouquıśsima gente se sente à vontade com equaçõ es diferenciais. O que é perfeitamente possıv́el, no entanto, é retratar o universo conceitual de praticamente qualquer á rea, desde que o uso judicioso das metá foras auxilie na aproximaçã o entre aquele universo e o cotidiano do leitor. ANIMAIS NARRADORES Um ú ltimo ponto que eu gostaria de enfatizar tem uma relaçã o interessante com uma á rea da ciê ncia que costuma ser muito atraente para os jornalistas, em parte por seu potencial de polê mica, em parte porque ajuda a traçar uma narrativa irresistı́vel dos comportamentos humanos: a psicologia evolucionista. Acho que nã o preciso me estender muito ao explicar por que essa á rea é tã o fascinante e aparentemente subversiva. Afinal, a humanidade passou milê nios criando modelos que fossem capazes de explicar a natureza das pessoas sem, na maioria dos casos, atinar para o fato ó bvio de que somos animais, com conexõ es e continuidade com outras formas de vida. E que os mesmos fatores da seleçã o natural que moldaram os demais seres vivos també m nos moldaram. Uma das á reas em efervescê ncia na psicologia evolucionista hoje tem a ver com a ideia de que somos "animais narradores" – que o interesse por histó rias, a compulsã o de ouvi-las e contá -las faz parte da natureza humana e, provavelmente, nos auxilia a criar modelos ú teis e memorá veis do mundo. Reinaldo José Lopes 77 Se essa ideia estiver correta, e nã o vejo bons motivos para que nã o esteja, o jornalismo cientıf́ico só será bem-sucedido se adotar os procedimentos que transformam em sucesso qualquer outro tipo de narrativa, da arte de contar histó rias. O jeito mais simples e mais consagrado de fazer isso é adotar um modelo de histó ria de detetive, no qual as pistas deixadas pela natureza servem de combustıv́el para a busca do cientista-investigador. Mas nã o é necessá rio cair num modelo tã o banal, nem adotar procedimentos um tanto forçados de criar suspense ou de resolver as dú vidas da "trama" (até porque, como sabemos muito bem, o papel da pesquisa quase sempre é o de levantar mais dú vidas do que as que ela respondeu ao longo do caminho). Acho mais seguro e proveitoso, mais pró ximo da realidade, tentar retratar cientistas como personagens com vida, cada um com a sua aparê ncia fıśica peculiar, maneirismos de roupa e linguagem, desejos, anseios, interesses; abordar a empolgaçã o da descoberta, mas també m a sobriedade daquele que sabe nã o ter todas as respostas na mã o, mas, ainda assim, quer continuar procurando. E o truque, muitas vezes nem um pouco fá cil, de mostrar como o ceticismo e a admiraçã o, como dizia Carl Sagan, sã o usados para pintar um retrato em expansã o da realidade que nos cerca. O QUE VOCÊ PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS Mauro F. Rebelo PERDER O MEDO DE ESCREVER E eu não quero dar pasto à crítica do futuro. A frase de Machado de Assis, lida em um dos alto-falantes na exposiçã o sobre o autor organizada pelo Museu da Lın ́ gua Portuguesa em Sã o Paulo, em 2008 (ano do centená rio da morte do escritor), mostra a preocupaçã o que ele tinha com a publicaçã o de um escrito. O Museu da Lın ́ gua Portuguesa fica na Estaçã o da Luz, com fá cil acesso e ingresso barato. E um programa imperdıv́el quando se está em Sã o Paulo. E como nã o é muito grande, você ainda pode aproveitar que está por ali e atravessar a rua para ir à Pinacoteca do Estado. Outro grande programa. Na exposiçã o, mais do que seus famosos textos, me chamaram atençã o as suas observaçõ es sobre o ato de escrever. Algumas impressas nas paredes, no chã o ou em pá ginas de livros gigantes. Quando se escreve muito como eu escrevo (blog, artigos, teses, projetos, relató rios, provas, aulas), mas, principalmente, quando se tem que avaliar o que os outros escrevem (de novo, blog, artigos, teses de alunos, projetos, relató rios, provas, aulas), a gente pensa muito sobre o ato de 80 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS escrever. Eu pelo menos penso. Entã o, ao deparar com as observaçõ es de 100 anos de Machado de Assis, fiquei impressionado como elas eram modernas. Talvez eu suprima o capı́tulo anterior. Há aı́, nas ú ltimas linhas, uma frase muito parecida com um despropó sito. E eu nã o quero dar pasto à crıt́ica do futuro. Essa frase tem vindo recorrentemente à memó ria, porque tenho percebido que o medo da crıt́ica é provavelmente o maior veneno para a criatividade e é a principal razã o para o “branco” que jovens autores enfrentam ao começar a escrever um trabalho. Na verdade, qualquer autor. Nã o importa se um é renomado e o outro é um aluno que sempre enfrentou dificuldades com os rigorosos crité rios dos professores. Muitos autores acham que seus textos sempre precisam de mais alguma coisa antes de publicá -los. E nunca publicam. O medo de um autor de publicar a sua opiniã o em um blog nã o o impede de publicar seus artigos cientıf́icos, mas lhe causa um dano mortal: sã o imitaçõ es do que ele acredita que os editores e revisores querem ler. Nã o quer dar pasto à crıt́ica do futuro, mas muito menos à crıt́ica do presente. Apesar de o nú mero de perió dicos ter aumentado muito nos ú ltimos anos, a dificuldade para publicar um artigo nã o diminuiu. A ponto dessa dificuldade ser um dos grandes fatores de estresse para os jovens cientistas brasileiros, como descreveu De Meis (2003) em “Aumento da competiçã o na ciê ncia brasileira: ritos de passagem, estresse e esgotamento nervoso”. Existem cursos e mais cursos sobre como escrever e vá rias ferramentas tecnoló gicas interessantıśsimas. Mas acho que nenhum deles tem tocado num ponto fundamental: o medo de escrever. Apesar de a internet ter propiciado uma recuperaçã o da importâ ncia da palavra escrita na comunicaçã o (nos anos Mauro F. Rebelo 81 80 e 90, vivemos na é gide do vıd ́ eo), o distanciamento dos nossos jovens tinha sido tã o longo que ainda nã o houve uma “reconciliaçã o” com a palavra. A palavra escrita, eu descobri no meu contato com alunos de cursos à distâ ncia, tem uma permanê ncia, uma persistê ncia, maior que a falada. E ela dá medo. As pessoas tê m medo de escrever! E por isso nã o escrevem, criando um cıŕculo vicioso difıćil de ser quebrado. Escrever nã o é talento inato. Nem é uma arte. Escrever é prá tica! E treino! Nã o é inspiraçã o, é transpiraçã o! Mas até entã o a gente nã o sabia disso, e a maior parte dos estudantes ainda nã o sabe disso també m. E comum, por exemplo, vermos projetos de tese em que o aluno separa os dois ú ltimos meses para “escrever a tese”. E quando chegam esses dois meses, ele senta em frente ao computador esperando que a iluminaçã o divina se manifeste por meio dos seus dedos, enchendo a tela do computador com caracteres que façam sentido. Como se fosse psicografia. “Escrever é sobretudo reescrever”, disse o escritor portuguê s Antô nio Lobo Antunes. Se você nunca escreveu nada, comece com um blog, comece com textos pequenos, falando de momentos ou acontecimentos especıf́icos. Escolher sobre o que escrever pode ser um problema grande e, por isso, vamos falar mais a respeito daqui a pouco. O importante é que você comece a escrever. A histó ria mostra que os cientistas sempre erraram. O livro “Penso, logo me engano”, do francê s Jean Pierre Lenin, está cheio de gafes cientıf́icas. Mas o “medo da crıt́ica do futuro” nã o deve impedir cientistas ou alunos de escreverem. O que eles devem, como Machado fazia, é apurar o trabalho e o cuidado com a revisã o de seus textos. O medo da crıt́ica do futuro nunca impediu Machado de publicar nada. Pelo menos nada do que fosse bom. E o que determina “o que é bom” é o crité rio que você vai desenvolver com trabalho, escrevendo e reescrevendo. Sem praticar e errar, você nunca vai aprimorar o seu crité rio e nunca vai escrever bem. 82 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS Quem deixa de escrever por medo de errar ou por timidez está perdendo a grande arma do mundo moderno. A espontaneidade. Quem escreve se mostra. Quem se mostra, arrisca estar errado. Mas també m, só quem se mostra, mostra o que sabe. Por isso, a primeira coisa para andar avante em um texto é excluir o medo de errar como crité rio de qualidade. SELEÇAO DA INFORMAÇAO Mas, ou muito me engano, ou acabo de escrever um capítulo inútil. As frases de Machado de Assis se aplicam muito bem ao mundo saturado de informaçã o onde vivemos, em que a diferença entre um bom texto e um texto ruim, ou um texto fá cil ou difıćil, está diretamente relacionada à quantidade de texto produzido por um autor. Atualmente, a quantidade é um parâ metro de qualidade. Depois que aprendi isso, é difıćil imaginar como algué m pode nã o percebê -lo. Nada mais me chamou tanta atençã o na exposiçã o. Faz toda a diferença para escrever um texto cientıf́ico ou acadê mico. Esta é de “Memó rias pó stumas de Brá s Cubas”: Mas nã o, nã o alonguemos esse capı́tulo. As vezes, me esqueço a escrever e a pena vai comendo papel, com grave prejuıźo meu, que sou autor! Capı́ t ulos compridos quadram melhor a leitores pesadõ es, e nó s nã o somos um pú blico in-fó lio. Mas in-12, pouco texto, larga margem, tipo elegante, corte dourado e vinhetas… principalmente vinhetas. Nã o, nã o alonguemos o capıt́ulo. Mauro F. Rebelo 83 Mas como podemos saber se o capıt́ulo está bom ou está longo? Sim, lendo e relendo, escrevendo e reescrevendo. Mas o que procuramos, ou o que devemos procurar, quando estamos lendo e relendo, escrevendo e reescrevendo? Estamos procurando o que é mais relevante. Estamos procurando estabelecer prioridade e hierarquia. E como podemos identificar? Outro dia, vi, em um programa de televisã o, um gerente de Recursos Humanos falando que, atualmente, o que vale é a inovaçã o. E isso que se vende, é isso que se compra e é isso que as empresas querem dos seus empregados. Inovaçã o. Mas para criar algo inovador e importante, é fundamental saber determinar o que é relevante entre o que já existe. Com os computadores aı́ para guardarem e procurarem a informaçã o com uma eficiê ncia maior do que qualquer ser humano costuma ser capaz, o diferencial do professor, do cientista e de qualquer outro profissional está na sua habilidade de determinar a relevâ ncia da informaçã o. Selecionar informaçã o é uma das grandes dificuldades dos escritores també m. Essa dificuldade está intimamente relacionada com determinar o que é interessante ou importante para o pú blico-alvo, mas també m é importante para que o autor determine quando tem alguma coisa que valha a pena ser colocada no papel. Muitas vezes, a dificuldade para começar a escrever está na dificuldade em escolher sobre “o que” escrever. Vou propor um exercıćio que é , ao mesmo tempo, um exemplo e uma explicaçã o. O texto a seguir é um trecho da discussã o entre o professor Coleman Silk e a professora Delphine Roux, personagens do livro “A marca humana”, de Philip Roth (p. 246–247): O grau de conhecimento desses alunos é , sacou, tipo assim, zero. Depois de 40 anos lidando com esse tipo de aluno – e a senhorita Mitnick é bem tıp ́ ica – posso lhe afirmar que nada poderia ser pior para eles que 84 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS uma leitura de Eurı́ p edes com uma perspectiva feminista. Apresentar aos leitores mais ingê nuos uma leitura feminista de Eurıp ́ edes é uma das melhores maneiras que se pode imaginar de desligar o raciocı-́ nio deles antes mesmo de ter oportunidade de começar a demolir o primeiro “tipo assim” deles. Chego a achar difıćil de acreditar que uma mulher instruı́da, com uma formaçã o acadê mica francesa como a sua, seja capaz de acreditar que existe uma leitura feminista de Eurı́pedes que nã o seja pura bobagem. Será que você realmente se converteu em tã o pouco tempo, ou será apenas uma manifestaçã o do tradicional carreirismo ditado pelo medo das suas colegas feministas? Porque se for mesmo carreirismo, por mim, tudo bem. E uma coisa humana, eu compreendo. Agora, se for um compromisso intelectual com essa idiotice, entã o eu estou pasmo, porque você nã o é nenhuma idiota. Porque você é uma pessoa instruıd ́ a. Porque na França ningué m na École Normale levaria essa bobajada a sé rio. Será possıv́el? Ler duas peças como “Hipó lito” e “Alceste”, depois ouvir uma semana de discussõ es em sala de aula sobre cada uma delas, e, no fim, nã o ter nada a dizer sobre as duas peças alé m de que sã o “degradantes para as mulheres” – isso nã o é perspectiva coisa nenhuma, meu Deus. Isso é abobrinha. Abobrinha da Moda. Agora eu pergunto: qual a informaçã o mais relevante desse texto? Escolha apenas uma resposta entre as opçõ es abaixo: 1. O professor Coleman é machista, e a professora Delphine é feminista. 2. Quando um professor fornece uma interpretaçã o de um texto, ele direciona a interpretaçã o que o pró prio aluno pode fazer do texto. 3. O pú blico-alvo de “alunos burros” nã o deve ser tratado com burrice. Mauro F. Rebelo 85 4. Nã o há informaçõ es relevantes nesse texto ou nã o posso identificar informaçõ es relevantes nesse texto sem haver lido o livro e os clá ssicos gregos. Vamos analisar as respostas desse questioná rio: 1. O texto diz que ele é contra uma leitura feminista do texto de Eurıp ́ edes, enquanto sugere que ela é a favor. Sim, há um tom autoritá rio e irô nico no discurso de Coleman, mas nã o há elementos suficientes no texto para classificá -los, respectivamente, como machista e feminista. Poré m, mais importante que isso, é que esse nã o é o nú cleo do discurso e, por isso, nã o pode ser a informaçã o mais relevante do texto. Quem marcou essa opçã o fez uma leitura pessoal, que nã o pode ser sustentada pelas informaçõ es contidas no texto. 2. Thomas Kuhn dizia que o “manual” era um dos maiores inimigos do aprendiz de ciê ncias, porque, ao dar o procedimento final pronto, ele impedia que o aluno passasse pelo processo da descoberta, que tanto favorece a sua compreensã o e aprendizagem. Esta é , para mim, a informaçã o mais relevante do texto: o grande prejuıźo de um professor fornecer para os alunos um raciocın ́ io já pronto. Para mim, essa é a resposta correta. Alé m de correta, ela estabelece um mecanismo que pode ser aplicado em diferentes circunstâ ncias. 3. O mesmo conteú do pode ser ensinado para alunos com diferentes potenciais, mas, certamente, nã o da mesma forma, nem com as mesmas estraté gias. Alunos que já sabem “pensar” por si pró prios podem começar a discussã o de uma peça ou um autor, por uma de suas releituras. Alunos que ainda nã o sabem precisam primeiro aprender a ter uma leitura. Dar uma leitura pronta para esses alunos é auxiliar o “sistema” no processo de exclusã o educacional e social dessas pessoas. Nã o dar o conteú do dos clá ssicos porque ele é “difıćil” é tratá -las como burras. Nivelar por baixo. Um bom professor nã o pode fazer nenhuma das duas coisas. Nunca! Para mim, essa també m é uma infor- 86 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS maçã o nuclear do texto, mas nã o estabelece um mecanismo. Por isso ela nã o é a opçã o mais relevante. 4. Esse fragmento de texto conté m um discurso rico, independentemente do contexto em que foi pronunciado. E verdade que existem textos com lacunas demais, em que é praticamente impossıv́el identificar o nú cleo conceitual ou as prioridades do autor, mas, na maior parte das vezes, nã o precisamos saber o todo para entender uma parte. As colocaçõ es contundentes certamente permitem que preenchamos algumas lacunas com precisã o. Quem marcou essa opçã o, ou estava muito desatento, ou tem uma sé ria dificuldade para estabelecer relevâ ncia. Acredito que o diferencial de um profissional hoje, em qualquer carreira, e definitivamente na escola, é a habilidade de buscar e selecionar informaçã o. O professor, em particular, será um especialista em relevâ ncia e o que ele ensinará para os alunos, independentemente da disciplina, é relevâ ncia: a arte milenar de separar o joio do trigo. CONHECER O SEU PUBLICO O melhor drama está no espectador, e não no palco. Nas muitas atividades acadê micas que eu participo, desde a sala de aula até as defesas de teses, dos seminá rios de laborató rio até as apresentaçõ es em congressos, o desconhecimento, ou, muitas vezes, o descaso do autor com o seu pú blico, ainda que inconsciente, é a principal razã o para a falta de atençã o das plateias. Eu poderia esperar que um estudante estivesse acostumado a escrever para os seus professores, que um cientista estivesse acostumado a escrever para os seus pares, mas o que eu observo é que, na maioria das vezes, as Mauro F. Rebelo 87 pessoas escrevem para si. O resultado é um texto que interessa apenas a elas e que apenas elas sã o capazes de ler e de entender. O astro de qualquer palestra nã o é o palestrante, é o pú blico, como disse Machado de Assis nessa brilhante citaçã o. O astro de qualquer manuscrito nã o é o autor, é o leitor. Isso precisa estar claro antes do processo de criaçã o começar. Eu poderia analisar aulas, teses, artigos em revistas. Mas esses sempre tê m um pú blico obrigató rio, e é pouco produtivo discutir o valor de um determinado conteú do nessas situaçõ es. Um artigo, por mais especıf́ico que seja, deve sempre ter um pú blico, que, por menor que seja, pode justificar aquela informaçã o. Mas quando se trata de divulgaçã o cientıf́ica, nã o é bem assim. O que determina a importâ ncia e a relevâ ncia do conteú do é o pró prio interesse do pú blico por ele. “Só se escreve para nó s, ou para todo mundo”, me ensinou, em outra oportunidade, a escritora Sonia Rodrigues. Enquanto antigamente nó s precisá vamos “imaginar” quem era o nosso leitor, o “pú blico-alvo”, hoje as ferramentas de internet permitem um monitoramento constante desse pú blico, nos ajudando a determinar o alcance do nosso texto. E possıv́el saber quantos acessos, qual a sua origem, qual a taxa de rejeiçã o, etc. Os blogueiros de ciê ncia que conheci, até hoje tê m um pú blico-alvo bem estabelecido: querem escrever para outros blogueiros. A opçã o por escrever para os “pares” é mais fá cil. Ser um blogueiro de qualquer assunto mostra um interesse mın ́ imo por informaçã o e també m capacidade autoral. Isso faz deles, provavelmente, leitores com crité rio. Blogueiros de diferentes assuntos podem nã o saber ciê ncia, mas tê m, acredito, senso crıt́ico para aprender ciê ncia. Ou, pelo menos, para entender uma explicaçã o sobre o porquê das coisas. O objetivo do blogueiro de ciê ncia passa a ser entã o despertar a atençã o do 88 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS blogueiro nã o cientista para coisas que ele acha legais. Por isso blogueiros de ciê ncia discutem tanto a importâ ncia de um tıt́ulo controverso, do posicionamento da ciê ncia em uma boa polê mica. Uma tarefa, diga-se de passagem, difıćil. A ciê ncia, em um nıv́el bá sico, pode ser muito chata e as tais contrové rsias interessantes, muito difıćeis. Mesmo para os iniciados. E um belo desafio. Mas um bom blog de ciê ncias pode ter algo como mil acessos por dia. Será que esses sã o todos blogueiros? Apesar da sua opçã o por um pú blico especıf́ico, o pú blico-alvo está sendo muito maior do que o esperado. Quem é esse pú blico? No final de 2006, o Ministé rio da Ciê ncia e Tecnologia preparou uma pesquisa sobre a percepçã o que o brasileiro tem da C&T. A pesquisa foi feita com mais de 2.000 pessoas em todo Brasil (a ú ltima pesquisa do gê nero havia sido feita há mais de vinte anos). Ela mostra que o brasileiro nã o é “incluıd ́ o” cientificamente. Apenas 4% dos entrevistados já foram alguma vez a um museu de ciê ncia (e ainda que seja um fato que nã o existem muitos museus por aı,́ 31% afirmaram nã o terem “tempo para ir” e 22% simplesmente nã o estavam “interessados”). Mas nã o termina aı,́ é pior: apenas 28% já visitaram um jardim zooló gico, um jardim botâ nico ou um parque ambiental; só 25% já foram a uma biblioteca pú blica e apenas 12% já foram a um museu de arte. Para essas pessoas, a televisã o é o meio mais usado para conhecer a ciê ncia, mas, mesmo assim, apenas 15% dos entrevistados dizem ver com frequê ncia programas que tratam do assunto. Os jornais e as revistas vê m em seguida, com 12% cada, seguidos por, vejam só , a conversa entre amigos, com 11%! A internet fica na quinta posiçã o, com 9%. Dos estimulados a responder sobre o nıv́el de interesse que tê m sobre ciê ncia, 41% disseram ter “muito interesse” (para se ter uma ideia, o interesse em polıt́ica é de apenas 20%) e 60% dos entrevistados acreditam que os cientistas sã o Mauro F. Rebelo 89 pessoas inteligentes que trabalham pelo bem da humanidade. E que a ciê ncia traz mais benefıćios que malefıćios à sociedade. A pesquisa mostra que o interesse por ciê ncia é relativamente bem distribuıd ́ o, mas existem algumas tendê ncias principais: ele é maior (mas só 5% maior) entre homens do que mulheres, tanto jovens estudantes como executivos com alto grau de instruçã o, sendo que o seu principal interesse é a tecnologia. As mulheres tê m mais interesse em questõ es relacionadas à saú de e à medicina. Mas mais da metade dos 2.000 entrevistados disse ter pouco ou nenhum interesse em ciê ncia e tecnologia. Deles, 37% responderam que a falta de interesse se dá pelo fato de nã o entenderem do assunto, enquanto 24% disseram simplesmente nã o ter tempo para “isso”. O nosso pú blico-alvo, a sociedade brasileira, nã o tem percepçã o de quanto a ciê ncia é importante. A pesquisa nos mostra que existe um pú blico realmente interessado em ciê ncia, mas que també m existe um pú blico muito maior desinteressado. Podemos escrever para o primeiro, mas será que os alcançamos quando escrevemos um artigo em uma revista especializada, quando escrevemos uma tese, ou mesmo um texto em um blog? Uma aná lise dos acessos aos blogs de ciê ncia sugere que nã o, ao menos tirando pelo que vemos no Scienceblogs Brasil, onde escrevo meu blog “Você Que E Bió logo”. Ÿ A massa de leitores de blogs de ciê ncias é de estudantes em busca de informaçã o para fazerem trabalhos da escola ou faculdade. Temos vá rios indicativos disso: Ÿ Em torno de 80% do trá fego dos blogs chega por meio do Google e de outros mecanismos de busca, usando palavras-chave relacionadas com ciê ncias. Ÿ Entre as pá ginas mais acessadas de muitos blogs estã o textos com conteú do didá tico, com assuntos como 90 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS seleçã o natural, leis da termodinâ mica e estrutura do á tomo. Ÿ O acesso ao blog flutua durante a semana, com picos à s quartas-feiras e vales aos sá bados, e durante o ano, com picos em abril e outubro e quedas em julho, dezembro e janeiro. O que corrobora o acesso por estudantes. Ÿ Entre 10% e 15% dos acessos sã o oriundos de links em outros textos (a comunidade blogueira) e os 5% restantes sã o acessos diretos, nossos poucos leitores fié is que chegam a saber o nosso endereço. Os blogueiros chamam a maior parte dos 80% dos acessos que chegam pelos mecanismos de busca de “paraquedistas”: aqueles internautas que entram na pá gina e ficam poucos segundos, que sã o trazidos por alguma manchete ou fotografia e saem sem nem mesmo ler o conteú do do texto. Vejam que quando um blogueiro se dedica a pensar na melhor manchete para o seu texto sobre ciê ncia – aquela que vai ajudá -lo a capturar a atençã o dos outros blogueiros que estã o na rede – ele está dedicando tempo e energia para atingir apenas 10% a 15% dos seus leitores. E verdade que escrever um texto que capture a atençã o de um leitor que nã o quer ler, nã o está acostumado a ler, nã o estava buscando ler, ou estava buscando informaçã o por obrigaçã o é muito mais difıćil do que pensar em uma manchete para um pú blico especializado. Sã o os chamados “internautas sem crité rio”, que o Luli Radfaher falou na palestra do “Oi Futuro”, ou os “excluıd ́ os com Orkut”, como disse a Sonia Rodrigues no projeto “Rio Biografias”. Uma nova classe de personagens do ambiente virtual, que sã o os excluı́dos funcionais do sistema educacional, aquelas pessoas que tê m pouco potencial para desenvolver sua pró pria opiniã o porque tê m pouca capacidade de identificar elementos em um texto, interpretar em funçã o do que está Mauro F. Rebelo 91 sendo lido ou nã o dos seus pró prios preconceitos, mas que agora começam a participar do ambiente virtual só para circular, consumir. Essa é , no entanto, a grande massa de pessoas que lê o que se disponibiliza! A gente nã o precisa chamar esses excluı-́ dos da escola? E seria uma irresponsabilidade, alé m de um desperdıćio, nã o escrever para eles. Os excluıd ́ os sã o o pú blico que pode crescer, sã o o pú blico que a gente pode criar. Que darã o nã o 20 mil, mas 20 milhõ es de acessos por dia! Um dia (eu espero). Entã o, para quem você quer escrever? O que eu acho interessante é que quem escreve para um pú blico mais amplo també m escreve para um pú blico mais especıf́ico. O segredo para isso está em escrever nã o pensando em “o que você pode ensinar para o leitor”, mas sim sobre o que o leitor pode se perguntar com o que você escreveu para ele. Em outras palavras, o importante nã o é a informaçã o que você dá no seu texto, mas a pergunta que o leitor faz quando lê o seu texto. Essa é universal, porque cada um faz a sua, na linguagem que quiser, na linguagem que entende. Quem faz perguntas aprende crité rios. Inclui-se. Vira pú blico. Vira leitor. OS LUGARES DO PENSAMENTO Depois de selecionar sobre o que você vai falar e para quem você vai falar, é claro que é importante determinar “como” você vai falar. Com a escritora Sonia Rodrigues, eu aprendi sobre os lugares do pensamento, as sete perguntas que, quando respondidas, ajudam o leitor (ou o signatá rio de uma mensagem) a compreender a mensagem. O nome moderno para elas é lead ou lide (do inglê s, “conduzir”) e é utilizado desde a dé cada de 50 nos jornais brasileiros para informar, já no primeiro pará grafo, tudo o que é importante sobre a notıćia, 92 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS posicionando o leitor com relaçã o a “o que” aconteceu, com “quem”, “quando”, “onde” , “como” e “por quê ”. Apesar de a “invençã o” do lead ser atribuı́da ao jornalista americano Walter Lippmann na dé cada de 1920 – 1930 (leia o texto “Em busca dos sete lugares de pensamento”, no blog Você Que E Bió logo), ele foi inventado na Gré cia antiga, há 25 sé culos, e reformulado pelos romanos algum tempo depois. A resposta a essas seis perguntas (nã o é erro de contagem, o sé timo lugar do pensamento é “para quê ”, para que servirá esse conhecimento?) era o que permitiria a comunicaçã o eficiente de um discurso. Nã o deixe de ler o capıt́ulo sobre o texto jornalıśtico neste livro e aplique as sete perguntas a todo texto que você escrever. Você pode preparar um rascunho respondendo brevemente (em uma frase) a cada pergunta, ou pode reescrever, procurando identificar no texto que você produziu quais sã o os trechos que respondem a cada pergunta. Se os trechos que respondem a uma pergunta forem muito mais frequentes que à outra, entã o você pode precisar fazer cortes em um ponto e adiçõ es em outro. No final, você verá a melhora no resultado. O lead certamente ajudará você a comunicar melhor a sua mensagem. ESPANTAR A PREGUIÇA A vida é cheia de obrigações que a gente cumpre, por mais vontade que tenha de as infringir deslavadamente. Quando eu estava no mestrado, em uma cidade fria e longı́nqua, fiz uma disciplina excelente de microbiologia marinha. Até hoje, uso o que aprendi nas vá rias aulas de ecologia e biologia marinha que eu eventualmente ministro por aı.́ Mauro F. Rebelo 93 Mas tive um problema com o professor que, até hoje (na minha cabeça), nã o resolvi direito. O problema é que ele me deu B em um curso que eu achava que merecia A (bom, houve outros problemas també m, mas isso fica para outra vez – ou nã o). Como eu disse, eu gostava e entendia do tema. També m lia os artigos e participava das aulas. Mas isso nã o era suficiente para ele. Ele queria superaçã o! E em vez disso, eu optei por ir passar o final de semana em Santa Maria na vé spera da avaliaçã o dele. Fui lendo os artigos para a prova na viagem de ô nibus, mas era noite e eu acabei optando por dormir. Deixei os artigos na poltrona do ô nibus e nã o estudei nada o final de semana todo. Peguei o ô nibus de volta no domingo à noite e cheguei em cima da hora. Fiz uma boa prova, mesmo sem ter estudado (afinal, eu assistia atentamente a todas as aulas), e quando recebi o B no final do curso, fui falar com ele para tentar entender o porquê . A resposta foi frustrante: Mauro, você é muito bom e você sabe que é bom. E por isso você é preguiçoso. E é por isso que eu te dei B. Talvez seja importante acrescentar que outro aluno, que fez uma prova pior que a minha, tirou A. Porque ele se “superou”. Hoje eu reconheço que eu era meio preguiçoso mesmo. Mas també m hoje, que dou meus pró prios cursos e tenho meus pró prios alunos de pó s-graduaçã o, discordo veementemente da estraté gia de avaliaçã o dele. Ele quis me dar uma liçã o, que eu provavelmente precisava, enquanto me avaliava com relaçã o à disciplina que ele ministrou. Mas nem sempre dois coelhos podem ser mortos com uma cajadada só . E que a preguiça é um crité rio difıćil de avaliar de forma acadê mica. Acredito que um professor possa usar o crité rio que lhe convier para avaliar os alunos. A justiça nã o está no crité rio em si, mas no conhecimento dos crité rios a priori. Se eu soubesse que o crité rio era superaçã o, talvez tivesse me comportado de maneira diferente. 94 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS A preguiça nã o é um problema quando você tem crité rio. Quem tem crité rio forte e valores construıd ́ os com uma base educacional forte (dentro e fora da escola) nunca deixa de progredir, mesmo com um pouco de preguiça. Mas o problema da preguiça é que ela pode corroer os seus crité rios, e aı́ você afunda. Hoje, já sei que um aluno muito bom cometendo os mesmos erros dia apó s dia, em geral, nã o é por dificuldade de incorporar o modelo: como eu disse, o aluno é brilhante. Aı́ já sei que o problema é preguiça. E vencido o medo de escrever (do qual tratamos na primeira seçã o), a preguiça é a pior inimiga de um texto criativo. O fıśico Richard Feynman diz que toda boa ideia deve primeiro passar por um exame intelectual criterioso antes de ser colocada à prova experimentalmente. Testar hipó teses é trabalhoso e caro, e justamente por isso nem todas as ideias devem chegar a esse está gio. Nã o importa se é uma ideia para um experimento, para um novo aviã o ou para uma obra de arte – o que inclui um texto. Uma boa ideia, e portanto original e criativa, nã o deve refutar princıp ́ ios bá sicos das coisas. Por exemplo, a segunda lei da termodinâ mica é uma das leis fundamentais do universo. Ela diz que nã o podemos reciclar energia. Energia gasta é energia perdida – isso pode parecer banal, mas tem consequê ncias importantes, como a passagem do tempo, a expansã o do universo, a vida e a morte. E també m diz que as coisas precisam de energia para se manter organizadas, e, se nã o gastarmos energia, as coisas se desorganizam. Os fıśicos do sé culo XIX descobriram as leis da termodinâ mica enquanto estudavam as má quinas a vapor. Mais precisamente, enquanto tentavam criar a “má quina perpé tua”: uma má quina a vapor que funcionasse com o calor da pró pria exaustã o. Descobriram que nã o era possıv́el, e o que Mauro F. Rebelo 95 eles descobriram, desde entã o, nunca conseguiram contestar experimentalmente. Portanto, toda boa ideia para um motor precisa respeitar a segunda lei da termodinâ mica. Se um engenheiro aparece com uma ideia excelente sobre um novo motor a jato, em que a energia de uma turbina em movimento é utilizada como combustıv́el para movimentar uma outra turbina, por melhor que seja, ela é impraticá vel, porque contraria uma lei fundamental. Ou o engenheiro propõ e uma nova abordagem para a lei da transferê ncia de energia ou o projeto vai ficar engavetado (o que provavelmente acontecerá ). Quando uma ideia nova nã o respeita leis fundamentais e preceitos bá sicos, ela nã o é criativa, ela é aná rquica. E a anarquia, como a falta de energia, leva à desordem. Nã o é uma colocaçã o polıt́ica, é fıśica. Uma ideia nova que nã o respeita leis fundamentais e preceitos bá sicos nã o indica genialidade, indica desconhecimento por parte do autor. Quer inventar algo novo, mas nem se deu ao trabalho de pesquisar o que já foi inventado, como, em que circunstâ ncias. Em resumo: nã o fez o dever de casa. Foi preguiçoso. Puxando o argumento para outro lado, Picasso foi muito, muito criativo. Nã o tem a ver com formas, com cores, com padrõ es, emoçõ es ou abstraçã o. Picasso usou formas que ningué m nunca usava e foi criativo. Van Gogh usou cores e pinceladas que ningué m usava e foi muito criativo. Pollock jogava tintas na tela e foi criativo. Andy Warhol usou latas de sopa e foi criativo. Por outro lado, vemos algumas obras de arte que sã o, simplesmente, aná rquicas. Uns panos de estopa aqui, outros ali, espalhados pelas paredes, pelo chã o, alguns espelhos e... nada que faça com que nos lembremos do nome da obra ou do seu autor. Foi um trabalho aná rquico. Ali nã o havia criatividade, só anarquia. Meu ponto é o seguinte: a preguiça leva à anarquia, e nã o à criatividade. Pegue todos os artistas 96 O QUE VOCE PODE APRENDER SOBRE ESCRITA, EM UMA TARDE NO MUSEU, COM MACHADO DE ASSIS que ficaram famosos por criar algo novo, criativo, autê ntico e você verá uma coisa em comum: todos dominavam com maestria as té cnicas bá sicas de suas atividades. Ou você acha que Beethoven compô s a 9ª sinfonia por “sorte”? A lei da entropia, em um dos seus muitos enunciados, diz que “uma energia de baixa qualidade realiza menos trabalho que uma energia de alta qualidade”. Uma ideia, para ser criativa, precisa otimizar o uso da energia. Mas sem utilizar energia, em um motor, uma pintura, um experimento ou um texto, dificilmente você preparará algo inovador. Preguiça e ignorâ ncia nunca resultam em ideias criativas. COMO, POR QUE E ONDE CRIAR UM BLOG? Atila Iamarino UM POUCO DE CONTEUDO PREVIO Blogs, ou weblogs (como o termo foi originalmente concebido), sã o uma ferramenta extremamente ú til para a comunicaçã o na internet, especialmente para o ensino. Construıd ́ os com uma interface de uso simples e intuitivo, e sempre exibindo o conteú do mais recente em uma pá gina central, sã o uma boa maneira de expor material escrito e multimıd ́ ia. Os textos sã o publicados na forma de posts – pá ginas fixas exibidas no blog – e com endereço pró prio, que pode ser referenciado por outras fontes. Geralmente, há um espaço abaixo dos textos para comentá rios de leitores, que, embora nã o seja obrigató rio, é parte importante e caracterıśtica dos blogs. Mas, antes de tudo, alguns requisitos. Um bom entendimento de internet é valioso tanto para a escrita quanto para a interaçã o com outros blogs e redes sociais. Portais bem estabelecidos como o Wikipedia (wikipedia.org), Youtube (youtube.com) servem de inspiraçã o nã o só para textos como para se criar a noçã o de como escrever e interagir na Web. Entender a maneira de inserir mıd ́ ias, como imagens e vıd ́ eos, é tã o importante quanto a escrita. Blogs sã o mais ricos que outras formas de divulgaçã o, como jornais e revistas, por permitirem a inserçã o e a indicaçã o de conteú do externo, como links, vıd ́ eos, imagens, slides, sons e outros, que completam o texto e abrem diversas possibilidades. 98 COMO, POR QUE E ONDE CRIAR UM BLOG? Usar conteú do externo é recomendá vel, mas é algo que precisa ser feito com cuidado. O uso de imagens e vıd ́ eos sem licença de reproduçã o é proibido e pode trazer grande prejuı-́ zo para o autor, mesmo que nã o seja intencional ou nã o tenha finalidade de lucro. Para se evitar esse tipo de problema, é recomendá vel utilizar imagens que sejam licenciadas para uso, como aquelas disponibilizadas sob certas formas de Creative Commons (CC, creativecommons.org), que permitem reproduçã o. Fontes como Flickr (www.flickr.com, buscando-se por imagens com CC) e Wikipedia disponibilizam imagens que podem ser reproduzidas e sã o preferıv́eis para ilustrar um texto. Redes sociais como o Twitter (twitter.com) e Facebook (facebook.com) ajudam a divulgar o blog e a interagir com leitores e outros autores. Atualmente, as visitas que antes eram trazidas apenas por ferramentas de busca agora sã o trazidas pela indicaçã o de amigos e contatos. O compartilhamento de links nessas redes permite que novos leitores tenham contato com material que nã o buscariam espontaneamente, e embora seja um ponto de fuga de comentá rios que antes eram feitos apenas no post, pode trazer discussõ es produtivas. COMO ESCREVER? O tema també m é importante. Blogs de variedades sã o comuns, mas, salvo poucos casos grandes e bastante atualizados, nã o se diferenciam do monstruoso volume de informaçõ es que a internet oferece. Conteú do especializado, ou pelo menos reunido em torno de um tema ou linha editorial, ajuda o blog a criar uma identidade que o leitor pode reconhecer. Dado o grande nú mero de blogs, um tema central també m pode ajudar a interaçã o com outros sites e a criaçã o de uma comunidade que se referencia e interage. Atila Iamarino 99 Um tema que o autor domine e goste aumenta as chances de o blog ser mantido com frequê ncia e por mais tempo. Escrever sobre o que se entende serve nã o só para evitar enganos, mas para acrescentar algo novo e tornar os textos diferentes de outros sobre o mesmo tema. Traduzir ou copiar notıćias, alé m de gerar conteú do duplicado e penalizado por buscadores, ainda deixa o blog com textos que poderiam ser lidos em outro lugar. Ainda mais quando ferramentas sociais permitem o compartilhamento desse tipo de conteú do sem a necessidade de visitar outros sites. A linguagem depende do objetivo. Uma linguagem acessıv́el e imagens ilustrativas sempre ajudam a cativar o leitor, e textos longos tendem a nã o ser lidos até o final. Posts curtos com imagens e algumas frases, ou longos, repletos de comentá rios e fontes, ao final, sã o igualmente relevantes quando usados para uma determinada finalidade. Tudo depende do pú blico e do tema que o autor deseja. O uso de ferramentas de escrita com corretor ortográ fico é essencial. Gramá tica grosseira e errada é uma das formas mais rá pidas de causar má impressã o no leitor. Revisar o texto antes de ele ser publicado també m garante que pequenos erros, que nã o sã o detectados pelo corretor ortográ fico, e o uso viciado de expressõ es sejam revistos e eliminados. Independente da linguagem adotada, o autor do blog precisa se lembrar que a forma de muitos leitores encontrarem seu site sã o as ferramentas de busca. O uso de tıt́ulos claros, palavras-chave e etiquetas (tags) relacionadas ao texto ajuda a torná -lo mais acessıv́el e aumenta as chances de visitantes seguirem o link. Té cnicas para melhorar buscas (SEO, search engine optimization) nã o precisam ser entendidas por completo nem seguidas à risca, mas noçõ es sã o bem-vindas e podem ajudar o site a crescer em visitas. O uso de multimıd ́ ia pesada, como grandes imagens, animaçõ es e vıd ́ eos, deve levar em consideraçã o a conexã o do 100 COMO, POR QUE E ONDE CRIAR UM BLOG? leitor. Sites com muitos recursos podem demorar muito tempo para serem carregados em computadores com conexã o mais lenta, ainda mais quando cada vez mais a internet é acessada em celulares e aparelhos portá teis que dependem de conexã o limitada em velocidade e trá fego de informaçã o. Tã o importante quanto o conteú do é a frequê ncia de atualizaçã o. Escrever um blog pode ser um há bito diá rio ou mensal, dependendo da disponibilidade e disposiçã o do autor. Mas atualizaçõ es apenas esporá dicas dificilmente conquistam leitores fié is, que retornam em busca de mais conteú do. Assim, ao se planejar o tipo de conteú do e a forma como ele será tratado, també m é necessá rio pensar no quã o sustentá vel essa abordagem será ao longo do tempo. O tempo dedicado é uma questã o delicada, que depende muito do objetivo ao criá -lo. Um blog escrito por lazer demanda muito menos compromisso do que um com o objetivo comercial, como fonte de renda. Da mesma forma, o tempo investido na criaçã o dos textos é algo muito variá vel. Discussõ es longas, com diversas fontes podem facilmente tomar mais de oito a dez horas de pesquisa e extensas leituras antes de serem escritos, enquanto posts com relatos ou opiniõ es podem ser escritos em poucos minutos. POR QUE ESCREVER? Blogs representam um ó timo canal de comunicaçã o por aproximarem o leitor e permitirem uma grande interaçã o. Os comentá rios sã o uma importante forma de troca e discussã o. Permiti-los e responder a eles ajuda o leitor a se sentir uma parte importante do que está sendo dito e permite um contato que nã o é possıv́el em outras formas de mıd ́ ia. Crıt́icas, sugestõ es e opiniõ es transmitidas em comentá rios sã o parte do que torna os blogs ú nicos. Atila Iamarino 101 Por outro lado, comentá rios també m podem trazer graves consequê ncias, especialmente se nã o forem monitorados. Agressõ es e acusaçõ es a terceiros, por mais que nã o tenham sido escritas pelo autor do blog, podem ser consideradas de responsabilidade dele. E o autor pode ter de responder juridicamente a isso. Em tempos em que a internet está passando por uma sé rie de reavaliaçõ es sobre segurança e liberdade de opiniã o, é importante monitorar e evitar comentá rios que, alé m de nã o acrescentarem ao que foi escrito, ainda podem trazer problemas legais. A discussã o, a abordagem de temas relevantes e a conversa com outros autores é o que torna a comunidade de blogs um meio dinâ mico e envolvente. No caso do ensino, os blogs podem, inclusive, ser uma ferramenta para estimular os alunos a escrever e expor o que aprenderam sobre determinado conteú do. Ter um trabalho escolar publicado em um blog, exposto a comentá rios e divulgaçã o ajuda a valorizar o papel do professor e motivar o aluno a investir mais tempo e dedicaçã o no que está produzindo, em contraste com um trabalho que será apenas corrigido pelo professor e devolvido ao aluno. A conquista dos leitores é algo que depende de vá rios fatores. Objetivo do blog, tema tratado e tempo sã o determinantes. Blogs educativos com conteú do escolar costumam ser muito acessados por alunos que querem tirar dú vidas ou que estejam preparando um trabalho escolar. Sustentabilidade, saú de e mudanças ambientais sã o temas que estã o sempre em voga. Poré m, se sã o bastante procurados por leitores, també m sã o bastante tratados, e um autor que escreva sobre eles tende a encontrar diversos concorrentes já estabelecidos. Opiniã o é algo que se pode oferecer de mais original em blogs. Promover discussõ es sobre temas relevantes, apresentar um ponto de vista iné dito ou inusitado pode ser uma boa fonte de visitas e de leitores fié is. Polê micas també m costumam ser bastante atraentes, mas podem facilmente polarizar 102 COMO, POR QUE E ONDE CRIAR UM BLOG? leitores e estigmatizar o autor, restringindo seu alcance. Novamente, tudo depende do objetivo. Promover o conteú do em agregadores de links, como o Ueba (www.ueba.com.br), pode ser outra fonte de acessos. O sistema dos agregadores é bem simples, basta submeter o link e uma boa descriçã o, e se o link for escolhido vai para a primeira pá gina do site, que manda as visitas. O fundamental é saber escolher o tipo de post que vai ser atraente, bem como uma boa frase ou descriçã o para chamar atençã o. E sempre bom ver quais sã o os posts mais recomendados para se ter uma noçã o do que os visitantes mais gostam. As melhores visitas vê m da interaçã o social. Ler outros blogs, comentar neles e recomendá -los é uma boa forma de conhecer vizinhos e receber divulgaçã o. Leitores indicados já sabem o que vã o encontrar, estã o familiarizados com o formato e sã o mais propensos a ler o conteú do. Visitas vindas de agregadores e sites de busca tendem a ser mais efê meras e os internautas costumam ficar menos tempo, enquanto indicaçõ es de blogs similares podem trazer leitores fié is e criar um senso de comunidade. Pequenos detalhes, como otimizar os tıt́ulos para que sejam entendidos por quem nã o vai parar para ler todo o texto, podem ter grande impacto. Da mesma forma, referenciar textos antigos em meio a algo novo pode servir para atentar o leitor a algo que já foi tratado, ou a conteú do que ele nã o buscaria de outra forma. ONDE ESCREVER? Criar um blog nã o precisa ser algo caro ou trabalhoso. Há diversos serviços de criaçã o e hospedagem grá tis e dois merecem atençã o especial: o Blogger (blogspot.com) e o WordPress (wordpress.com). O Blogger, tradicionalmente, é a Atila Iamarino 103 ferramenta de criaçã o e hospedagem de blogs mais fá cil de usar. Sua interface é bastante simples e permite que o autor rapidamente se familiarize. Por outro lado, é mais limitado em recursos e na possibilidade de modificaçã o visual. Já o WordPress é uma ferramenta mais completa e rica em possibilidades, que demanda um pouco mais de tempo para ser usada por pessoas inexperientes. Ele torna mais fá cil a migraçã o para uma hospedagem pró pria, paga, depois. Como o WordPress disponibiliza sua plataforma (WP, wordpress.org) para sites hospedados por conta pró pria, há uma variedade de plugins, complementos e ferramentas capazes de interagir com o WordPress muito maior do que com qualquer outra plataforma, o que permite aumentar as possibilidades de como fazer o blog. Há todo tipo de site feito com a plataforma WP alé m de blogs, de portais institucionais a lojas virtuais, justamente por sua flexibilidade e grande suporte da comunidade. A hospedagem pró pria traz algumas vantagens que podem compensar o preço e o trabalho. O domın ́ io pró prio, com escolhas entre endereços .org, .com, .com.br, .net e outros, aumenta as chances de se achar um bom endereço para o blog. Novamente, tudo depende do objetivo que se quer atingir com o blog. Se ele for um hobby ou passatempo, um domın ́ io pró prio acaba sendo gasto desnecessá rio. Por outro lado, caso haja uma finalidade comercial, um domın ́ io pró prio pode ser imprescindıv́el. Para sites pequenos, com menos de mil visitas ú nicas diá rias, há vá rios planos baratos de hospedagem, como Dreamhost (dreamhost.com) e o Godaddy (godaddy.com), por menos de R$ 20,00 mensais. Grandes provedores sempre oferecem instalaçã o automá tica do sistema WP sem precisar de acesso direto ao servidor, uma grande facilidade para quem nã o tem familiaridade. 104 COMO, POR QUE E ONDE CRIAR UM BLOG? Há ferramentas que ajudam na escrita també m. Programas como o Windows ou o Scribefire (scribefire.com) – esta é uma ferramenta de navegador e pode ser usada em qualquer sistema operacional – facilitam muito a escrita e podem dispensar completamente o uso direto do site da plataforma que hospeda o blog. També m podem ser ú teis para os que possuem pouca familiaridade com có digo HTML e ediçã o de imagens, links e afins. Ferramentas que monitoram as visitaçõ es, como o Statcounter (statcounter.com), o Sitemeter (sitemeter.com) e o Google Analytics (www.google.com/analytics) ajudam a monitorar que tipo de conteú do é mais acessado, mais lido e mais buscado. També m podem revelar as maiores fontes de visitas, buscadores, redes sociais, visitas diretas ou outros blogs, dando uma noçã o de que meios podem ser mais explorados. Para os mais aficionados em dados e estatıśticas, o Google Analytics é a ferramenta mais completa e com mais detalhes, que permite entender desde quais palavras-chave trazem mais visitas para quais locais, a quais regiõ es do paıś mandam mais visitas ou qual porçã o dos visitantes é nova ou está retornando. TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇÃO PARA O QUE VOCÊ DIZ? Mauro F. Rebelo Eu tenho uma amiga antropó loga com quem sempre travei grandes discussõ es sobre ciê ncia. Na é poca das nossas maiores discussõ es, eu era estudante de doutorado em Biofıśica na UFRJ e ela, estudante de mestrado em Medicina Social na UERJ. Ela tinha começado biologia na Unicamp, mas logo mudou para a sociologia, especializando-se em antropologia. Faz muito tempo que nã o a vejo. Ela é inteligentıśsima e sempre tinha lido um livro novo, assistido a um filme interessante, e eu aprendia muito, muito com ela. Ela també m era linda, o que ajudava, apesar de nã o ser suficiente, para que passá ssemos horas e horas conversando sobre tantas coisas, tantos assuntos diferentes. Mas eu, que també m gostava de ler livros e ver filmes interessantes, també m tinha coisas para dizer para ela e me surpreendia quando ela se indignava com a minha sugestã o de que determinados comportamentos da espé cie humana sã o claramente herdados dos nossos antepassados animais. Eu tinha mais que uma queda por ela, mas nã o deu certo, mais de uma vez. Hoje, ela está casada e tem uma filha linda. Eu nã o sei se ela trabalha na á rea de formaçã o dela, ou se está ciente dos novos avanços da neurociê ncia, que tê m tentado unir o comportamento animal e a cultura dos humanos. Aposto que você está pensando que foi enganado. Você viu esse tıt́ulo curioso, esse resumo instigante e... depara, no primeiro pará grafo, com uma passagem autobiográ fica, quase 106 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? ın ́ tima, sem nenhuma relevâ ncia para o assunto que prometia ser tratado no artigo. Será ? A psicologia evolucionista tem mostrado que nada desperta mais a nossa atençã o do que histó rias sobre a vida alheia. E, de acordo com a teoria, porque eu contei um pouco da minha vida eu tive mais a sua atençã o para os aspectos da discussã o entre “instinto e aprendizado” (nature x nurture) do que se eu começasse o artigo com uma sın ́ tese das discussõ es entre Margaret Mead e Derek Freeman. Se você é professor, tenho certeza que se debateu diversas vezes em sala de aula com a dificuldade de manter a atençã o dos seus alunos. Se você nã o é , pode nunca ter notado, mas nenhuma conversaçã o entre pessoas que se conheçam bem – sejam elas colegas de trabalho, parentes ou velhos amigos – se deté m por mais tempo que o necessá rio em tó picos que estejam relacionados ao comportamento, à s ambiçõ es, aos motivos, à s falhas de cará ter ou aos casos amorosos dos membros do grupo. Tanto os presentes quanto (ou principalmente) os ausentes. Em outras palavras, nada desperta mais a atençã o do que a vida alheia. E por isso que a fofoca é um há bito universal e as telenovelas sã o a principal forma de entretenimento em todo o mundo. Este artigo vai mostrar como a evoluçã o pode ter desenhado o cé rebro humano para prestar mais atençã o à fofoca e por que você deve usar isso para ensinar seus alunos. Tanto os alunos presenciais quanto, e principalmente, os alunos à distâ ncia. COMPORTAMENTO GENETICO O grande bió logo Bertrand Jordan (2005, p. 94) diz que: Afirmar que nosso comportamento social é determinado por essa herança bioló gica (genes do comporta- Mauro F. Rebelo 107 mento) é absurdo: estamos evidentemente muito longe do estado de natureza. Sustentar que a cultura, a fé religiosa ou a virtude dialé tica apagaram todo vestıǵio desse passado ainda pró ximo é , no mın ́ imo, tã o absurdo quanto! “Nossos impulsos reprimidos sã o tã o humanos quanto as forças que os reprimem.” (SYMONS, 1987, p. 266). Se você nã o acredita que a evoluçã o seja capaz de desenvolver instintos e comportamentos que sã o herdá veis de pais para filhos, nunca teve um(a) namorado(a). Ao longo do tempo evolutivo, homens e mulheres estiveram submetidos a diferentes pressõ es seletivas, por conta, principalmente, de uma caracterıśtica marcante nos mamıf́eros, que é a divisã o sexual do trabalho. Essa divisã o sempre foi mais marcada nos humanos, em que os machos caçavam e lutavam disputando ascensã o na hierarquia social, enquanto as fê meas catavam frutos, sementes e raıźes, alé m de cuidar dos filhotes. Pode ser clichê , mas nem por isso é menos fatual. A neurociê ncia comprovou muitas diferenças nos cé rebros de homens e mulheres. A visã o de profundidade é mais acentuada nos homens, enquanto o campo visual é maior nas mulheres. As habilidades espaciais e matemá ticas dos homens comparadas à s habilidades comunicativas e linguıśticas das mulheres. E isso influencia o comportamento. Nã o é porque foram condicionadas que as meninas preferem bonecas e os meninos preferem carrinhos, as meninas, a cor-de-rosa e os meninos, o azul. Desde os primeiros dias de vida, as meninas estã o mais interessadas em sorrir, em comunicar e em pessoas, em contrapartida, os meninos, em açã o e em coisas. E nó s é que inventamos brinquedos que se adaptam à s preferê ncias preestabelecidas de cada sexo (bonecas e bolas de futebol). A indú stria de brinquedos, que está preocupada com os lucros de vendas e nã o com as teorias antropoló gicas, sabe muito bem disso. Mas os professores... insistem em tratar, na escola, meninos e meninas como iguais. 108 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? Na escola, os meninos sã o inquietos, desatentos, com uma aprendizagem lenta e difıćil se comparada à s meninas. Dezenove em cada vinte crianças hiperativas sã o meninos. Quatro vezes mais meninos do que meninas sã o dislé xicos e tê m deficiê ncia de aprendizagem. A educaçã o é quase uma conspiraçã o contra as aptidõ es e inclinaçõ es de um menino. (MCGUINESS E PRIBRAM, 1979 apud RIDLEY, 1993, p. 257). Eu, como menino, bato palmas para ela. Para corroborar o relato, lembro-me da personagem Sofia, do filme francê s homô nimo, uma criança em situaçã o de risco cuja ú nica disciplina que conseguia se interessar na escola era histó ria porque “falava de pessoas”. Os conflitos que deixavam a minha amiga antropó loga angustiada, e que estã o tã o bem refletidos na citaçã o de Bertran Jordan, acontecem porque nossa cultura e tecnologia evoluıŕam mais rá pido do que o nosso cé rebro. Na verdade, do que nossos instintos. Somos uma mente do Holoceno em um cé rebro do Pleistoceno. Na escala de tempo geoló gico, o Holoceno é a é poca (do perıo ́ do Quaterná rio da era Cenozoica) que se iniciou há cerca de 11,5 mil anos e se estende até o presente. O Pleistoceno é a é poca anterior, que vai de um milhã o a cerca de 11,5 mil anos atrá s. Durante o perıo ́ do Pleistoceno, na Africa, para serem bons caçadores, os homens desenvolveram habilidades espaciais, como jogar armas em alvos em movimento, fazer ferramentas, encontrar o caminho de volta para casa. Já as mulheres, para encontrar raıźes, cogumelos, bagas e plantas, precisavam ter uma percepçã o maior e mais detalhada do seu entorno. Enquanto os homens procuravam coisas mó veis, distantes e imprevisıv́eis (geralmente carne), as mulheres, enquanto cuidavam das crianças, buscavam coisas está ticas, pró ximas e previsıv́eis (normalmente plantas). Apesar da cultura e tecnologia, de lá para cá , pouca coisa, ou nada, mudou. Mauro F. Rebelo 109 Se colocarmos homens e mulheres sentados em uma sala de espera por trê s minutos e depois pedirmos para descreverem o ambiente, as mulheres se saem de 60 a 70% melhor do que os homens. Em todas as medidas de memó ria: de objetos e locais (SILVERMAN E EALS, 1992). Sã o habilidades sociais adquiridas no Pleistoceno e, acreditem em mim, sã o difıćeis de perder. Mas existem outras. As mulheres sempre dependeram mais das suas habilidades sociais para resolver disputas do que os homens, os quais podiam sempre apelar para a violê ncia. Elas dependiam dessas habilidades para fazer aliados dentro da tribo, convencer homens a ajudá -las e julgar o cará ter de potenciais companheiros. Na verdade, a necessidade de julgar o cará ter era tã o grande que seus cé rebros se tornaram especializados nisso. A ló gica dos cé rebros diferentes para homens e mulheres é impecá vel, e o corpo de evidê ncias cientıf́icas, enorme. Mas a diferença em si nã o é o que eu quero colocar. Se existe uma diferença de preferê ncias e de comportamento entre homens e mulheres que é inata – gené tica, se preferirem –, as quais sã o difıćeis de contestar (especialmente à luz da ausê ncia de evidê ncia em contrá rio), entã o podemos concluir, para fins de continuarmos neste artigo, que comportamentos podem ser determinados geneticamente. E herdados, nã o só de pai para filho, mas difundidos por toda uma espé cie. A verdade é que a cultura raramente combate os instintos, pelo contrá rio, ela os reforça. Se um comportamento é selecionado geneticamente, entã o nó s nã o temos opçã o: seremos influenciados por ele e teremos preferê ncia por aquilo que evolutivamente foi bom para nó s. 110 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? A EVOLUÇAO DO CEREBRO: O QUE E E O QUE NAO E PARA APRENDER? O que fez o nosso cé rebro crescer a partir do Pleistoceno? As primeiras ferramentas de pedra, do tipo Oldowan (ou Olduvai), foram produzidas pelo Homo habilis, há cerca de 2,5 milhõ es de anos na Etió pia, e eram de pedras lascadas. Elas eram tã o fá ceis de fazer que até mesmo macacos podiam fazê -las. E faziam. Nos anos de 1960, foi descoberta a capacidade de animais, especialmente os chimpanzé s, fazerem e usarem ferramentas. E o Homo sapiens perdeu o seu lugar de destaque como o ú nico construtor de utensıĺios. Se você tem, como eu, mais de 40 anos, já deve ter assistido a algum episó dio de “O mundo animal”. Eram os predecessores dos programas do Discovery Channel e do National Geographic. Nesses filmes, podı́amos ver leõ es caçando zebras no Parque Nacional de Serengeti, na Tanzâ nia, e o que vıámos eram animais há beis em perseguir, espreitar, emboscar, cooperar e enganar as suas presas, cuidadosamente, como qualquer grupo de seres humanos jamais poderia. E isso tudo sem precisar també m de grandes cé rebros. A cultura també m nã o é exclusiva dos humanos. Qualquer onıv́oro da planı́cie africana precisava aprender sobre plantas e raıźes. Os babuın ́ os sabiam onde forragear, e em que momento, e se poderiam comer lacraias e cobras. Chimpanzé s sã o capazes de procurar a planta em especial cujas folhas podem curá -los de infecçõ es por vermes. E passam de geraçã o a geraçã o tradiçõ es sobre como quebrar nozes. O que essas coisas tê m em comum? Elas podem ser aprendidas por mera repetiçã o. Sem a necessidade de uma comunicaçã o complexa. A natureza nã o era uma adversá ria muito difıćil para uma mente inteligente. Os desafios apresentados por ferra- Mauro F. Rebelo 111 mentas de pedra ou tubé rculos sã o previsıv́eis. Geraçã o apó s geraçã o, lascar um instrumento fora de um bloco de pedra ou saber onde procurar tubé rculos requeria o mesmo nıv́el de habilidade. E com a experiê ncia, ficavam mais fá ceis. E um pouco como aprender a andar de bicicleta: depois que você aprende, é fá cil, se torna natural e até “inconsciente”. E nenhuma dessas habilidades pode ser atribuı́da apenas a seres humanos. Entã o, qual teria sido a força motriz para o aumento do cé rebro? As coisas de que nó s somos conscientes sã o, na maior parte, eventos mentais que concernem açõ es sociais. Nó s nã o tomamos consciê ncia de como nó s vemos, andamos, batemos numa bola de tê nis, ou escrevemos uma palavra. Como uma hierarquia militar, a consciê ncia opera numa polıt́ica de “saiba apenas o que você precisa saber”. E eu nã o consigo pensar em nenhuma exceçã o à regra de que nó s tomamos consciê ncia daquilo que é possıv́el relatar aos outros e somos inconscientes daquilo que nã o é (BARLOW, 1990 apud RIDLEY, 1993, p. 330). A questã o é simples: se algo é muito previsıv́el, entã o pode se tornar inconsciente. E se é inconsciente, é melhor termos um instinto, uma á rea no cé rebro já preparada para responder automaticamente do que termos de processar essa mesma informaçã o toda vez que ela for necessá ria. E assim é . Um menino de cidade grande aprende mais rá pido a ter medo de cobras do que de carros, apesar de os carros representarem, para ele, um perigo muito maior do que as cobras. Isso porque seus cé rebros estã o predispostos ao medo de cobras, que tivemos de temer por mais de milhõ es de anos. Para Cosmides e Tooby (1992), nosso cé rebro é composto de mó dulos que funcionam como os ó rgã os do nosso corpo: cada um é responsá vel por uma tarefa relacionada ao 112 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? mundo natural. Existem á reas especializadas, na nossa mente, para reconhecer rostos, ler emoçõ es, ser generoso com os filhos, ser atraıd ́ o por alguns membros do sexo oposto, inferir o humor das pessoas, deduzir significado semâ ntico, adquirir a gramá tica, interpretar situaçõ es sociais, perceber como deve ser uma ferramenta para que sirva a um determinado trabalho, calcular os encargos sociais de nossas açõ es, e assim por diante. Assim como os gatos, assumimos que qualquer objeto que se mova sozinho é um animal. E ainda que vivamos em um mundo infestado de má quinas que tenham essa habilidade, essa é uma coisa que desaprendemos apenas parcialmente e com dificuldade. Esses sã o apenas alguns exemplos de que muitos dos instintos em nossas cabeças continuam acreditando que ainda estamos no Pleistoceno, em um mundo sem carros. Assim como o medo de cobras, esses instintos sã o provavelmente tã o bem desenvolvidos nos macacos como nas pessoas. Se a aprendizagem realmente substitui os instintos em vez de melhorá -los, entã o passarıámos metade da nossa vida reaprendendo as coisas que os macacos já nascem sabendo. E verdade, nó s aprendemos muito mais do que os macacos. Aprendemos matemá tica e vocabulá rio de dezenas de milhares de palavras. Mas isso é porque nó s temos instintos a mais (para aprender essas coisas), e nã o porque temos instintos a menos que macacos, morcegos, camundongos... Para Matt Ridley (1993), desde Descartes, o estudo da mente tem sido dominado por uma praga dicotô mica de aprendizagem vs. instinto, natureza vs. criaçã o, genes vs. ambiente, inato vs. adquirido, natureza humana vs. cultura humana. Mas o cé rebro é uma má quina complexa e a ideia que tenha instintos para aprender coisas de uma só vez acaba com a ideia de que, por ser flexıv́el, o comportamento seja sempre cultural. Mauro F. Rebelo 113 Nosso cé rebro cresceu para poder armazenar mais instintos que nos ajudariam a lidar com uma situaçã o muito mais complicada do que o ambiente: as outras pessoas. POR QUE NOS SOMOS INTELIGENTES? Nosso cé rebro é bastante econô mico e funciona com menos de 22W de potê ncia. Muito menos que o seu chuveiro elé trico. Mas, ainda assim, ele consome 18% da energia que gastamos em um dia. A sé rie de coincidê ncias evolutivas que levou o homem, e nenhum outro primata, a desenvolver a inteligê ncia está relacionada à neotenia: a capacidade de os adultos de uma espé cie se parecerem com os jovens. A neotenia era interessante por diversas razõ es, que nã o cabem discutir aqui, mas sobre as quais você pode se informar em Ridley (1993), e, associada à maturidade sexual tardia, resultou em humanos adultos com um cé rebro excepcionalmente grande para um primata. Os filó sofos sempre assumiram que a inteligê ncia e a consciê ncia eram coisas boas, mas nunca sequer pensaram em formular a pergunta mais ó bvia de todas: por quê ? Foi Richard Alexander (1974) que propô s que o elemento-chave no meio ambiente humano que recompensava a inteligê ncia era a presença de outros seres humanos. Os humanos competiam com eles mesmos, mais que com qualquer outra espé cie ou condiçã o ambiental. Geraçã o apó s geraçã o, se a sua linhagem está ficando mais inteligente, a linhagem do seu vizinho també m está . Os humanos tornaram-se ecologicamente dominantes em virtude das suas habilidades té cnicas, e isso fez do homem (alé m de parasitas) o ú nico inimigo do 114 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? homem. Só os seres humanos poderiam fornecer o desafio necessá rio para explicar sua pró pria evoluçã o (ALEXANDER, 1974, apud RIDLEY, 1993, p. 330). Como Pinker e Bloom (1992 apud RIDLEY, 1993, p. 332) colocaram, a interaçã o com um organismo de aproximadamente iguais capacidades mentais, cujos motivos sã o, por vezes, claramente malé volos, se torna uma pressã o seletiva e crescente sobre a cogniçã o. E como diz o ditado anô nimo: “A gazela nã o precisa correr mais que as leoas. Precisa correr mais que as outras gazelas”. Ridley (1993, p. 331) afirma que os humanos usam o seu intelecto principalmente em situaçõ es sociais: O jogo da trama social, da conspiraçã o e contraconspiraçã o, assim como um jogo de xadrez, nã o pode ser jogado apenas com base no conhecimento acumulado. Assim, uma pessoa deve calcular as consequê ncias de seu comportamento e especular sobre as alternativas de resposta dos outros. Para isso, ela precisa, primeiro, de, pelo menos, uma ideia de seus pró prios motivos para poder supor e adivinhar o que está se passando na cabeça das outras pessoas, em situaçõ es semelhantes. E prová vel que essa necessidade de autoconhecimento tenha levado ao aumento da percepçã o consciente. Fique atento ao que acontece com os outros e como eles respondem, porque pode acontecer com você també m, ou pode ser ú til algum dia. Se Cosmides e Tooby (1992), que eu mencionei há pouco, estã o corretos sobre nó s possuirmos mó dulos mentais para cada tarefa, para cada instinto, entã o um dos mó dulos que foram selecionados para aumentar de tamanho com o aumento do cé rebro foi o mó dulo da “teoria da mente”. Aquele que nos Mauro F. Rebelo 115 permite formar uma opiniã o sobre o pensamento dos outros. Juntamente com outro mó dulo que nos permitiria expressar esses pensamentos. Entã o a resposta para a minha pergunta do inıćio da seçã o é que o nosso cé rebro do Pleistoceno evoluiu para responder a duas perguntas: o que eu faria se estivesse no lugar dele e o que será que ele vai fazer agora? O MODULO DA LINGUAGEM A atençã o dirige a cogniçã o para a consciê ncia, onde ela se torna sujeita à formulaçã o verbal e à concepçã o do relato ao outro (CROOK, 1991 apud RIDLEY, 1993, p. 332). A linguagem é a mais recente das nossas habilidades mentais. E també m, ou talvez por isso, a mais humana, aquela que mais nos diferencia dos outros primatas. A linguagem parece entrar no cé rebro como uma invasã o bá rbara, tomando o lugar de outras habilidades, lugares que simplesmente estavam vagos ou ociosos. Veja o texto “Quando o homem começou a falar?”, no blog “Você Que E Bió logo...”, em http://scienceblogs.com.br/vqeb/ 2007/05/quando-ohomem-comecou-a-falar.php. Crianças conseguem inferir regras gramaticais mesmo sem nenhuma instruçã o, uma tarefa que o mais moderno dos computadores é incapaz de realizar (sem nenhum conhecimento pré vio). As crianças també m aprendem a falar independentemente do estım ́ ulo que elas recebem para isso. E desde um ano e meio até os 11 anos de idade, elas tê m grande curiosidade para lın ́ guas e as aprendem com muito mais facilidade que os adultos. Geralmente, nã o precisam ter a gramá tica das lın ́ guas que falam e ouvem ensinada, simplesmente a adivinham. Elas constantemente generalizam regras, extrapolando 116 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? e desafiando os exemplos que ouvem (coisas como “a gente damos”). Crianças aprendem a falar do mesmo jeito que aprendem a ver: adicionando plasticidade a um cé rebro que insiste em aplicar regras predeterminadas. O famoso linguista Noam Chomsky e outros pesquisadores vê m demonstrando que a linguagem, longe de ser um subproduto de um cé rebro grande, é um dos recursos mais bem concebidos dele. E um mecanismo com um padrã o muito especıf́ico que se desenvolve nas crianças mesmo sem que elas recebam nenhuma instruçã o. Para Pinker e Bloom (1992 apud RIDLEY, 1993, p. 328), a linguagem é um projeto instituı́do em circuitos neurais como uma resposta à evoluçã o. Algumas estruturas sintá ticas da linguagem sã o como circuitos de um chip de computador. Um exemplo sã o as oraçõ es subordinadas, sem as quais é impossıv́el até mesmo escrever/contar a histó ria mais simples. Faz uma grande diferença se uma regiã o distante pode ser alcançada tomando o caminho que está na frente da á rvore grande ou o caminho em que a grande á rvore está na frente. Faz uma grande diferença se essa regiã o tem animais que você pode comer ou animais que podem comer você . Outra evidê ncia é que a maior parte dos linguistas atuais concorda com Chomsky (1995), o qual diz existir uma “estrutura profunda” que é universal para todas as lın ́ guas e que é programada no cé rebro e nã o aprendida. Todas as gramá ticas usam, por exemplo, a ordem das palavras ou a inflexã o para determinar se um substantivo é um objeto ou um sujeito. A razã o é que, como todos nó s temos o coraçã o para bombear sangue e os pulmõ es para respirar, todos temos o mesmo “ó rgã o da linguagem” no cé rebro. E por isso podemos até dizer que está nos nossos genes. Mas, ainda assim, ela pode sofrer toda a plasticidade da apren- Mauro F. Rebelo 117 dizagem de vocabulá rio. E incrıv́el. A habilidade para aprender uma linguagem, assim como grande parte das funçõ es do nosso cé rebro, é um instinto para aprender. A linguagem é gené tica, no sentido que existem instruçõ es para a montagem de um aparelho de aquisiçã o de linguagem durante a construçã o do corpo humano, mas també m é cultural, no sentido que o vocabulá rio e a sintaxe de uma lın ́ gua sã o arbitrariamente aprendidos. E, por fim, sã o desenvolvidos, já que essa capacidade cresce com o tempo depois do nascimento e se “alimenta” dos exemplos à sua volta. Talvez o que nos diferencie mais dos animais é que nó s combinamos instintos e aprendizagem. Todos os nossos instintos sã o inevitá veis, nenhum é insuperá vel. Somos uma mistura de ambos. Uma mistura intrın ́ seca e flexıv́el de ambos. Somos o produto de genes que se desenvolvem e sã o calibrados pela experiê ncia. E a principal delas é falar da vida dos outros. Está na revista “Caras”: 2 bilhõ es de noveleiros. Se o nosso cé rebro do Pleistoceno evoluiu para responder a duas perguntas – o que eu faria se estivesse no lugar dele e o que será que ele vai fazer agora? –, entã o, nada melhor do que a fofoca para nos ensinar sobre a vida alheia. E se você procurar, vai encontrar muita evidê ncia disso. A fofoca é um há bito humano universal. Independentemente de paıś, raça, cultura ou religiã o. A revista Caras, um ıćone da fofoca que trata da vida privada e profissional de celebridades, é vendida em cinco paıśes e em trê s continentes diferentes. Em 1991, quando foi criada na Argentina, se tornou a nú mero um em vendas em apenas um trimestre, alcançando as mesmas marcas um ano depois no Brasil e quatro anos depois em Portugal. Mas o maior exemplo da afinidade dos seres humanos pela fofoca sã o as novelas. Elas sã o a maior forma de entretenimento em todo o mundo, para todas as culturas. 118 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? De acordo com a diretoria comercial da Rede Globo, a maior produtora de novela do Brasil, “a novela faz parte do cotidiano de 29 milhõ es de pessoas. Poucos programas no mundo conseguem concentrar tantos espectadores”. De acordo com a mesma fonte, o Brasil tem 50,5 milhõ es de lares com TV. Do total de pessoas que utilizam a TV como meio para entretenimento, distraçã o, informaçã o ou simplesmente como companhia, 70% assistem à novela. Mas nã o é só no Brasil. De acordo com Mauro de Alencar, doutor em Teledramaturgia e autor do livro “A Hollywood Brasileira”, os folhetins movimentam atualmente US$ 70 bilhõ es por ano e alcançam uma plateia de 2 bilhõ es de pessoas pelo planeta. No Brasil, a novela de maior sucesso de todos os tempos foi “Roque Santeiro” (1985 – Globo) com a mais alta audiê ncia na histó ria da TV, com 67 pontos de Ibope. No Mé xico – o maior produtor de novelas do mundo –, em 1º lugar está “El Privilé gio de Amar” (1999 – Televisa), com 34,8 pontos. A telenovela “Da Cor do Pecado” (2004 – Globo) é a campeã de pú blico, tendo sido assistida em mais de cem paıśes. E o que falar do fenô meno “Big Brother” (O grande irmã o)? O programa foi criado em 1999 pela produtora holandesa Endemol, com nome inspirado no livro “1984”, do escritor inglê s George Orwell. No livro “1984”, o lıd ́ er de um paıś fictıćio vigia a populaçã o por meio de câ meras posicionadas em todos os lugares, chamado de O grande irmã o: Big Brother. O livro foi um grande sucesso, tendo també m sido transformado em filme. O reality show reú ne pessoas anô nimas numa casa onde os ambientes tê m câ meras e microfones ligados durante as 24 horas do dia, por um perıo ́ do de até cem dias, e se tornou um sucesso em todo o mundo. Até o ano de 2008, já havia sido exibido em 51 paıśes, distribuıd ́ os pelos cinco continentes (39 paıśes com versõ es pró prias e 12 paıśes africanos reproduzindo a versã o sul-africana). O grande diferencial dos reality shows é o uso da tecnologia para permitir a interaçã o do Mauro F. Rebelo 119 pú blico com os protagonistas por meio do telefone e da internet. Ele ainda perde para as novelas, mas, no futuro, pode se tornar a forma de entretenimento dominante. O que há de comum entre todos esses tipos de entretenimento é que todos falam da mesma coisa: a vida dos outros. Mesmo quando disfarçadas de histó ria ou aventura. Nó s somos obcecados com as mentes uns dos outros. “A nossa psicologia intuitiva do bom-senso supera em muito qualquer psicologia cientı́fica em termos de amplitude e acurá cia”, escreveu Symons (1987). Barlow (1987) diz que as grandes mentes literá rias sã o, quase por definiçã o, grandes leitores de pensamento. Shakespeare era um psicó logo muito melhor que Freud. E Jane Austen era uma soció loga muito melhor do que Durkheim. Se você quiser compreender os motivos humanos, leia Shakespeare, e nã o Freud. Leia Vinı́cius de Moraes e Mario Quintana, em vez de Maria Rita Kehl. Nó s somos inteligentes porque somos psicó logos inatos. E como somos! TESTE DE WASON A linguagem evoluiu principalmente para podermos manipular uns aos outros, e nã o apenas para transferir informaçã o. Um pá ssaro canta eloquentemente, e por um longo perıo ́ do de tempo, para convencer uma fê mea a se acasalar com ele ou para manter um rival afastado de seu territó rio. Se ele quisesse apenas transmitir informaçõ es, a melodia poderia ser bem menos elaborada. A comunicaçã o animal é muito mais parecida com a propaganda e marketing dos humanos do que com os quadros de aviso das companhias aé reas. Mesmo a comunicaçã o mutuamente bené fica, entre mã e e filho, é pura manipulaçã o 120 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? (como toda mã e que já foi acordada no meio da noite por uma criança aos berros, desesperada apenas por companhia, sabe). Quando os cientistas começaram a pensar a comunicaçã o dessa forma, eles olharam para a vida social dos animais sob uma luz inteiramente nova. Uma forma de demonstrar esse fato, que pode soar um tanto quanto chauvinista para algumas pessoas, é por meio de um teste ló gico chamado “Teste de Wason”. Este exemplo eu busquei no Wikipedia: Imagine que temos quatro cartas sobre a mesa. A ú nica informaçã o que você tem é que as cartas possuem em um dos lados uma letra e, do outro, um nú mero. As cartas poderiam ser: A – N – 4 – 7. Quantas cartas, e quais, você precisaria virar para confirmar a afirmaçã o: cartas com vogais de um lado possuem nú meros pares do outro lado? Antes de eu dar a resposta, vamos tentar de outra forma: imagine que você é o dono de um bar e a lei nã o permite que menores de 18 anos consumam á lcool. Quatro homens que você nã o conhece estã o bebendo em uma mesa quando entra a fiscalizaçã o. Você se aproxima da mesa e repara em: um aposentado bebendo cerveja, uma criança bebendo alguma coisa que você nã o consegue identificar, um homem, cuja idade você nã o consegue identificar, bebendo cerveja, e um homem, cuja idade você nã o consegue identificar, bebendo suco de laranja. Para quantos homens, e quais, você precisa perguntar o que estã o bebendo e evitar assim uma multa? A resposta da primeira alternativa é cartas A e 7; e da segunda alternativa, para o homem de idade desconhecida bebendo cerveja e para a criança com a bebida desconhecida. Nã o posso ter certeza, mas, baseado nos estudos que foram feitos até hoje, apesar de o problema ser exatamente o mesmo, você deve ter achado muito mais fá cil de compreender, e até acertado, na segunda alternativa. Mauro F. Rebelo 121 A razã o pela qual um problema ló gico era mais fá cil de ser compreendido pelas pessoas quando apresentado com contexto e histó ria, e nã o apenas como um quebra-cabeças, sempre foi um desafio para os psicó logos. Mas Leda Cosmides (1989) e Gerd Gigerenzer (GIGERENZER E HUG, 1992) parecem ter resolvido o enigma. Se a regra a ser aplicada nã o é um contrato social, o problema é difıćil, por mais simples que seja a sua ló gica, mas caso se trate de um contrato social, entã o é fá cil. Por meio de uma longa sé rie de experimentos, os autores provaram que as pessoas simplesmente nã o tratam esses enigmas como testes ló gicos, mas sim como contratos sociais. E entã o buscam por trapaceiros (no caso, quem estava bebendo cerveja contra a lei). A mente humana pode muito bem nã o ser adequada para a ló gica, mas é muito bem preparada para julgar a imparcialidade de acordos sociais e a sinceridade das interaçõ es sociais. Vivemos em um mundo maquiavé lico e cheio de pessoas desconfiadas. ONDE ESTA O ALUNO? Se você é professor, ou aluno, deve ter percebido uma coisa ultimamente: as salas de aula estã o vazias. Quando o professor é exigente com assiduidade e pontualidade e faz chamada, a sala pode até estar cheia, mas as mentes estã o vazias. E quando ele é muito exigente na prova, os olhos até ficam grudados no quadro-negro, aquele artefato antigo, ou no projetor multimıd ́ ia, e os cadernos podem até estar cheios de anotaçõ es, mas as mentes continuam vazias. De um jeito ou de outro, as salas de aulas estã o vazias, e isso é um perigo. Minha hipó tese é que mesmo os professores novos, que usam ferramentas tecnoló gicas, nã o conseguem chamar atençã o dos alunos, dispersos em um mundo saturado de 122 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? informaçã o. Você já ouviu aquela pará bola do professor que adormeceu há 200 anos e, quando acordou, encontrou a escola... exatamente igual? Pois é , a escola, em termos de ensino, continua chata. Esse fenô meno observado, principalmente no ensino presencial, tem sido desafiado por diversas iniciativas. A escritora Sonia Rodrigues criou um mé todo e um portal para ensinar Fıśica para alunos em situaçã o de risco social com base no modelo narrativo. Em um artigo recente, Rodrigues (2010) discute por que e como o modelo narrativo pode ajudar o aluno a escrever melhor. Ou o Projeto Nave (Nú cleo Avançado em Educaçã o) do Oi Futuro, coordenado por Samara Werner, que usa videogame, celular e todas aquelas outras coisas que deixam normalmente os professores em pâ nico, dentro da sala, em favor da educaçã o. Mas talvez a iniciativa mais abrangente e mais imediata seja a de Cristine Barreto, coordenadora do Nú cleo de Produçã o do Material Didá tico impresso para educaçã o a distâ ncia do MEC. Um professor pode colocar tudo dentro do material didá tico impresso, mas nã o pode, ele mesmo, ir junto com o livro. O mais difıćil para o professor é se colocar dentro do material. Usar uma linguagem mais pessoal, até afetiva. E isso é o que é mais importante para os alunos vencerem o obstá culo da distâ ncia fı́sica e emocional, que tanto ajudam na aprendizagem, diz Barreto (2007, p. 15). Conheça o “Almanaque da rede” (www.almanaquedarede. com.br) e o “Sei mais Fıśica” (www.seimaisfisica.com.br), de Sonia Rodrigues, e o Projeto Nave (www.nave.org.br), do Oi Futuro, coordenado por Samara Werner. Mauro F. Rebelo 123 LINGUAGEM PESSOAL E AFETIVA A principal dificuldade dos docentes para usar uma linguagem mais pró xima ao aluno é saber o tê nue limite entre o pró ximo e o ın ́ timo, o claro e o infantilizado, o informal e o coloquial. No curso de Planejamento e Elaboraçã o de Materiais Didá ticos impressos para EAD, do Laborató rio de Novas Tecnologias de Ensino da UFF, Universidade Federal Fluminense, dois exercıćios exemplificam o equilıb ́ rio entre todas essas alternativas para que o texto resulte, acima de tudo, objetivo, preciso e coeso. Qual opçã o abaixo você acha que deveria ser usada, por exemplo, para a definiçã o de á gua? A) A á gua é uma substâ ncia quım ́ ica formada por duas molé culas de hidrogê nio e uma de oxigê nio e possuidora de propriedades fı́sicas peculiares. E uma substâ ncia incolor, inodora e insıp ́ ida. B) A á gua é o habitat de colô nias de micro-organismos que se multiplicam em seu meio, dadas as circunstâ ncias adequadas à vida desses e de outros ecossistemas que se interligam à quele. C) Você já pensou o que dizer se algué m te perguntasse o que é á gua? Com certeza, você sabe o que é , mas explicar o seu significado nã o é tã o simples assim, concorda? Certamente, você dirá que nã o tem cheiro, cor ou gosto e todo mundo gosta de beber. Num dia de calor, nada melhor que um copo dela gelada. D) Aı́ galera, a á gua é aquela parada que sai da torneira, nã o fede nem cheira, nem tem gosto e cor. Lava tudo, menos lın ́ gua de fofoqueiro. E) A á gua é um elemento mıt́ico grego que, do ponto de vista semió tico, por sua caracterıśtica iconográ fica, simboliza a fecundidade, tendo por funçã o referencial a fluidez. Antes que você tenha dú vidas, a resposta correta é a C. 124 TI-TI-TI – COMO CHAMAR ATENÇAO PARA O QUE VOCE DIZ? INCLUINDO O LEITOR NO TEXTO Neste divertido trecho, Mulkay (1985) escreve um diá logo fictıćio entre ele e o leitor, no meio do pró prio texto. E um excelente exemplo de como podemos usar a linguagem para despertar atençã o e criar proximidade com o aluno: Eu gostaria que você estivesse aqui comigo no meu estudo, caro leitor, enquanto eu procuro por palavras para introduzir esse volume para você . Seria muito mais fá cil se nó s pudé ssemos falar, porque, falando, eu poderia responder qualquer questã o que você quisesse perguntar e providenciar uma introduçã o desenhada especificamente para você . Um problema da palavra falada é que ela compromete você irrevogavelmente com uma sequê ncia especıf́ica de palavras, quando tantos textos sã o sempre possıv́eis e tantos sã o sempre necessá rios... Infelizmente, eu estou condenado a depender de uma introduçã o que tenha a forma de um monó logo... Claro, o monó logo escrito tem algumas vantagens... Eu poderei deixar bem claro sobre o que trata este livro. Claro, o monó logo confere certa autoridade interpretativa ao seu autor. Quanto mais eu penso sobre isso... — Mas se você precisa de mim, por que nã o me convida para o texto? — Mas quem disse isso? — Eu disse. Se você quer um diá logo em vez de um monó logo, por que você nã o convida um potencial leitor para conversar com ele? — Mas eu nã o posso fazer isso. Esse é um estudo acadê mico sé rio, e nã o um conto de fadas! Os autores de livros começam a perceber e tirar proveito das fofocas para o ensino. Os primeiros, e talvez os principais, foram os professores de histó ria. Talvez porque, como disse “Sofia”, a histó ria “fala de pessoas”. Fazer fofoca com Mauro F. Rebelo 125 nú meros deve ser mais difıćil. Primeiro foi Fernando Novaes, que, em 1997, lançou o primeiro de quatro volumes sobre a “Histó ria da vida privada no Brasil”, em que eram contadas as histó rias do cotidiano dos portugueses e brasileiros da Amé rica portuguesa. No ano seguinte, 1998, à s vé speras das comemoraçõ es pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil, o jornalista Eduardo Bueno lançou a Coleçã o “Terra Brasilis”, com cinco livros sobre Histó ria do Brasil, voltada para leigos. Os trê s primeiros tıt́ulos “A viagem do descobrimento” (1998); “Ná ufragos, traficantes e degredados” (1998) e “Capitã es do Brasil” (1999) venderam, em menos de dez anos, mais de 500 mil exemplares. Finalmente, em 2009, Angela Dutra de Menezes lançou o livro “O portuguê s que nos pariu”, que faz uma viagem “Candinha” aos nossos antepassados, conquistando o pú blico e ficando meses na lista dos mais vendidos. O Brasil possui em torno de 15 milhõ es de jovens fora do sistema escolar e, se hoje houvesse uma forma de matricular todos esses alunos, nã o terıámos professores suficientes para formar todos eles. Mas, mais do que mais professores, precisamos de professores qualificados para lidar com jovens, muitas vezes, mais familiarizados com a tecnologia do que os pró prios docentes. Eles nã o precisam competir com as tecnologias e certamente podem usá -las a seu favor na sala de aula. Para disputar com todas as outras fontes de informaçã o, ou apenas de distraçã o, as quais os alunos estã o submetidos o tempo todo, em todos os lugares, a ferramenta é bem mais antiga, testada e aprovada por milhares de anos de seleçã o natural: “Deixa eu te contar o que eu ouvi agora há pouco…”. 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Plenum Press, New York. 3 PARTE 3: E AÍ, QUE BICHO DEU? LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇÃO INFANTIL Jane Ferreira Senra e Silva Mostrei minha obra-prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes dava medo. Responderam-me: “Por que um chapéu daria medo?” (SAINT-EXUPÉRY, 2002) Era uma vez, numa cidadezinha distante chamada Nova Olım ́ pia, duas professoras que adoravam trocar ideias sobre a profissã o de educadora. Falavam coisas do tipo, “hoje o Joã ozinho deu trabalho, mas quando eu contei uma histó ria, ele viajou”. As professoras, vendo que seus alunos gostavam muito de ouvir contos, fá bulas, poesias, etc., resolveram proporcionar uma bela viagem a eles. Arrumaram as bagagens. Nas malas, colocaram muita disposiçã o, imaginaçã o sem fim, uma porçã o generosa de vontade de aprender e de ensinar també m, um pote transbordante de alegria e tudo, mas tudo mesmo, que conseguiram reunir da obra do comandante da viagem, Monteiro Lobato. Isso realmente nã o foi fá cil, parece até que a modernidade ajudou a esquecer esse magnıf́ico escritor. Ele nã o foi só isso, també m foi advogado, promotor, fazendeiro, editor e a primeira pessoa a afirmar que no Brasil havia petró leo. Por causa dessa afirmaçã o, Lobato foi perseguido, preso e criticado, pois insistia em dizer que, alé m de existir petró leo, era preciso explorá -lo para dar vida digna ao povo brasileiro. 132 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL Danado esse Monteiro Lobato! Mas, para descobrir tudo isso, as duas professoras tiveram que garimpar livros nos sebos, nas livrarias e até na internet. Prevendo que a viagem seria emocionante, as professoras, que daremos os nomes de Sherazade7 e Doniazade8, resolveram convidar mais duas professoras, assim, ajudariam pelo menos mais cinquenta crianças a conhecerem as maravilhas que Lobato escreveu. As professoras convidadas logo embarcaram na nave que levaria as quatro e mais ou menos cem crianças para conhecerem o universo encantado da imaginaçã o. De posse de suas bagagens, elas embarcaram na nave Encantamento e foram apresentar o comandante Monteiro Lobato para a tripulaçã o. As crianças nã o o conheciam, mas tudo bem, afinal, até elas, as professoras, nã o sabiam muito sobre ele e tiveram que conhecer o seu currıćulo para saber se era seguro viajar em sua nave. Depois de conhecerem o comandante, Sherazade, Doniazade e suas amigas apresentaram um lugar muito especial, o Sıt́io do Picapau9 Amarelo. Foi uma grande decepçã o quando as professoras falaram sobre aquele lugar encantado, onde a vaca, o porco, o burro, todos falavam. As crianças nunca haviam ouvido falar do tal sıt́io! Acredita que o ú nico pica-pau que a tripulaçã o da nave conhecia era um malvado que sempre se dá bem em suas histó rias? Sherazade e Doniazade nã o desistiram, abriram as bagagens e tiraram de lá o roteiro da viagem. Era um roteiro fantá stico. Passariam primeiro pelo Sı́tio do Picapau Amarelo para conhecê -lo melhor. Para isso, Sherazade o descreveu com riqueza de 7 Personagem do livro “Mil e uma noites”, que todas as noites contava histó rias para o marido, impedindo que ele a matasse. 8 Irmã mais jovem de Sherazade. 9 Essa é a grafia que consta nos livros de Monteiro Lobato. Por isso optamos por manter a forma original. Apó s o novo acordo ortográ fico, passou-se a grafar pica-pau. Jane Ferreira Senra e Silva 133 detalhes. Feito isso, a tripulaçã o decorou a nave Encantamento, nave que alguns insistem em chamar de sala de aula, com um painel do sıt́io. Sherazade, Doniazade e suas amigas levaram para a tripulaçã o uma trilha enorme que, na medida em que um grande dado era arremessado, os jogadores caminhavam sobre ela e as comissá rias lançavam desafios do tipo: “Essa é a toca da Cuca, com qual letra começa a palavra Cuca?”; ou “o Minotauro chegou, retorne uma casa”; ou ainda “tia Nastá cia está por aı,́ aprenda um versinho com ela e nos conte agora”. As comissá rias tinham como foco o brincar e, por meio das brincadeiras, conhecer mais sobre algumas obras de Lobato, ter contato com a literatura e, a partir dela, desenvolver a escrita e a leitura das crianças. As comissá rias tinham claro que a racionalidade excessiva usada como mé todo para alfabetizar engessa a imaginaçã o das crianças, tirando o que elas tê m de mais belo. A capacidade de imaginar dá beleza ao mundo e colorido à vida. Ao aterrissar no sıt́io, a tripulaçã o estava curiosa para conhecer a Emıĺia, uma boneca de pano que fala pelos cotovelos. Mas nã o, nã o pensem que sua voz sai pelos cotovelos. E que a bonequinha fala demais, por isso todos costumam dizer: Emıĺia fala pelos cotovelos. Ah, ela també m é marquesa de Rabicó , por conta de seu casamento com o Marquê s. Conheceram-se e se apaixonaram por Narizinho, a menina do nariz arrebitado, criança cheia de imaginaçã o e alegria e dona da Emıĺia. A tripulaçã o també m conheceu a tia Nastá cia, uma senhora que faz deliciosos bolinhos de chuva e costuma contar para as crianças do sıt́io contos populares que elas adoram. Passeando pelo sıt́io, a tripulaçã o encontrou també m o Rabicó , um porco marquê s covarde e comilã o, que vive se metendo em problemas por causa de sua comilança. As crianças viram Visconde de Sabugosa, um sá bio sabugo feito de espiga de milho, que vive sempre cercado de livros. Dizem que ele foi uma crıt́ica feita por Lobato aos cientistas que só acreditam 134 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL nos fatos se eles forem escritos nos livros. A tripulaçã o també m conheceu Pedrinho, um garoto esperto e corajoso que só tem medo de vespas, neto de dona Benta, a proprietá ria do Sıt́io do Picapau Amarelo, lugar onde viviam todos. Dona Benta foi outra moradora que a tripulaçã o gostou muito porque ela també m é uma ó tima contadora de histó rias e costuma embarcar nas fantasias das crianças do sıt́io. Nã o podemos nos esquecer do Saci-pererê e da Cuca que, vira e mexe, aparecem no sıt́io para fazer travessuras. Pois bem, Sherazade apresentou os novos amigos à tripulaçã o, que ficou com um brilho nos olhos. Só quem tem imaginaçã o carrega esse brilho. Bem, Sherazade, como uma contadora de histó ria experiente, percebeu logo que quando os olhos brilham é hora de dar asas à imaginaçã o. Convidou a tripulaçã o para reunir tudo que podiam: retalhos de tecidos, jornais usados, garrafas PET, etc., e pediu para que todos colocassem as mã os na massa, ou seja, todos deveriam rasgar os jornais para colocar de molho em um balde com á gua, depois bater no liquidificador, retirar o excesso de á gua e misturar cola à massa de jornal. Com a massa, a tripulaçã o modelou as cabeças dos habitantes do sıt́io, que foram fixadas nas garrafas PET. As garrafas foram revestidas com tiras de jornais e cola e se transformaram em: Emı́lia, Pedrinho, Visconde, Rabicó , dona Benta, Saci e tia Nastá cia, os quais, ao final, receberam uma demã o de tinta e roupas. Tudo isso virou um jogo de boliche que proporcionou muita diversã o para a tripulaçã o que passava quatro horas por dia na nave Encantamento, mas, com tanta coisa para fazer e ouvir, o tempo voava na mesma velocidade da imaginaçã o. Vamos lá , continuando o roteiro da viagem, a tripulaçã o, as professoras e o comandante partiram para o reino das á guas claras, um reino que fica no fundo do ribeirã o, lá perto do sıt́io. No reino das á guas claras, Narizinho encontrou o prın ́ cipe Escamado, que a pediu em casamento. Ela aceitou, mas quando ficasse grande. També m estava lá o doutor Caramujo, Jane Ferreira Senra e Silva 135 que receitou para a Emıĺia a pıĺula falante, pois, até entã o, ela era só uma boneca de pano sem graça e muda. O efeito da pıĺula deu a ela um alıv́io, pois a danadinha nasceu para falar. Foi só aprender que disparou a tagarelar. Os livros me contaram que ela representa o lado rebelde de Monteiro Lobato, que nem sempre podia dizer o que queria, entã o, com maestria, ele regia a voz de Emıĺia a favor de suas ideias. Narizinho apelidou a bonequinha de torneirinha de asneiras, mas, se pensarmos bem, nem tudo o que ela dizia era bobagem. No reino das á guas claras, també m tinha uma famıĺia de aranhas que teceram um vestido para Narizinho, tã o lindo que nem o melhor dos estilistas seria capaz de criar tamanha obra de arte. A tripulaçã o ficava encantada com a paisagem do fundo do ribeirã o, tanto que aprenderam a cantar a cançã o “Como pode um peixe vivo viver fora da á gua fria”. També m fizeram dobraduras de peixes, que usaram para preparar um cená rio, pois, ao retornar para casa e reabastecer a nave Encantamento com novas histó rias, os parentes e amigos da tripulaçã o aproveitaram para se reunirem e assistirem a um grande sucesso em cartaz por nome “Era uma vez”. Uma peça de teatro baseada na parte da viagem ao reino das á guas claras. Foi maravilhoso ver a Emıĺia comendo a pıĺula e falando sem parar, o Visconde pesquisando os tipos de peixe que encontrara, o doutor Caramujo conversando com Narizinho sobre a pıĺula. Tudo isso vivido pela tripulaçã o que tinha entre quatro e cinco anos, que decoraram texto e tudo. Foi um sucesso de pú blico e de crıt́ica. Emıĺia ficou tã o esperta depois que tomou a pıĺula falante do doutor Caramujo, que se viu incomodada com a forma como a natureza se apresentara. Imaginem, a bonequinha resolveu reformar a natureza. Ela se juntou com uma amiga chamada Rã . Nem Sherazade nem a tripulaçã o nunca haviam ouvido falar da tal amiga de Emıĺia. Só o comandante conhecia a garota. Pois bem, as duas pensaram, pensaram e chegaram à conclusã o que na natureza havia vá rias coisas que 136 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL precisavam mudar. Elas diziam: “Como pode uma á rvore tã o grande, como o pé de jabuticabas, dar frutos tã o pequeninos, e as abó boras tã o grandes nascerem grudadas em um pé frá gil, precisando ficar no chã o para nã o caıŕem?”. Acreditando que estava tudo errado, elas decidiram reformar a natureza. Entre as muitas coisas que mudaram, estavam os livros, que deveriam ser feitos de farinha de trigo e teriam sabor de alimentos, pois as pessoas poderiam ler e depois degustá -los. Até que nã o é má ideia, alimentar o intelecto e depois alimentar o corpo. A tripulaçã o gostou da ideia e sugeriu vá rios sabores, entre eles o de sorvete de chocolate, mas pensou que, até terminar de ler, já teria derretido tudo. Foi entã o que o grupo mudou para barras de chocolate ao leite. Emı́lia també m reformou a vaca mocha. Colocou uma torneirinha no lugar das tetas. Ficou bom, mas a tripulaçã o ficou com dó da vaquinha, pois devia doer. Por fim, pensaram que dó i mais quando as pessoas puxam para sair leite, pois a coitada, alé m de produzir leite para alimentar os bezerros, ainda precisa produzir quantidade suficiente para satisfazer as necessidades das pessoas. A reforma da natureza que a Emıĺia fez durou até dona Benta, que estava viajando com os outros, chegar. Sabe onde ela estava? Tentado melhorar o mundo, pois o Duque de Windsor, representante dos ingleses, apresentou, aos grandes ditadores, a sabedoria de dona Benta. Com o Visconde como grande cientista e o conhecimento do senso comum de tia Nastá cia, os ditadores chegaram à conclusã o que no dia em que o Planeta Terra ficar igual ao Sıt́io do Picapau Amarelo, o mundo será feliz. Isso nã o é utopia, é um pensamento tã o simpló rio que até um adulto pode entender. O problema é que entre entender e praticar há uma longa distâ ncia, e no meio do caminho as pessoas tropeçam o tempo todo em ervas daninhas chamadas ganâ ncia e desejo de poder, por isso a grande maioria fica presa a essas ervas sem a nobreza e a grandeza de dona Benta e dos moradores do sıt́io. Jane Ferreira Senra e Silva 137 Tendo os sonhos como a possibilidade de melhorar o mundo, os ditadores resolveram que nã o mais matariam pessoas com bombas e canhõ es. Foi assim que os trê s habitantes do sıt́io foram convidados para representar a humanidade na Conferê ncia de Paz de 1945. Emıĺia nã o quis ir, pois já estava planejando reformar a natureza. O fato é que dona Benta deu uma bronca na bonequinha e a fez voltar tudo ao “normal”, principalmente a biblioteca. A tripulaçã o preferia as coisas do jeito da Emıĺia. O comandante apoiou dona Benta. Sherazade, Doniazade e suas amigas discutiram com a tripulaçã o dizendo que també m concordavam com Emıĺia, que muitas coisas deveriam mudar, principalmente o ser humano, que tem o pé ssimo há bito de destruir a natureza, maltratar as pessoas e os animais. Para comemorar essa ida ao sıt́io e conhecer a reforma que a Emıĺia fez, Sherazade, Doniazade e suas amigas prepararam uns jogos novos para apresentar à tripulaçã o. Jogos de dominó e jogo da memó ria com os habitantes do sıt́io. Ao demonstrarem como se joga, as comissá rias da nave Encantamento perceberam que a tripulaçã o nã o conhecia os joguinhos, mas elas ensinaram como brincar. Dividiram as crianças em vá rias mesas e entregaram os pacotinhos. Dentro, havia jogo da memó ria ou dominó . As comissá rias acompanhavam tudo de perto e quando percebiam algum grupo dispersando, logo trocavam o jogo, e a brincadeira começava de novo. O que a tripulaçã o gostou mesmo foi de viajar pela mitologia grega e conhecer o Minotauro, um monstro com metade homem, metade touro, isso sim era medonho. A tripulaçã o ficou tensa quando Teseu, um jovem destemido, entrou no labirinto do Minotauro para lutar contra o terrıv́el monstro. Ajudado por Pedrinho, que usou seu bodoque10 para acertar o Minotauro, Teseu derrotou a fera grega. 10 També m conhecido como estilingue ou funda, é um brinquedo feito com forquilha de madeira e duas tiras de borracha que se unem a um couro. Usada para atirar pedras e matar passarinhos. 138 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL Imaginem que o Minotauro queria devorar a tia Nastá cia! Só nã o fez isso porque ele gostou mais dos bolinhos de chuva que só ela sabia fazer. Era o né ctar dos deuses. O monstro, que nã o era bobo nem nada, preferiu mantê -la viva, assim se fartaria de bolinhos todos os dias. Ah, já ia me esquecendo, a tia Nastá cia ensinou à tripulaçã o a fazer os bolinhos, e eles aprenderam direitinho. Depois de ouvir Sherazade, Doniazade e suas amigas contarem sobre as delıćias, a turma copiou a receita. Em seguida, foram para a cozinha separar os ingredientes: 3 xıćaras de farinha de trigo, 2 ovos, 1 copo de leite, 1 colher de margarina, 1 xıćara de açú car e 1 colher rasa de fermento. Separados todos os ingredientes, misturaram tudo em uma vasilha até a massa ficar homogê nea. Parecia mais uma poçã o má gica, pois como aquela meleca poderia virar bolo? Sherazade, Doniazade e as outras explicaram que toda aquela massa precisaria entrar em contato com ó leo bem quente, pois a alta temperatura mudaria seu estado de lıq ́ uido pastoso para um tipo de só lido fofinho e delicioso. Essa parte eles somente assistiram de longe para nã o correrem o risco de se queimar. A tripulaçã o entregou tudo a uma comissá ria, que fritou pequenas porçõ es em ó leo bem quente. Ficou uma delıćia, nã o sobrou nem um. Quase que o comandante Monteiro Lobato ficou sem, pois mal deu tempo de tomar um fô lego e já está vamos sendo conduzidos para a mata que fica nos fundos do Sıt́io do Picapau Amarelo, onde encontramos Pedrinho em outra aventura. Imaginem que o menino resolveu organizar uma expediçã o com a turma do sıt́io para uma caçada à onça-pintada que andava rondando o sı́tio. Pedrinho saiu para convidar os companheiros para a aventura. Rabicó , quando ficou sabendo dos planos do menino, tremeu igual gelatina. Visconde aceitou com nobreza e Emıĺia aplaudiu Pedrinho pela ideia, pois já estava cansada da monotonia. Começaram os preparativos. Pedrinho levou uma espingarda que ele mesmo fez com cano Jane Ferreira Senra e Silva 139 de guarda-chuva e gatinho de elá stico. Narizinho pegou a faca de cortar pã o. Visconde recebeu um sabre, també m era do Visconde o comando da expediçã o, e Emıĺia levou o espeto de assar frango. Para nã o fugir, Pedrinho atrelou Rabicó a um carrinho com um canhã o feito com a velha chaminé . As balas eram pedras. Ao encontrarem com a onça que o Visconde vira com a ajuda de binó culos, mandaram fogo com o canhã o, mas saiu um tiro chocho. A espingarda fez o mesmo, um tiro que nã o foi alé m de dois palmos, o que irritou a fera. Para se livrar do ataque da onça, todos subiram na á rvore, menos Visconde, que teve de ser pescado por um galho seco manuseado por Pedrinho. Finalmente, Pedrinho se lembrou que tinha pó lvoras no bolso e usou-as para jogar nos olhos da onça. Ela ficou desesperada, e a turminha aproveitou o momento para atacar a fera. Narizinho esfregava a faca no lombo do animal, como se quisesse tirar uma fatia, e o Visconde enterrou o sabre no peito da onça. Emıĺia fez o mesmo com o espeto. Pedrinho bateu com o cabo da espingarda no crâ nio da fera e até Rabicó perdeu o medo, dando um tiro à queima-roupa com o canhã o. O felino acabou morrendo, e os danadinhos planejaram como levar o animal para casa. Eles tiraram cipó s para amarrar e arrastar a onça-pintada até o sıt́io. Rabicó , exausto, disse preferir matar dez onças a arrastar uma. A essa altura do campeonato, dona Benta e tia Nastá cia já estavam preocupadıśsimas e ficaram mais ainda quando viram a aventura em que as crianças se meteram. Aventura boa quem viveu mesmo foi a tripulaçã o da nave Encantamento, pois Sherazade, Doniazade e as demais comissá rias arrumaram um ô nibus espacial chamado Estrela Cadente, pediram autorizaçã o para os pais das crianças e as levaram para uma pequena cidade de nome Tangará da Serra. Lá , a tripulaçã o foi conduzida até um local chamado Bosque, 140 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL onde participou de um passeio para conhecer como era o capoeirã o dos taquaruçus, lugar onde Pedrinho e seus amigos encontraram a onça. Visitaram tudo, mas com muito cuidado, pois poderiam ser, a qualquer momento, surpreendidos por uma onça, pela Cuca ou até mesmo pelo Saci. Alguns tripulantes viram o Saci, outros ouviram barulho de onças e até a risada da Cuca. Para garantir a segurança, todos voltaram para pró ximo do ô nibus espacial Estrela Cadente e se fartaram com um delicioso lanche que a tia Nastá cia preparou e mandou de presente. De volta à nave Encantamento, a tripulaçã o foi convidada a fazer uma bela dobradura de onça e a conhecer a lenda que diz assim: “Onça pintada tã o cheia de pintas, quem te pintou? Foi a lata de tinta”. Depois disso, os tripulantes que quiseram começaram um ensaio para mostrar aos pais um teatro que retratou um capıt́ulo do livro “Caçadas de Pedrinho”, que, ló gico, foi escrito pelo comandante da viagem, Monteiro Lobato. Novamente, o sucesso foi esplendoroso, e quem ganhou mais uma vez foram os tripulantes, que se envolveram, imaginaram, criaram e se divertiram com as aventuras apresentadas a eles. Depois de participar de vá rias aventuras, a tripulaçã o já estava montando, com o alfabeto mó vel, alguns nomes relacionados a tudo aquilo que aprenderam (Cuca, Saci, Benta, bolo, pica-pau e sıt́io) alguns nomes escritos pelas crianças. Escrever palavras sem ter que decorar sıĺabas foi um grande avanço para a nossa tripulaçã o, pois ela era composta exclusivamente por crianças de quatro e cinco anos, sendo que a grande maioria pertencia a uma classe desfavorecida economicamente, que nunca havia frequentado a escola. Portanto, Jane Ferreira Senra e Silva 141 desconheciam as normas da lın ́ gua escrita, com o agravante que parte delas provinha de famıĺias nã o alfabetizadas, sendo a escola a instituiçã o responsá vel por oportunizar o contato com a literatura, a leitura e a escrita. As comissá rias fizeram isso sem perder a capacidade de sonhar. Todo esse aprendizado da literatura, das leituras, da escrita, das brincadeiras e as viagens pelo imaginá rio foram experiê ncias inesquecıv́eis para Sherazade e as outras comissá rias, que esperam ter sido inesquecıv́eis para todos. E como dizia dona Benta: “Entrou por uma porta, saiu pela outra, quem quiser que conte outra”. UM OUTRO OLHAR SOBRE A HISTORIA [...] como eu vou saber da terra, se eu nunca me sujar? Como eu vou saber das gentes, sem aprender a gostar? Quero ver com meus olhos, quero a vida até o fundo, quero ter barro nos pés, eu quero aprender o mundo! (Pedro Bandeira) Objetivando estimular a imaginaçã o e a sensibilidade das crianças, ajudando-as a conhecer melhor a magnitude das histó rias de Monteiro Lobato, foram realizadas as atividades já descritas, possibilitando-nos avaliá -las com um processo de aprendizagem contın ́ uo, em que espaços favorá veis à convivê ncia e ao conhecimento foram criados a partir das necessidades das crianças. Espera-se que esses educandos continuem a vivenciar, no decorrer de anos posteriores, momentos que favoreçam e estimulem a imaginaçã o, já que consideramos o 142 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL imaginá rio infantil um fator fundamental para o nã o endurecimento da educaçã o. O sucesso do nosso projeto pedagó gico se deu pela caracterıśtica inerente das crianças em viver plenamente a magia e os momentos de encantamento proporcionados pelas histó rias de Monteiro Lobato. Tudo isso se caracterizou pelo diá logo dos educandos com os personagens das histó rias contadas. A imaginaçã o criadora é inerente à s crianças, poré m isso se perde com a falta de estım ́ ulos. Foi com esse pensamento que acreditamos na possibilidade de melhorar o aprendizado das crianças envolvidas no projeto “Era uma vez...”, trabalhado com quatro turmas da educaçã o infantil, sendo duas turmas de pré I, quatro anos, e duas de pré II, cinco anos. Segundo Ana Teberosky (1997), “a memorizaçã o e relato de estó rias fazem parte das atividades da linguagem escrita, dentro de um projeto de renovaçã o pedagó gica”. Para ela, recontar um texto nã o é um simples processo de reproduçã o, mas uma sequê ncia de pensamentos que envolvem ordenaçã o, expressã o, esquematizaçã o, formulaçã o do texto com ordenaçã o de fatos, e isso implica processos cognitivos de memó ria. Para tanto, faz-se necessá rio ter conhecimento pré vio adquirido com a contaçã o de histó rias, incluindo quatro etapas: apresentaçã o da histó ria, visualizaçã o das ilustraçõ es, o conto feito pelo leitor e o reconto feito pelo ouvinte. A partir das histó rias, é possıv́el desenvolver inú meras atividades, saindo da repetiçã o mecâ nica sem sentido que torna a educaçã o um fardo que as crianças carregam desde muito cedo. A educaçã o mecanicista rompe com o processo de aquisiçã o do conhecimento, separando o aprendizado que a criança traz consigo do aprendizado adquirido na escola. Essa ruptura tende a induzir o educando a pensar que conhecimento vá lido é obtido somente na sala de aula, repassado pelo professor de forma rıǵida e inflexıv́el. Jane Ferreira Senra e Silva 143 Sabemos que a criança é um ser histó rico, sendo assim, també m é um ser social e cultural. Esses sã o fatores que nã o podem ser desconsiderados quando se pretende ensinar e també m aprender com algué m. Quando os educadores buscam excessivamente a objetividade dos conteú dos e a neutralidade no ato de ensinar, isso torna a educaçã o menos humana, dando um cará ter produtivista à quilo que poderia ser prazeroso e divertido. A criança se caracteriza por sua capacidade de imaginar e criar, sendo assim, aproveitamos essas qualidades para possibilitar a elas momentos lú dicos, ajudando-as a criarem novas fantasias e um universo particular, saıd ́ o da educaçã o estratificada, à qual, com frequê ncia, elas sã o submetidas. As brincadeiras, desenhos, histó rias, etc., possibilitam à criança ressignificar a realidade em que está inserida. Para ter uma pré -escola com o valor que lhe é devido, necessá rio seria també m aos educadores voltarem à s suas criancices, nã o no sentido da imaturidade, mas na relaçã o com a fantasia vivida na infâ ncia. Talvez isso seja importante para que a escola ressignifique seu papel, tornando o ato de ensinar sedutor, tomando como base o imaginá rio infantil. Se os educadores perderem a sua capacidade de sonhar e imaginar, tornar-se-ã o duros e insensıv́eis, reproduzindo isso nas crianças. E preciso nã o perder o olhar de criança. Vejamos, nas palavras de SaintExupé ry: As pessoas grandes aconselharam-me a deixar de lado os desenhos de jiboias abertas ou fechadas e a dedicarme, de preferê ncia, à Geografia, à Histó ria, à Matemá tica, à Gramá tica. Foi assim que abandonei, aos seis anos, uma promissora carreira de pintor... As pessoas grandes nã o compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar a toda hora explicando (SAINT-EXUPERY, 2002, p. 10). 144 LITERATURA NA ESCOLA: ALGUMAS POSSIBILIDADES NA EDUCAÇAO INFANTIL Se ainda na infâ ncia os educandos forem submetidos ao adestramento rıǵido que muitas escolas impõ em para dar conta dos conteú dos, entã o perderã o toda a infâ ncia, tornarse-ã o adultos, ou, quem sabe, professores tristes e incapazes de ver beleza nos rabiscos e nas fantasias que uma criança mostra entusiasmada. PARA CONTINUAR A HISTORIA ABROAMOVICH, Fanny. Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices. Sã o Paulo, Ed. Scipione, 1997. KRAMER, Sonia; LEITE, Maria Isabel (orgs). Infâ ncia: Fios e Desafios da Pesquisa. Campinas, SP. Série Práticas Pedagógicas. Vá rios autores. Ed. Papirus, 1996. LOBATO, Monteiro. A Reforma da Natureza. Sã o Paulo. 38º Ed. Brasiliense, 1994. _____. Caçadas de Pedrinho. Sã o Paulo. Globo, 2003. _____. Histórias de Tia Nastácia. Sã o Paulo, Ed. Brasiliense, 1994. SAINT-EXUPERY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro. 48ª ed. Agir, 2002. SOUZA, Ila Maria Silva de; MELLO, Lucré cia Stringheta. Currículo na Educação Infantil. Cuiabá . Ed. UFMT, 2008. TEBEROSKY, Ana. Aprendendo a Escrever. Sã o Paulo, 3ª ed. Ed. Atica, 1997. É POSSÍVEL APRENDER A TRATAR A INFORMAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL? Luciani Gallo O tratamento da informaçã o era considerado antes adequado apenas ao ensino superior. No entanto, algumas experiê ncias vê m sendo realizadas por professores, com sucesso, na educaçã o infantil. Ao percorrer a histó ria, conseguimos perceber que há algumas dé cadas nã o tın ́ hamos o volume de informaçã o que temos hoje. Os meios utilizados eram limitados à televisã o, ao rá dio e a alguns materiais impressos, e poucas pessoas tinham acesso a eles. Com o avanço tecnoló gico e a quantidade de conteú do originado pelos seus recursos, tornou-se necessá rio acompanhar a veracidade das informaçõ es geradas e publicadas. Nesse contexto, a á rea de conhecimento que cuidava do processo de coletar, organizar, interpretar e publicar os dados era apenas a Estatıśtica. A Estatı́stica sempre foi um ramo da Matemá tica Aplicada, responsá vel por trabalhar essas informaçõ es, apresentando mé dias, porcentagens, tabelas, grá ficos, etc. De origem latina, a palavra Estatıśtica deriva da palavra status. Embora a palavra nã o existisse 3.000 anos a.C., já se faziam censos na Babilô nia, na China e no Egito, os estadistas utilizavam a estatıśtica como verdadeira ferramenta administrativa (COSTA, 2005). 146 E POSSIVEL APRENDER A TRATAR A INFORMAÇAO NA EDUCAÇAO INFANTIL? Destacou-se na Inglaterra, no sé culo XVII, a partir das tá buas de mortalidade, a dita Aritmé tica Polıt́ica, de John Graunt. Seu trabalho consistiu de exaustivas aná lises de nascimentos e mortes. Foi somente por volta da metade do sé culo XVIII que a palavra Estatıśtica foi mencionada pela primeira vez no meio acadê mico, pelo alemã o Gottfried Achenwall (COSTA, 2005). A partir de estudos acadê micos, a estatıśtica passa a contribuir com a necessidade de investigar os fenô menos sociais, polıt́icos, econô micos, financeiros e fortalece como mé todo auxiliar no estudo desses fenô menos. A abordagem do tema em livros didá ticos na educaçã o era sugerida apenas em livros do ensino mé dio e superior. Depois de 1997, a estatıśtica, també m chamada de Tratamento da Informaçã o, é incluıd ́ a no currıćulo nã o só do Brasil, mas també m em outros paıśes como mais um conteú do a ser desenvolvido no ensino da Matemá tica. A partir daı́, o Brasil publica os Parâ metros Curriculares Nacionais, PCN, que sugerem ao professor a abordagem do tema nos anos iniciais. Com isso, pretende-se que o educando possa utilizar as diferentes linguagens para interpretar os fenô menos e usufruir da pesquisa, tornando-se parte dela. O Tratamento da Informaçã o passou a ser mais evidente quando o Ministé rio da Educaçã o e Cultura (MEC) divulgou, em 1999, os crité rios de avaliaçã o do livro didá tico, sugerindo a inclusã o do tema a ser trabalhado pelos professores na Matemá tica. Seguindo as orientaçõ es do MEC, as mudanças foram realizadas em livros didá ticos a partir da 1ª sé rie, ou do atual 2º ano . Dessa forma, os PCN orientam a abordagem da estatıśtica a cada ciclo. Como exemplo, no 1º ciclo, ele sugere que, ao trabalhar as informaçõ es, o professor incentive os alunos a fazerem perguntas, estabeleça relaçõ es causais e construa justificativas junto com eles. A funçã o do professor nessa etapa Luciani Gallo 147 é desenvolver no aluno o espıŕito de investigaçã o. Nesse ciclo, o objetivo nã o é apenas o de ler e interpretar grá ficos, mas tornar-se capaz de descrever e interpretar sua realidade, usando conhecimentos matemá ticos. Certamente essa inclusã o colocou à prova, mais uma vez, a competê ncia do professor. Ele precisa, necessariamente, se apropriar do conteú do e desenvolvê -lo da forma mais compreensıv́el possıv́el. As leituras de grá ficos e tabelas sã o facilmente compreendidas e desenvolvidas pelo professor, mas, quando essa abordagem precisa ser entendida pelos alunos, torna-se necessá rio um estudo maior. A formaçã o continuada possibilita o desenvolvimento da prá tica pedagó gica dos professores. Trata-se de uma prá tica necessá ria na escola. Nos encontros de formaçã o, professores tê m a oportunidade de discutir situaçõ es de aprendizagem e esclarecer dú vidas relacionadas ao tema em estudo. Ao participar da formaçã o Pró -Letramento em Matemá tica , o estudo do fascıćulo 4 aborda o tema Tratamento da Informaçã o. Um material rico em informaçõ es e repleto de sugestõ es para o trabalho com o tema. Nessa formaçã o, uma das atividades do estudo sugeria que o professor praticasse o exemplo em sala de aula. No exemplo, crianças fariam uma coleta de dados prá tica, utilizando caixinhas de fó sforo para escolher as variá veis da pesquisa. 11 Como o exemplo destinava-se ao trabalho com crianças alfabetizadas, surge, entã o, a dú vida: como desenvolver a atividade na educaçã o infantil? 11 O programa é realizado pelo MEC, com a parceria de universidades que integram a Rede Nacional de Formaçã o Continuada e com a adesã o dos estados e municıp ́ ios. Podem participar todos os professores que estejam em exercıćio nos anos iniciais do ensino fundamental das escolas pú blicas. 148 E POSSIVEL APRENDER A TRATAR A INFORMAÇAO NA EDUCAÇAO INFANTIL? A partir do desafio lançado na formaçã o, procurou-se desenvolver uma experiê ncia com os alunos do pré I da educaçã o infantil. Uma proposta ousada que buscou demonstrar como a noçã o de estatıśtica é intuitiva, ou seja, até os pequenos conseguem perceber a noçã o do conteú do a partir da sua intuiçã o de quantidade. Pelo fato de o tema nã o constar como parâ metro nos Referenciais da Educaçã o Infantil, exigiu um pouco mais de estudo e preparaçã o, principalmente pelo fato de nã o ter conhecimento da abordagem nos cursos de Pedagogia, nos quais os professores deveriam ser mais preparados. A experiê ncia desenvolveu-se valorizando, acima de tudo, o aspecto lú dico, pois alunos aprendiam se divertindo. No primeiro momento, conversamos muito sobre os tipos de brincadeiras, como brincamos, quando brincamos, por que é gostoso brincar. Com a mesa preparada, apresentei cada ficha com o desenho da brincadeira aos alunos e entreguei a cada um uma caixinha, perguntando: “Qual dessas brincadeiras é a sua favorita?”. Pedi que cada aluno colocasse a caixinha de fó sforo em cima da mesa sobre a imagem da brincadeira que mais gostava de brincar. Nesse momento, trabalhamos a coleta de dados. Depois de realizada a primeira coleta, foi que os demais alunos compreenderam o objetivo da atividade. Entã o houve muita interaçã o. Uns diziam para os outros que gostavam de carrinho, outros, de bicicleta, as meninas, de boneca, entre outros. Apó s o momento da coleta, trabalhamos os nú meros naturais realizando a contagem de cada brincadeira votada por eles. Na sequê ncia, trabalhei a leitura e a interpretaçã o dos resultados, com questionamentos como: qual a brincadeira mais votada? Por que tem mais brincadeira de menino que de menina? Todos tê m esses brinquedos em casa? Por que o piã o nã o foi escolhido? Foi bom escolher a brincadeira? Luciani Gallo 149 O ú ltimo momento da experiê ncia foi o de registro da aprendizagem. Elaborei uma tabela com as imagens das brincadeiras e pedi a todos que pintassem os quadradinhos de acordo com as quantidades de alunos que preferiam aquela brincadeira. O resultado foi um grá fico de barras. O desafio foi iné dito na educaçã o infantil da minha cidade. A partir de um desafio de formaçã o continuada, consegui desenvolver uma atividade nã o contemplada nos RCNEI12. Ao voltar no momento de formaçã o e interagir com colegas sobre a experiê ncia realizada, muitas outras ideias surgiram e outros companheiros resolveram també m realizar a experiê ncia. Nossa tutora de formaçã o, formada em Matemá tica pela UNEMAT, explica que trabalhar o Tratamento da Informaçã o desde a educaçã o infantil implica apresentar aos nossos alunos um leque de possibilidades e leituras de mundo que favorecem o Letramento em Matemá tica, assim como abordado no curso, principalmente quando se é vivenciada a estrutura da pesquisa. Acrescenta ainda que o tema pode ser trabalhado do pré ao ensino superior, o que vai mudar é apenas o nıv́el de dificuldade e os conteú dos (ACLM, 28/10/11). O desenvolvimento da atividade foi de extrema importâ ncia para os alunos na interaçã o entre eles e o aprendizado. Viver essa experiê ncia, para mim, contribuiu muito na prá tica pedagó gica, pois percebo que meu olhar em relaçã o à Matemá tica ampliou-se. Percebo que outros temas nã o relacionados aos RCNEI podem e devem ser adaptados na educaçã o infantil, desde que se consiga uma abordagem que respeite o desenvolvimento cognitivo dos alunos. 12 Referenciais Curriculares Nacionais para a Educaçã o Infantil. 150 E POSSIVEL APRENDER A TRATAR A INFORMAÇAO NA EDUCAÇAO INFANTIL? REFERENCIAS BRASIL. Secretaria de Educaçã o Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: matemática. Secretaria de Educaçã o Fundamental. – Brasıĺia: MEC/SEF, 1997. v.04. COSTA, N. M. L. da. Formaçã o continuada de professores: uma experiê ncia de trabalho colaborativo com matemá tica e tecnologia. In: NACARATO, A. M.; PAIVA, M. A. V. (org.). A formação do professor que ensina matemática: perspectivas e pesquisas. Belo Horizonte: Autê ntica, 2005. 240 p. PROJETO MUSICALIZAÇÃO NA ESCOLA Maria Angela Fabrini Gaspar A música é o meio mais poderoso do que qualquer outro, porque o ritmo e a harmonia têm sua sede na alma. Ela enriquece essa última, conferelhe a graça e ilumina aquele que recebe uma verdadeira educação. (Platão) Meu interesse pela educaçã o musical surgiu por volta de 2005, quando fui convidada para trabalhar no Projeto de Erradicaçã o do Trabalho Infantil (PETI), no municı́pio de Juın ́ a, o qual visava à elaboraçã o de um coral infantil. Durante esse perıo ́ do, pelo contato com as dificuldades de algumas das crianças participantes, como concentraçã o, aprendizado, interaçã o, timidez e ainda agressividade, comecei a pesquisar sobre a relaçã o entre a educaçã o musical e o desenvolvimento infantil e como poderia contribuir para a integraçã o dessas crianças com a escola e a sociedade. Foi com esse propó sito que comecei analisando alguns artigos, nos quais os pesquisadores referenciavam Vygotsky e suas teorias sobre interaçã o e aprendizagem. A partir desses estudos, busquei colocar em prá tica o meu conhecimento e experiê ncia na á rea de mú sica, observando o comportamento das crianças durante os quatro anos em que estivemos juntas. 152 PROJETO MUSICALIZAÇAO NA ESCOLA Em 2009, já atuando na escola pú blica, encontrei-me com essas crianças que eu havia me relacionado no projeto nos anos anteriores, e pude continuar minhas observaçõ es, incluindo a mú sica també m como forma de interaçã o nas aulas de Inglê s. O ponto de partida dessas reflexõ es encontrou grande valor na teoria vygotskyana, no processo de interaçã o e aprendizagem e, como educadora, à s intervençõ es pedagó gicas e ao ensino na construçã o do conhecimento. Percebendo que, na sociedade atual, principalmente entre jovens e adolescentes, há grande falta de objetivos que os faça caminhar para um futuro melhor, acredito que um dos desafios da escola é colaborar com essa construçã o. Foi por meio da convicçã o na formaçã o de indivıd ́ uos pensantes, colaboradores e ativos que apresentei esse projeto de musicalizaçã o acoplado ao projeto maior da fanfarra, desenvolvido no ensino fundamental, na Escola Estadual Ana Né ri . O que se buscou com essa junçã o, alé m dos conhecimentos instrumentais, era que os alunos pudessem adquirir conhecimentos histó ricos a respeito da evoluçã o e diversidade da mú sica nas sociedades, para que seus efeitos pudessem se tornar mais eficientes no instrumental e influenciassem no meio social, contribuindo para a aquisiçã o de conhecimento dos alunos. Os jovens que fazem parte desta comunidade escolar possuem, em sua rotina, momentos conflitantes opostos, ou seja, estã o ociosos, ou estã o ocupados demais com tarefas para as quais ainda nã o possuem maturidade emocional suficiente para cumprir. Seus pais, envolvidos com o trabalho, frequentemente acabam transferindo, mesmo que nã o intencionalmente, responsabilidades, as quais esses adolescentes ainda nã o estã o preparados para assumir. Os alunos sã o jovens e adolescentes, na sua maioria, sem condiçõ es financeiras para investir em atividades que venham a distanciá -los da ociosidade, da violê ncia, das drogas e do vandalismo. Maria Angela Fabrini Gaspar 153 Assim, pensei no que poderia fazer para ajudá -los a iniciarem uma atividade que viesse contribuir para a sua formaçã o e colaborar para a sua integraçã o social, cultural e artıśtica. Algo que despertasse neles, de forma pedagó gica e educativa, a necessidade de resgatar a sensibilidade frente a tantos problemas sociais que precisamos enfrentar para que possamos, juntos, construir um mundo melhor. A execuçã o desse projeto buscou estimular a sensibilidade dos alunos pela mú sica e desenvolver a cada momento o poder do senso crıt́ico, permitindo a eles tomarem decisõ es conscientes para uma vida com mais dignidade e respeito para com o mundo onde vivemos. A MUSICA COMO INSTRUMENTO DE DESENVOLVIMENTO E CRIAÇAO A mú sica é fundamental para o desenvolvimento nã o só infantil, mas també m para os adolescentes, jovens e adultos. E por meio da mú sica que os adolescentes elaboram seus conflitos, apropriam-se do mundo onde vivem, desenvolvem a criatividade e socializam-se. Pela saú de mental das crianças e dos futuros adultos, precisamos resgatar um tempo e um espaço para trabalharmos a mú sica e seus instrumentos musicais. Para alguns teó ricos, a mú sica incita a criatividade, fomenta a memó ria e estimula a inteligê ncia, o que ocorre “tanto no domın ́ io do cé rebro-racional (neocó rtex) quanto do cé rebro-emocional e do cé rebro-sentimental (sistema lım ́ bico), todos constitutivos do có rtex, embora exerçam funçõ es diferentes” (SEKEFF, 2007). Vygotsky (1929 ‒ 2000) nos explica que as funçõ es psı́quicas superiores incluem: a sensaçã o, a percepçã o, a atençã o, a memó ria e o pensamento no qual nos baseamos para a linguagem. 154 PROJETO MUSICALIZAÇAO NA ESCOLA Em relaçã o a essa afirmaçã o, Oliveira (1992) nos explica: As concepçõ es de Vygotsky sobre o funcionamento do cé rebro humano fundamentam-se em sua ideia de que as funçõ es psicoló gicas superiores sã o construıd ́ as ao longo da histó ria social do homem. Na sua relaçã o com o mundo, mediada pelos instrumentos e sı́mbolos desenvolvidos culturalmente, o ser humano cria as formas de açã o que o distinguem de outros animais. (p. 24) A mú sica, ainda como ferramenta de educaçã o, é descrita por Gardner (1994) como um dos tipos de inteligê ncia, juntamente com a inteligê ncia ló gico-matemá tica, linguıśtica, cinesté sico-corporal, espacial, interpessoal e naturalista. Segundo Sekeff (2007, p. 169): a habilidade adquirida na escuta e no fazer musical amplia a capacidade de cogniçã o do educando, alimenta mudanças no seu potencial perceptivo, alé m do que o exercıćio da mú sica e do canto em conjunto possibilitam acessar aquela parte do cé rebro que funciona criativa e intuitivamente, favorecendo novas formas de sentir, pensar, de expressar. A palavra “mú sica” sugere diversas ideias relacionadas à s diferenças que caracterizam os inú meros estilos musicais, à é poca, aos motivos que levaram à sua criaçã o e aos aspectos sociais. Uma cançã o de ninar é sensivelmente diferente das batidas dos tambores do Olodum; o canto gregoriano difere, em tudo, do som de um grupo de rock ou axé , poré m, todas essas formas sonoras de expressã o sã o chamadas de mú sica. A mú sica altera o nosso estado de espıŕito. O corpo reage à s vibraçõ es dos sons, sã o despertadas emoçõ es que interferem no funcionamento de nosso organismo. Segundo McClellan Maria Angela Fabrini Gaspar 155 (1994), qualquer atividade musical, seja compor, executar um instrumento musical, ou mesmo ouvir uma mú sica, envolve os dois hemisfé rios cerebrais, equilibrando os dois aspectos mentais. Pode-se notar, nas palavras de Ruud (1990, p. 96), dos efeitos sociais da mú sica, da importâ ncia de se “considerar a mú sica como uma instituiçã o cultural, isto é , capaz de fazer a leitura dos contextos culturais que originam interconexõ es entre mú sica e identidade [...]”. Ao longo da histó ria, a mú sica esteve presente e influente nas sociedades. Tã o antiga quanto o homem, a mú sica primitiva era usada para exteriorizaçã o de alegria, prazer, amor, dor, religiosidade e anseios da alma. O projeto almejou desenvolver a criatividade e a sociabilidade dos alunos e també m despertar interesse e conhecimento pela mú sica e sua diversidade; expandir a sensibilidade; descobrir novos talentos musicais; trabalhar a pluralidade cultural; desenvolver a sensibilidade ao ritmo; aumentar a percepçã o auditiva, a coordenaçã o e a memó ria, apresentar diversos ritmos musicais, bem como apreciá -los e identificá los, estimulando a linguagem, a respiraçã o correta, o enriquecimento de vocabulá rio. Oportunizar, ainda, o desenvolvimento da concentraçã o, atençã o, criatividade e cooperaçã o. Para tanto, foram usadas diversas formas de conhecimento em sala de aula: alfabetizaçã o musical, leitura de partitura, jogos e dinâ micas direcionados ao desenvolvimento musical. As aulas foram ministradas de forma expositiva e acompanhadas de projeçã o de clipes musicais, desenhos animados musicais, filmes educativos musicais, com auxıĺio de projetores. Toda metodologia foi usada como o auxıĺio no processo de fixaçã o e na incorporaçã o dos conhecimentos do mundo musical pelos alunos. No ú ltimo semestre de 2009, fui convidada a formar um coral natalino com os alunos. A ideia que já havia sido cogitada em outras é pocas veio colaborar para a elaboraçã o de um 156 PROJETO MUSICALIZAÇAO NA ESCOLA projeto que já estava sendo planejado a partir da Lei 11.769/08, que fala da aplicaçã o da mú sica como disciplina independente da á rea de Educaçã o Artıśtica. Aproveitando as impressõ es da Lei, buscou-se, a partir de entã o, desenvolver o projeto de musicalizaçã o acoplado ao Projeto Fanfarra, já existente na escola. As aulas foram desenvolvidas, num primeiro momento, com os alunos do 2º e 3º ciclos, sendo expandidas posteriormente para todos os ciclos da escola. Em 2009, todos os alunos do ensino fundamental participaram dos ensaios natalinos, produzindo um grande alvoroço. Antes dos ensaios, havia exposiçã o de clipes de corais de outras regiõ es, o que deixou os alunos muito entusiasmados em fazer algo diferente do cotidiano. Eles apreciavam ó pera, rock, samba e outros ritmos que nã o estavam habituados a ouvir e gostavam muito. As festas natalinas chegaram, enfim, e o coral dos alunos obteve um sucesso incrıv́el. Os alunos participantes eram crianças da periferia e nunca haviam conhecido tal deslumbramento. Com todo esse entusiasmo, terminamos o ano de 2009, voltando no inıćio do ano letivo de 2010 para aplicar o projeto na ın ́ tegra. No inıćio, os alunos da manhã iam para as aulas de mú sica à tarde, e vice-versa, mantendo-os grande parte do dia na escola e com menos tempo ocioso. As aulas tinham duraçã o de uma hora para cada turma, sendo atendidas quatro turmas no perıo ́ do vespertino e trê s no perıo ́ do matutino, distribuıd ́ as de segunda a sexta-feira, com carga horá ria de 20 horas semanais. Com o tempo, as aulas passaram de uma sala de aula normal a uma sala reformada e pintada, especificamente, para ser uma sala de mú sica, cedida pela direçã o. O conteú do das aulas foi elaborado para que esses alunos pudessem explorar o conhecimento sobre mú sica em diversos aspectos, como leitura musical (partitura), por meio de mé todo infantil, exposiçã o de clipes musicais com desenhos Maria Angela Fabrini Gaspar 157 apresentando mú sica erudita, ó pera, MPB e a mú sica em culturas diferentes. No princıp ́ io, o objetivo foi apresentar aos alunos a diversidade musical. A partir de entã o, pô de-se trazer o conhecimento de outros sons instrumentais e ritmos para que pudessem desenvolver seus gostos mais livremente. Em conjunto com a fanfarra, buscou-se colocar em prá tica toda a aquisiçã o obtida pelos alunos nas aulas de musicalizaçã o. Nossos ensaios da fanfarra eram duas vezes por semana, depois do encerramento das aulas vespertinas, e foram de grande repercussã o. A apresentaçã o da fanfarra foi outro momento especial, causando surpresa no desfile de 7 de setembro. Ao final do ano letivo, novamente foi elaborado o coral de despedida das turmas, com a participaçã o de todos os alunos da escola, outro momento inesquecıv́el daquele ano. A interaçã o das turmas aumentou, as crianças do ensino bá sico se tornaram desejosas pela participaçã o nas aulas de mú sica e faziam o possıv́el para estarem sempre por perto. As brigas, com o passar dos dias, se tornaram menos frequentes; os problemas relacionados com aprendizagem, interpretaçã o de textos e escrita foram amenizados, e quando havia problemas de indisciplina, logo eram resolvidos. Notadamente, grandes mudanças foram observadas. No ano de 2011, as aulas de musicalizaçã o se expandiram, aumentando o acesso dos alunos, acrescentando o ensino bá sico de 1º a 4º ano, montando um conteú do especial com desenhos musicais e mé todos mais adequados para a alfabetizaçã o musical. Houve completa mobilizaçã o da escola ao redor das aulas de mú sica, elevando a mú sica a objeto de interdisciplinaridade nas aulas de Portuguê s, Histó ria, Geografia, Inglê s e até Matemá tica. A partir daı,́ resolvemos fazer uma parceria dentro da escola, que foi bem aceita pelos professores. Todos se propuseram a desenvolver formas de abordar as suas disciplinas usando metodologias diferentes, apreciando a forma musical. 158 PROJETO MUSICALIZAÇAO NA ESCOLA Tenho que dizer que tal modo de aplicar a mú sica na escola tem efeito infinitamente pró spero. E tã o imensurá vel que nã o sei realmente explicar o quã o especial tem sido trabalhar com essas crianças e adolescentes. Só sei que, para mim, esse foi, sem dú vida, um dos maiores projetos da minha vida. REFERENCIAS GARDNER, Howard. Estruturas da mente: a teoria das inteligê ncias mú ltiplas. Porto Alegre: Artes Mé dicas, 1994. McCLELLAN, Randall. O poder terapêutico da música. Traduçã o: Tomá s Rosa Bueno. Sã o Paulo: Siciliano, 1994. OLIVEIRA, M. K. de. Teorias psicogenéticas em discussão. 5 ed. Sã o Paulo: Summus, 1992. RUUD, Even. Caminhos da musicoterapia. Sã o Paulo: Summus editorial, 1990. SEKEFF, Maria de Lourdes. Da música, seus usos e recursos. 2 ed. rev. e ampliada. Sã o Paulo: Editora UNESP, 2007. VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente. Sã o Paulo: Martins Fontes, 1989. O ACÚMULO DE LIXO NO PLANETA Maria Elizabete e Silva Joselaine Oliveira Santos O lixo vem se tornando um problema de cunho mundial. Em toda a histó ria da humanidade nunca se ouviu falar tanto em lixo e na necessidade de se preservar o meio ambiente como atualmente. Nã o se sabe o que fazer com tanto lixo produzido. Mas o que temos feito com relaçã o a isso? Apesar de esse discurso ser tã o enfatizado, poucas açõ es sã o executadas de fato. Para tal constataçã o, basta olharmos à nossa volta e vermos que sacolas plá sticas, papé is, garrafas PET e de bebidas alcoó licas (vidros), dentre outros, sã o descartados em locais impró prios, como nas ruas e em rios. Com o crescimento populacional e, na mesma medida, a necessidade de utilizar os recursos extraıd ́ os da natureza para obtermos lazer, moradia e bem-estar, a produçã o de bens de consumo passou a ocorrer em larga escala. Diariamente, há um grande aumento na produçã o de resıd ́ uos, que passam a serem considerados inú teis e indesejá veis por nó s e, consequentemente, descartados, desencadeando, assim, um dos maiores problemas enfrentados pela sociedade da atualidade: a produçã o desenfreada de lixo. Você já parou para pensar na quantidade de lixo que produz? O que tem feito com o lixo de cada dia? Se fô ssemos analisar nossa produçã o diá ria, certamente irı́amos ficar chocados. Estamos tã o habituados a produzir esses resıd ́ uos 160 O ACUMULO DE LIXO NO PLANETA que nã o nos damos conta da intensidade da nossa produçã o. Podemos afirmar que temos feito do nosso planeta um verdadeiro depó sito de lixo. Boa parte da populaçã o nã o se mostra preocupada se haverá futuramente espaço para acumular tantos resıd ́ uos. Alé m de reduzir a quantidade de lixo produzido, temos que analisar com cuidado o destino que daremos a ele. Somos nó s os principais responsá veis por esse problema social e ambiental. O lixo que uma naçã o produz está ligado ao modo de vida de seu povo. Pesquisas realizadas afirmam que um cidadã o norte-americano produz, em mé dia, cerca de 3 kg de resıd ́ uos por dia. Os Estados Unidos sã o considerados o paıś que mais gera lixo no mundo, cerca de 200 milhõ es de toneladas por ano. O seu desenvolvimento e renda per capita sã o maiores e na mesma vertente, o poder de consumo, gerando assim mais resıd ́ uos. Cidades e paıśes industrializados produzem mais lixo inorgâ nico, enquanto naçõ es em desenvolvimento e á reas rurais produzem mais lixo de origem orgâ nica. Os norte-americanos geram mais resı́ d uos inorgâ nicos, enquanto no Brasil mais da metade do lixo é composta de maté ria orgâ nica, estando associado ao desperdıćio de alimentos (SILVA, 2009). De acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Bá sico (PNSB), elaborados pelo IBGE em 2000, cada brasileiro produz de 0,5 a 1 kg de lixo por dia. Considerando o nú mero de habitantes, de 190 milhõ es, é muito lixo, aproximadamente 88 milhõ es de toneladas anuais. Com tantos desperdıćios de alimentos, há aproximadamente 16 milhõ es de pessoas no Brasil em situaçã o de misé ria, inclusive passando fome (IBGE, 2000). Esses resıd ́ uos só lidos, de acordo com sua origem e produçã o, podem ser classificados em diferentes tipos. Falaremos dos principais, que sã o: domiciliar, comercial, industrial e hospitalar. O lixo domiciliar é aquele produzido Maria Elizabete e Silva / Joselaine Oliveira Santos 161 nas residê ncias. Temos como exemplo restos alimentares, sacolas plá sticas, garrafas descartá veis, entre outros. O lixo comercial é gerado pelo setor de comé rcio, como lojas, supermercados e bancos. Sã o mais comuns os papé is e plá sticos. O lixo produzido nas indú strias é bastante variado, dependendo da natureza industrial, podem ser ó leos, resıd ́ uos alcalinos ou á cidos, madeiras, borrachas, metais e outros. O lixo hospitalar resulta de materiais usados no tratamento de saú de em hospitais, postos de saú de, clın ́ icas, laborató rios e farmá cias. Sã o representados por seringas, agulhas, bandagens, algodã o, sangue e medicamentos com prazos de validade vencidos, entre outros. De acordo com a sua composiçã o quım ́ ica, os resıd ́ uos podem ser orgâ nico e inorgâ nico. O lixo orgâ nico é representado por restos de comidas, frutas, verduras e restos de plantas, como folhas, galhos, pedaços de madeira. Esses sã o de decomposiçã o relativamente rá pida. Já o lixo inorgâ nico pode-se dizer que é o mais prejudicial ao meio ambiente, pois leva anos para ser decomposto. Sã o resultantes de produtos industrializados, como plá sticos, vidros, papé is, metais, entre outros. A ressalva para esses é que podem ser reciclados ou reutilizados. O conhecimento sobre o tipo de lixo é de extrema importâ ncia, pois disso depende a sua classificaçã o e destinaçã o final para o tratamento. Existem vá rias formas de se tratar o lixo, entre as quais: compostagem, incineraçã o, aterro sanitá rio e reciclagem. A compostagem é usada para tratar resıd ́ uos de origem orgâ nica, como restos de vegetal e alimentos em geral, que sã o transformados em adubo para agricultura e jardinagem, ocasionando menos riscos ambientais. A compostagem produz o chorume, que contamina a á gua, se nã o tratado. A incineraçã o é usada, principalmente, na queima do lixo hospitalar. Esse processo apresenta custos elevados e há a necessidade de rigoroso controle contra a emissã o de gases poluentes. Poré m, com a incineraçã o eliminando os pató genos presentes no lixo hospitalar, há uma reduçã o de 162 O ACUMULO DE LIXO NO PLANETA 70% da massa e 90% do volume dos resıd ́ uos, gerando uma economia de espaço nos aterros. O aterro sanitá rio é a forma mais usada para depositar o lixo. Nesse tipo de tratamento, deve-se dispor o lixo em camadas cobertas de terra, onde sã o construıd ́ os sistemas de drenagens para os gases tó xicos. O chorume també m deve ser tratado. As á reas destinadas aos aterros sanitá rios tê m vida ú til reduzida, e novas á reas precisam ser abertas, causando novos impactos ambientais e econô micos. Sabe-se que o espaço urbano encontra-se limitado devido ao grande nú mero de habitantes, sendo assim, os aterros estã o sendo instalados muito longe, o que eleva o custo. Boa parte das cidades brasileiras tem apenas lixõ es a cé u aberto. Entre os problemas causados por esses estã o: a poluiçã o do solo, da á gua, do ar e visual; o odor fé tido que exalam; há també m os problemas relacionados à saú de pú blica, pois esses lixõ es sã o locais de disseminaçã o de diversos vetores de doenças, como ratos, moscas e baratas. Uma alternativa para minimizar o acú mulo de lixo no planeta poderia ser a reciclagem, associada à coleta seletiva e aos 5 R's (Repensar, Reduzir, Reutilizar, Reciclar, Recusar). A reciclagem pode ser definida como a transformaçã o de algo, considerado lixo, em maté ria-prima para a criaçã o de um novo produto ou objeto. Jogar fora apenas coisas que realmente nã o servem mais seria uma das possıv́eis soluçõ es para diminuir a produçã o de lixo. A maior parte do que jogamos fora todos os dias ainda pode ter serventia. Vidros, latas de alumın ́ io, papé is e embalagens plá sticas podem ser reaproveitados ou reciclados. Se os reutilizarmos de alguma forma, evitaremos uma possıv́el catá strofe ecoló gica devido ao acú mulo de tanto lixo em locais impró prios. Isso somente será possıv́el por meio da sensibilizaçã o, nã o apenas por parte das autoridades, mas, sobretudo, por parte da populaçã o e dos ó rgã os responsá veis pela preser- Maria Elizabete e Silva / Joselaine Oliveira Santos 163 vaçã o ambiental, dando destinaçã o adequada a esses resıd ́ uos só lidos e fazendo valer a aplicabilidade dos 5 R's: repensar, reduzir, reutilizar, reciclar, recusar. Sendo assim, a fó rmula mais prá tica de se resolver a aplicabilidade seria se a sociedade, de forma geral, pensasse em polıt́icas pú blicas voltadas para um consumo sustentá vel. Pensar nã o apenas na destinaçã o adequada para o lixo, mas, principalmente, em poupar os recursos naturais. Por meio do reaproveitamento de materiais, como plá stico, vidro, borracha e papel, estarıámos colaborando diretamente para a preservaçã o de importantes elementos da natureza, como, por exemplo, as á rvores, que servem de maté ria-prima para fabricaçã o de papé is. A reciclagem é uma das alternativas considerá veis para solucionarmos a questã o do acú mulo de lixo no mundo. Poré m, nã o pode ser vista como ú nica. Deve ser levada em consideraçã o a mudança dos há bitos por parte da sociedade, com atitudes que levem em consideraçã o o desenvolvimento de preservaçã o e conservaçã o da natureza por meio de atitudes, como repensar seus há bitos de consumo; reduzir o consumo e diminuir a geraçã o e o descarte de resıd ́ uos só lidos; reutilizar plá sticos, vidros e papé is para aumentar a vida ú til de cada produto; reciclar para transformar o que seria descartado em um novo produto e recusar produtos que agridam a saú de e o ambiente. Essas atitudes podem levar a sociedade a tomar medidas mais abrangentes, com açõ es que minimizem a quantidade de resıd ́ uos na pró pria fonte geradora. Devemos ter em mente que esse processo educativo é permanente e contın ́ uo. Ele visa a desenvolver uma postura de maior harmonia e respeito com a natureza e entre os homens, propiciando conhecimentos e o exercıćio da cidadania para uma atuaçã o crıt́ica e consciente dos indivıd ́ uos, assumindo assim uma prá tica cotidiana que melhore nossa qualidade de vida e a do nosso planeta. 164 O ACUMULO DE LIXO NO PLANETA REFERENCIAS IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatıśtica. Censo Demográfico 2000. www.ibge.gov.br PESQUISA nacional de saneamento básico 2000. Rio de Janeiro: IBGE, 2002. 431 p. Disponıv́el em: <http://www.ibge.gov.br/ home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/default. shtm>. Acesso em: jan. 2012. SILVA, Nathieli K. Takemori; SILVA, Sandro Menezes. Educação Ambiental e Cidadania. Curitiba: IESDE Brasil S. A., 2009. O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUÍNA MT Demerval Pires Gaspar Na sociedade do conhecimento e da tecnologia, o fá cil acesso a informaçõ es elaboradas de forma dinâ mica e rá pida faz com que grande parte dos conteú dos apresentados em sala se torne pouco interessante. Inserido nessa nova forma de se pensar o mundo, o aluno passa a valorizar essa maneira significativa de aprendizagem e construçã o de conhecimento em detrimento de aprendizagens mecâ nicas, tã o comuns aos tradicionais processos de ensino. Nesse contexto, é compreensıv ́ el que a busca dos professores por estraté gias que os possibilitem desenvolver em seus alunos habilidades e competê ncias compatıv́eis à s exigê ncias educacionais venha se tornando uma tarefa cada vez mais complexa. Assim, pensar em atividades que integrem o aluno ao mundo escolar com o dinamismo do conhecimento atual exige um posicionamento bastante reflexivo sobre o desenvolvimento de té cnicas criativas de ensino. Nessa perspectiva, ponderar sobre a possibilidade de se apreciar experiê ncias educativas que, de alguma maneira, se mostraram favorá veis ao envolvimento dos alunos com o aprendizado pode ser considerado como um subsıd ́ io bastante interessante. 166 O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT Desse modo, por acreditar que esse tipo de observaçã o possa contribuir para que se reflita sobre estraté gias a serem adotadas em favor do ensino é que se apresenta este texto, que relata uma experiê ncia educacional. Um trabalho pedagó gico extraclasse, desenvolvido como projeto de pesquisa com os alunos da Escola Estadual Ana Neri, no municıp ́ io de Juın ́ a, MT. Seu objetivo, alé m de divulgar a possibilidade de se utilizar o trabalho cientı́fico como estraté gia educativa, o apresenta como instrumento de inclusã o social e de territorialidade. Territorialidade num sentido sinô nimo ao de pertencer à quilo que nos pertence, associando a realidade observada e compartilhada pelos alunos e sua comunidade aos conteú dos educacionais, cientıf́icos e escolares. Para tanto, descreve por meio de narrativa o percurso para sua realizaçã o, para que possa ser observado em suas diversas fases e adaptado de maneira a contribuir com outros trabalhos pedagó gicos. Dito de maneira mais ousada, para que possa servir como modelo à s novas intervençõ es. A ideia de realizar a pesquisa originou-se durante as aulas da disciplina de Geografia, cujo conteú do referia-se ao IDH, Indice de Desenvolvimento Humano, e aos aspectos que esse ın ́ dice observava ao classificar um determinado municı-́ pio. Ao se discutir a oferta de á gua tratada como uma das caracterıśticas observadas por esse ın ́ dice, constatou-se que grande parte dos alunos presentes e suas famıĺias nã o recebiam esse benefıćio, servindo-se das á guas de poços e cisternas para as mais variadas tarefas e usos, situando-se, assim, na contramã o dos objetivos educacionais expostos por aquele conteú do, a saú de e a prevençã o de doenças. Como os referidos alunos e suas famıĺias, a deficiê ncia na oferta de á gua tratada faz com que a utilizaçã o de á gua proveniente de poços e cisternas seja uma prá tica comum em nosso paıś. Sua aparê ncia, geralmente lım ́ pida, induz as populaçõ es a Demerval Pires Gaspar 167 que a considerem como pura e pró pria para seu consumo. Poré m, esse juıźo com base em sua aparê ncia é equivocado e os expõ e a grandes riscos. A grande maioria dessas fontes está sujeita a algum tipo de contaminaçã o, principalmente quando em perı́metro urbano, onde, em virtude de algumas condiçõ es, como o tamanho reduzido dos terrenos, sua localizaçã o é frequentemente bem pró xima das fossas, consequentemente, altamente contaminadas por coliformes fecais. As fossas, alternativa para a coleta e armazenamento dos esgotos domé sticos em municıp ́ ios e regiõ es que nã o oferecem um sistema de coleta e tratamento desses esgotos, deixam que seus fluidos se infiltrem no solo até atingirem os poços, contaminando-os. Dessa forma, as fontes de á gua acabam contaminadas pelos dejetos de seus pró prios usuá rios. A partir da continuidade das discussõ es e interaçõ es com os alunos, nas aulas posteriores percebeu-se que, alé m dos alunos e seus familiares, um elevado nú mero de famıĺias da comunidade, da mesma forma, utilizava-se das á guas de poços e cisternas sem nenhum tratamento, ou, quando o faziam, era de maneira pouco eficiente. Tal observaçã o exigiu reflexõ es. De alguma maneira, essa situaçã o deveria ser, no mın ́ imo, melhor discutida. A melhor alternativa ao alcance foi capacitar os alunos a reproduzirem essas informaçõ es. Com esse pensamento, foi inserida, sob a forma de projeto de pesquisa, uma atividade pedagó gica aos alunos do 9º ano do ensino fundamental, tendo por objetivo investigar a qualidade da á gua consumida pela comunidade. Os trabalhos desenvolvidos como conteú dos adicionais à disciplina de Geografia ocuparam parcialmente o horá rio das aulas, sendo reservados trinta minutos de cada aula para sua execuçã o. Muito bem aceita pela maioria dos alunos, a açã o se 168 O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT desenvolveu dentro das metas e objetivos estabelecidos no projeto, elencados mais adiante no texto. A açã o nã o seria possıv́el se nã o houvesse, por parte dos alunos e da direçã o da escola, aceitaçã o e colaboraçã o. As pesquisas e discussõ es trouxeram ao ambiente escolar um clima de reflexã o, no qual, temas como saú de, princı́pios bá sicos de higiene e responsabilidade com o bem-estar comum passaram a ser pensados de maneira crı́tica, nã o somente entre os alunos participantes do projeto, mas pela comunidade escolar. Com o desenrolar das pesquisas e a colaboraçã o da Vigilâ ncia Sanitá ria do municıp ́ io na realizaçã o da coleta e envio de amostras colhidas dos poços para aná lise, foram obtidos resultados laboratoriais que indicavam os altos ın ́ dices de contaminaçã o dessas á guas. Isso, somado ao grande nú mero de seus usuá rios, confirmou o presumido risco a que grande parte da comunidade estava exposta. A á gua passou a ser tema de discussõ es na escola. Se nos vá rios pontos em que foram coletadas amostras a á gua nã o é pró pria para consumo, nã o estaria, a á gua da escola, també m contaminada? Filtros resolvem o problema? Como purificar a á gua que eu bebo? A potabilidade da á gua da instituiçã o foi uma das primeiras preocupaçõ es. Sensıv́el ao problema, a direçã o da escola fez com que a pureza da á gua fosse garantida. Os alunos participantes da pesquisa, mediante a confirmaçã o dos resultados, se imbuıŕam de segurança para discutir, dentro e fora do ambiente escolar, questõ es relacionadas ao problema da contaminaçã o da á gua dos poços e cisternas, suas causas e consequê ncias. As discussõ es ultrapassaram o â mbito de saú de. Reflexõ es a respeito da responsabilidade polıt́ica pela situaçã o; o direito à saú de; a impossibilidade financeira de boa parte da populaçã o adquirir aparelhos para purificaçã o da Demerval Pires Gaspar 169 á gua; a negligê ncia das instituiçõ es responsá veis em disponibilizar á gua tratada a todas as pessoas e a parcela de responsabilidade do eleitor para que essa situaçã o chegasse a esse ponto fizeram parte das argumentaçõ es. Tanto alunos como professores e demais funcioná rios da instituiçã o estavam em sintonia, talvez o tema estivesse vinculado a uma realidade comum, afinal, somos 70% á gua. O trabalho, premiado em primeiro lugar pela Feira de Ciê ncias do municıp ́ io, teve boa divulgaçã o, e as escolas de outros bairros passaram a observar o problema como uma realidade de grande parte da populaçã o do municıp ́ io. Mesmo assim, muito pouco ou quase nada tem sido feito para resolver essa situaçã o. Contudo, a possibilidade de que parte do alunado participante dessa açã o tenha desenvolvido uma visã o crı́tica a respeito do direito do indivıd ́ uo à garantia de necessidades bá sicas, como a á gua, já seria um ó timo resultado, pois é a partir do reconhecimento do problema que partem as soluçõ es. Seguem adiante o projeto de pesquisa, os resultados laboratoriais e das entrevistas, acompanhados de conclusõ es elaboradas pelos alunos a partir de suas aná lises. Projeto de pesquisa, desenvolvido na Escola Estadual Ana Neri, sobre a qualidade da água do bairro São José Operário. Justificativa: Em face da possibilidade de se trabalhar o tema meio ambiente junto aos alunos da 2ª e 3ª fases do 3º ciclo, na disciplina de Geografia, incluindo-os na trama social, pensou-se a execuçã o de um projeto didá tico que, por sua relevâ ncia social e prá tica, viesse a contribuir para o fortalecimento dos 170 O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT laços do aluno com sua comunidade. Uma vez que participar com a comunidade dos problemas e soluçõ es é exercer cidadania. Problemática: Sabe-se que o sistema de coleta e armazenamento de esgoto por meio de fossas é um dos maiores poluidores do lençol freá tico13, e també m que grande parte da comunidade do Bairro Sã o José Operá rio, principalmente a com menor poder aquisitivo, utiliza-se das á guas de poços ou cisternas. Sabe-se, ainda, que, por estarem pró ximas à s fossas, essas fontes de á gua correm sé rio risco de estarem altamente contaminadas. Desta forma, supõ e-se que os usuá rios dessas á guas expõ em sua saú de em risco devido a essa contaminaçã o, condiçã o agravada pela falta de acesso dessas populaçõ es ao sistema pú blico de á guas e esgotos, o que colabora para que se submetam compulsó ria e frequentemente a essa situaçã o de risco. Objetivos: Geral: Possibilitar aos alunos construir consciê ncia sobre questõ es vitais e importantes da comunidade em que se inserem e sobre o risco a que se submetem ao consumirem á gua nã o tratada. Específicos: Ÿ Envolver os alunos da instituiçã o com a realidade social em que estã o inseridos; 13 Reservas de á guas subterrâ neas, parcela hıd ́ rica localizada no subsolo. Demerval Pires Gaspar 171 Ÿ Despertar sentimentos de responsabilidade comuni- tá ria, para que os alunos participem ativamente dos problemas da comunidade; Ÿ Possibilitar que os alunos, por meio desta açã o, sejam percebidos por sua comunidade numa posiçã o de importâ ncia; Ÿ Aumentar-lhes a autoestima e confiança. Metodologia: Ÿ Iniciam-se os trabalhos com a conduçã o dos alunos à s pesquisas bibliográ ficas, a conteú dos sobre contaminaçã o, lençol freá tico, iniciaçã o à pesquisa de temas ligados à responsabilidade polıt́ica e social, como embasamento e preparaçã o das fases seguintes. Segue-se o trabalho com a escolha e redaçã o das perguntas a serem utilizadas nas entrevistas; Ÿ Realizaçã o das entrevistas para a obtençã o de dados; Ÿ Coleta, acompanhada pela Vigilâ ncia Sanitá ria, de amostras de á gua dos poços e cisternas para aná lise; Ÿ Em posse dos resultados laboratoriais, analisá -los e redigir os resultados e conclusõ es dos trabalhos; Ÿ Decidir sobre as estraté gias de divulgaçã o. A apresen- taçã o dos resultados, juntamente com alternativas de soluçã o para o problema, o uso de filtros, produtos quım ́ icos, tratamento té rmico, e outros à comunidade. Cronograma: Os trabalhos serã o desenvolvidos concomitantes ao conteú do destinado ao perı́odo letivo, culminando com o evento da feira de ciê ncias, momento em que os trabalhos, resultados de entrevistas, pesquisa e aná lise serã o expostos à 172 O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT sociedade, juntamente com as possıv́eis soluçõ es, como forma de contribuiçã o social dos alunos e da instituiçã o. Poré m, fica esclarecido que sua funçã o maior é o trabalho de esclarecimento e informaçã o em favor da populaçã o do Bairro Sã o José Operá rio, nas dependê ncias da Escola Estadual Ana Neri, pelos alunos participantes, membros ativos da comunidade. A apresentaçã o será voltada a alertar a comunidade do bairro em relaçã o aos problemas que a á gua contaminada de poços e cisternas pode significar para a saú de humana, e instruir possıv́eis soluçõ es que poderã o ser utilizadas na resoluçã o desses problemas. Ainda, terá como objetivo paralelo a notoriedade dos alunos em sua comunidade. Questionário sobre qualidade da água consumida no Bairro São José Operário: Este questioná rio, dirigido à s pessoas que residem no Bairro Sã o José Operá rio, teve por finalidades obter informaçõ es sobre o uso de á guas provenientes de poços e cisternas e discutir com os entrevistados a qualidade dessas á guas. 1) Você sabe o que é lençol freá tico? 2) Você sabe que o lençol freá tico no bairro é bastante superficial, o que aumenta o risco de contaminaçã o das á guas subterrâ neas? 3) Você sabe que os contaminadores dos lençó is freá ticos sã o lixõ es, cemité rios e, principalmente, os esgotos? 4) Em sua residê ncia, você utiliza á gua de poços ou cisternas? 5) Você sabia que, em pesquisas anteriores, constatou-se que a maioria dos poços do nosso bairro está com suas á guas contaminadas e que o maior responsá vel por essa contaminaçã o sã o as fossas? Demerval Pires Gaspar 173 6) Você sabe quais sã o os riscos e doenças relacionados à s á guas contaminadas? 7) Algué m em sua famıĺia já adoeceu por ingerir á gua contaminada? 8) A á gua de sua cisterna é tratada de alguma maneira? 9) Se sim, que tipo de tratamento utiliza? Se nã o, nã o utiliza por nã o ter acesso, ou nã o conhece esses mé todos? 10) Sente-se seguro(a) com esse tipo de tratamento? Resultados da pesquisa: Das sessenta entrevistas aplicadas no bairro Sã o José Operá rio a respeito do uso de á guas de poços e cisternas, obteve-se os seguintes percentuais: Ÿ 40% da populaçã o utiliza á gua de poços e cisternas; Ÿ 60% dos entrevistados sabem dos riscos de se consumir á gua contaminada; Ÿ 70% dos entrevistados sabe que fossas e esgotos sã o os maiores contaminadores das á guas subterrâ neas; Ÿ 30% já tiveram, em suas famı́lias, pessoas que adoeceram por utilizar á gua contaminada; Ÿ 80% utilizam algum tipo de tratamento com inten- çã o de purificar a á gua; Ÿ 99% dos tratamentos sã o considerados ineficientes. A aná lise laboratorial, executada pela Vigilâ ncia Sanitá ria em laborató rio oficial, constatou altıśsimos ın ́ dices de contaminaçã o em todas as amostras analisadas, com resultados dezenas de vezes superiores ao nıv́el má ximo de contaminaçã o. 174 O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT Análise e considerações sobre os resultados da pesquisa sobre a qualidade das águas utilizadas pela comunidade do Bairro São José Operário: Os resultados da pesquisa realizada com moradores do Bairro Sã o José Operá rio, somados aos resultados das aná lises laboratoriais das amostras de á gua retiradas dos poços, demonstraram que, devido a fatores como a impossibilidade do ó rgã o de fornecimento de á gua do municıp ́ io efetuar novas ligaçõ es à rede de á gua em nú mero necessá rio para atender a demanda da populaçã o por á gua tratada, ou, ainda, de fornecer essa á gua com uma regularidade adequada aos que já possuem esse benefı́cio, os membros dessa comunidade sentem-se “obrigados” a utilizar as á guas subterrâ neas para satisfazer suas necessidades. Em vista da prioridade que tem esse recurso em suas vidas, fazem-no, mesmo que cientes da contaminaçã o desses mananciais por fossas, já que a rede de esgotos també m nã o lhes é acessıv́el. Expõ em-se, entã o, compulsoriamente ao risco de contrair algum tipo de doença, proveniente dos dejetos humanos depositados em fossa, que, ao penetrarem o solo, contaminam as á guas do subsolo. E mesmo que, de alguma maneira, os indivıd ́ uos tratem essa á gua com a intençã o de purificá -la, essas açõ es nã o tê m sucesso em virtude da falta de informaçã o a esse respeito. Considerações: Muito alé m de um problema social, a constataçã o demonstra claramente o descaso das autoridades responsá veis com a saú de e a qualidade de vida das populaçõ es. Cabe-nos, entã o, capacitar, por intermé dio de informaçõ es e conhecimentos, essa comunidade sobre a forma mais adequada de encarar tã o perigosa realidade, de maneira que as açõ es, que venham a ser desenvolvidas pela instituiçã o, tenham como funçã o principal o esclarecimento em relaçã o aos problemas, Demerval Pires Gaspar 175 suas causas e possıv́eis soluçõ es. As escolas precisam urgentemente se comprometer com a transformaçã o social, o desvelamento de contradiçõ es, denunciando as condiçõ es em que elas pró prias se encontram, assim como a comunidade em que estã o inseridas. Eleger por objetivo a construçã o de pessoas crıt́icas e que militem em benefıćio e preservaçã o da vida, da natureza, da solidariedade, da responsabilidade social e da importâ ncia que cada pessoa tem para com nosso mundo. Sonhar com a democracia é nã o somente pensar nela, refletir como poderia ser, mas trabalhar no mundo e com ele para que possa ser realidade. REFERENCIAS CALLAI, Helena Copetti. O ensino da Geografia e a nova realidade. Boletim Gaúcho de Geografia, n. 24, 1998. FOUCAULT , Michael. Verdade e poder. In: FOUCAULT, M. Microfísica do Poder. 3.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. Disponı́vel em: <http://www.nodo50.org/insurgentes/ biblioteca/A_Microfisica_do_Poder_-Michel_Foulcault.pdf> Acesso em: Jan. de 2009. GADOTTI, M.; FREIRE, P.; GUIMARAES, S. Pedagogia: diá logo e conflito. 5. ed. Sã o Paulo: Cortez, 2000. LIBANEO, J. C. Organização e gestão escolar: teoria e prá tica. 4.ed. Goiâ nia: Editora Alternativa, 1994. VEIGA, I. P. (Org.). Projeto político-pedagógico da escola: uma construçã o possıv́el. 13. ed. Campinas: Papirus, 2001. 176 O PROJETO DESENVOLVIDO NA ESCOLA ESTADUAL ANA NERI – JUINA MT VYGOTSKY, L. S. A formaçã o social da mente. In: Interação entre aprendizado e desenvolvimento. 7. ed. Sã o Paulo: Martins Fontes, 2007. COLABORADORES Ana de Medeiros Arnt é licenciada em Ciê ncias Bioló gicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre e doutoranda em Educaçã o pela mesma universidade. Atualmente, é professora da UNEMAT, campus Tangará da Serra, em Mato Grosso, no curso de Ciê ncias Bioló gicas, coordenadora do Nú cleo de Educaçã o em Ciê ncias Tabebuia aurea e coordenadora do projeto Biologia e Linguagens em busca dos modos de viver e pensar a ciê ncia com Novos Talentos da Escola, do Programa Novos Talentos (CAPES). Atila Iamarino é fundador do primeiro condomın ́ io de blogs cientıf́icos do Brasil, hoje, o Scienceblogs Brasil, onde també m escreve no blog Rainha Vermelha. Bió logo bacharel pela Universidade de Sã o Paulo, atualmente é aluno de doutorado da USP. Tem experiê ncia em Microbiologia, Gené tica Molecular e de Microrganismos, atuando principalmente na evoluçã o molecular do vıŕus da Aids. Cecília de Campos França tem curiosidade pelo desconhecido. Ousa, com frequê ncia, em suas atividades profissionais, convertendo dificuldades em desafios e em objetos de pesquisa. Suas produçõ es acadê micas trazem a marca da diversidade. Ministra aulas de Psicologia da Educaçã o, Psicologia e Linguagem, Educaçã o, Diversidade e Interculturalidade, tendo lecionado també m as disciplinas de Filosofia, Histó ria da Educaçã o I e II, Metodologia Cientıf́ica, dentre outras. Costuma dizer aos alunos e colegas que, ao contrá rio do que se pode pensar, trabalhar comprometido com o que gostamos traz prazer e realizaçã o e faz com que evoluamos a cada dia. Participa com artigos em outro livro da mesma editora. Pó s-doutora pela Unicamp. Demerval Pires Gaspar é graduado em Letras com habilitaçã o em Espanhol pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Atualmente é professor dessa lın ́ gua na rede pú blica em Juın ́ a – MT. COLABORADORES Eduardo Bessa adora falar sobre seu trabalho, a ciê ncia, que aprendeu cursando Biologia na USP e fazendo doutorado na Unesp. Gosta tanto, que escreve um blog chamado Ciê ncia à Bessa na rede Scienceblogs Brasil (scienceblogs.com.br/bessa) e dá aulas sobre Zoologia na Universidade do Estado de Mato Grosso. Para ter sempre assuntos novos para falar, ele faz ainda pesquisa sobre o comportamento animal, o que lhe rendeu a autoria de outro livro da Editora Mediaçã o. Jane Ferreira Senra e Silva é formada em Pedagogia e Filosofia pela Universidade do Estado de Mato Grosso. També m é especialista em Psicopedagogia. Atualmente ensina na Educaçã o Bá sica do Estado de Mato Grosso. Joselaine Oliveira Santos é licenciada em Letras pela UNEMAT. Hoje é professora de Portuguê s na rede pú blica de Mato Grosso. Luciani Gallo possui graduaçã o em Ciê ncias Bioló gicas. E professora efetiva na educaçã o infantil em Nova Olım ́ pia – MT, desde 2002. Trabalha com educaçã o de jovens e adultos desde 2010. Maria Angela Fabrini Gaspar é graduada no curso de Letras pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT – Nú cleo Pedagó gico de Juın ́ a. Maria Elizabete e Silva é licenciada em Letras – Portuguê s e Espanhol – pela UNEMAT, é pó s-graduanda em Metodologia de Ensino de Lın ́ gua Estrangeira e aluna do Programa de Pó s-graduaçã o em Estudos Literá rios da UNEMAT. Mauro F. Rebelo é bió logo, o que, no seu caso, é mais um adjetivo do que uma profissã o. E apaixonado pela ciê ncia e nã o se contenta em viver sua paixã o calado: ele gosta de contar para todo mundo como é ser cientista, no seu blog, no seu laborató rio, nos seus livros e nas salas de aula do Instituto de Biofı-́ sica da UFRJ, onde é professor. COLABORADORES Rafael Bento da Silva Soares é bió logo formado pela Unesp, passou pela USP em um doutorado criando vıŕus para matar cé lulas de câ ncer e, depois, tentou as neurociê ncias em um pó s-doutorado relâ mpago. Desde 2006, está envolvido em divulgaçã o com o blog RNAm (scienceblogs.com.br/rnam) e percebeu que sua verdadeira vocaçã o nã o é fazer ciê ncia, mas sim trazê -la para mais perto da sociedade. Reinaldo José Lopes arranha grego e quenya, queria ser paleontó logo, mas també m se diverte bastante como jornalista de ciê ncia, carreira que segue há 12 anos. Trabalha na Folha de S. Paulo. NÚCLEO DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS TABEBUIA AUREA (NECTAR) Esse nú cleo foi formado por professores da Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT), campus Tangará da Serra, para valorizar a profissã o docente, a divulgaçã o cientıf́ica e o estudo mais aprofundado na á rea cientıf́ica e pedagó gica, em especial no campo das Ciê ncias Bioló gicas. E um projeto que vem amadurecendo há alguns semestres e, no inı́cio de 2008, começou a ganhar vida. O Nú cleo foi batizado com o nome da majestosa Tabebuia aurea, á rvore conhecida popularmente como Ipê Amarelo. Essa espé cie tem tornado o cotidiano de todos mais colorido na é poca da seca aqui em nosso Estado e é uma importante representante do Cerrado. Este livro é resultado do Projeto Biologia e linguagens em busca dos modos de viver e pensar a ciê ncia com novos talentos da escola, no Programa Novos Talentos, da Coordenaçã o de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nıv́el Superior (CAPES). Para conhecer mais sobre quem somos, nosso trabalho e atividades, entre em contato conosco: www.nectar.bio.br nectar@unemat.br