ABDPRO #61 - PROCESSO, JURISDIÇÃO E REPÚBLICA: Ao ensejo do 129º aniversário da Proclamação da República

05/12/2018

 

Coluna ABDPRO

Grosso modo, os processualistas em sentido amplo podem dividir-se em três categorias: 1) os não-educados em qualquer constitucionalismo (o que os torna menos processualistas que procedimentalistas); 2) os educados no neo-constitucionalismo (o que os torna menos processualistas que jurisdicionalistas); 3) os neo-educados no constitucionalismo (o que os torna autênticos processualistas, que são os constitucionalistas especializados na cláusula do devido processo legal). No Brasil, há a larga primazia numérica dos grupos (1) e (2). O grupo (3) - formado, por exemplo, pelos garantistas - está ainda in statu nascendi. De um lado, (1) estão os «processualistas» que ignoram o DNA garantista do processo e desenvolvem no plano infraconstitucional uma analítica procedimental (quase sempre frouxa, invertebrada e, portanto, de baixíssima qualidade); de outro, (2) os «processualistas» que manipulam acrobaticamente princípios constitucionais, imunizando-se de qualquer controle objetivo-racional, para desnaturar o processo num instrumento do poder e subverter a lei onde ela porventura bloqueie essa instrumentalidade. De um lado, (1) o teórico dos procedimentos (civil, penal comum, penal militar, trabalhista, eleitoral, tributário, administrativo etc.), que corporificam o processo em função dos diferentes ramos do direito material aplicável, mas que não se confundem com o processo em si, que nelas é corporificado; de outro, (2) o teórico da jurisdição (que - livrada do processo, que a controla - fica desgarrada, permitindo que os seus exercentes atuem com arbítrio, excessos e desvios). De um lado, (1) uma ciência rasa (que apreende somente a franja infraconstitucional-procedimental do fenômeno, não o seu hipocentro constitucional-processual) e arrogante (que vê como summum bonum et finis ultimus o mero cálculo de prazos, preclusões, impugnações, cabimentos e admissibilidades); de outro, (2) uma ciência insincera (visto que trata tão apenas da jurisdição, que é poder, não propriamente do processo, que - ao lado da advocacia - é a grã-garantia contrajurisdicional) e autoritária (porquanto aditiva e otimiza o poder jurisdicional, quando deveria refreá-lo). De um lado, (1) um microprojeto tecnicista alienado, que faz do procedimentalista um «subcientista», quase dispensável; de outro, (2) um macroprojeto politizado de dominação judicial, que afronta a democracia e a separação de poderes. E, aqui e ali, a relação do processo com temas axiais do constitucionalismo clássico - como soberania, república, democracia, federação, dignidade, liberdade, igualdade e fraternidade - não é tematizada.

Do não-constitucionalismo procedimentalista e do neo-constitucionalismo jurisdicionalista eclode um pseudo-constitucionalismo, que nega a essência mesma do fenômeno constitucional, que é o controle da política pelo direito, a constrição normativa do poder, a domesticação da politicidade pela juridicidade. Juntos, a omissão dos procedimentalistas e o engajamento dos jurisdicionalistas propiciam o primado da judicio-cracia (que é o governo dos homens-juízes) sobre a «processo-cracia» (que é o governo da Constituição e das leis procedimentais). Nada mais antirrepublicano. Afinal, não é o juiz que faz o direito: é o direito que faz o juiz. O jurisdicional radica no jurídico, não o contrário. Assim sendo, deve-se apagar o não- e o neo- a fim de que reste unicamente o constitucionalismo, castiço, em estado de pureza bruta. E, com ele, os seus temas mais genuínos, com os quais o processo se deve relacionar.

Por ora, desses temas, interessa-nos o nexo processo-república.

Até hoje, a ideia de república é mal categorizada pela ciência política, pela teoria do Estado e pela dogmática constitucional. Não só porque o uso inflacionário do termo lhe infligiu um esvaziamento significativo (algo somente comparável ao termo democracia). Mas também porque ainda se insiste em traduzi-lo numa definição concisa e lapidar. Tudo como se entre as diferentes repúblicas existissem traços ou propriedades essenciais e, dessa maneira, imutáveis. Entretanto, não há um «padrão ou modelo republicano». Na realidade, o republicanismo é polimórfico. Por essa razão, aí, todo e qualquer ensaio de conceituação é malogrado: sempre se descai em insuportável abertura semântica. A bem da verdade, a república é um tipo, não um conceito. Tem ela notas características móveis, fluidas e elásticas, não imóveis, fixas e rígidas. Revela-se melhor na concretude de explicitações, exibições e amostragens. Sua apreensão por definições abstratas é insuficiente. O pleno republicano e o vazio republicano são apenas os dois extremos de uma linha contínua. Ao longo dela se estica uma variação quase infinitesimal de formas híbridas, intermediárias ou atípicas. Por conseguinte, pode haver - e não raro há - a) faixas de governo nominalmente republicanas com baixo grau de republicanidade (v. g., repúblicas ditatoriais socialistas) e b) faixas de governo nominalmente não-republicanas com alto grau de republicanidade (v. g., monarquia constitucionais parlamentaristas europeias modernas). Ou seja, vige um insuspeito espectro republicano.

De ordinário, identificam-se como principais características da republicanidade: i) a soberania popular («o poder é emanado do povo, devotado para o povo e exercido pelo povo diretamente, nos termos da Constituição, ou mediante representantes»); ii) a extinção de privilégios e discriminações arbitrárias; iii) a eletividade dos representantes populares; iv) a periodicidade ou temporariedade dos mandatos; v) o dever de prestação de contas; vi) a transparência na gestão; vii) a possibilidade de controle direto do arbítrio governamental pelo povo; viii) a possibilidade de responsabilização direta dos governantes; ix) a serventia das coisas públicas ao povo, não aos governantes. Todavia, num ambiente republicano, é possível que algumas dessas notas se ausentem ou se apresentam com baixa intensidade: o importante é que as demais notas tenham um peso especial ou diferenciado. Enfim, importa a imagem global de um «governo do povo, pelo povo e para o povo» [res publica res populi est].

Tome-se o exemplo das modernas monarquias constitucionais parlamentares primeiro-mundistas (e.g., Reino Unido, Espanha, Holanda, Bélgica, Luxemburgo, Suécia, Noruega, Dinamarca, Liechtenstein, Mônaco, Japão): globalmente, elas apresentam uma enorme densidade republicana, apenas atenuada pela vitaliciedade e pela hereditariedade do cargo de Chefe de Estado (obs.: na história do Brasil, não há de causar estranheza a afirmação de que D. Pedro II era um «imperador com alma republicana»). Em contrapartida, há monarquias cuja chefia de Estado é eletiva - vitalícia (ex.: Vaticano) ou temporária (ex.: Malásia) -, embora apresentem globalmente uma baixa densidade republicana. Nesse sentido, a República e a Monarquia lato sensu não são formas de governo necessariamente «opostas», «contrárias» ou «antagônicas». Quando muito se verifica uma forte carga de contraste entre a República Democrática e a Monarquia Absoluta Tradicional, já que ocupam as bandas mais extremas do espectro. Basta lembrar que, nos séculos XVII e XVIII, a res publica romana teve o seu significado original modificado justamente para expressar um Gegenmodell às formas absolutistas de governo. Logo, republicanizar = des-absolutizar = tornar composto do povo, controlável pelo povo e serviente ao povo.

No texto da Constituição Federal de 1988, o princípio republicano se apresenta de dois modos: 1) concentradamente, mediante a proclamação expressa da forma republicana (art. 1º, caput; art. 34, VII, a; 2) difusamente, mediante a concretização espraiada de suas notas características (ex.: art. 1º, parágrafo único; art. 5º, caput; art. 5º, LXXIII; art. 14; art. 31; art. 37, caput; art. 44, parágrafo único; art. 49, IX; art. 51, I e II; art. 52, I e II; art. 70; art. 71; art. 77, §§; art. 82; art. 84, XXIV; art. 85). Essa topologia frontispicial contida no caput do artigo 1º da CF/1988 faz do republicanismo uma das linhas inaugurais do próprio horizonte constitucional brasileiro. É porta de abertura para a ordem constitucional como um todo. Por isso, o aludido princípio conforma a organização e o funcionamento do próprio Estado (que é o todo), não somente do seu governo (que é uma de suas partes). No sistema de direito constitucional positivo brasileiro, a República - mais do que a forma de governo - é o «modo de vida do Estado». Ela escapa ao seu desenho clássico e ganha uma inovadora compleição trans-governamental. Logo, o âmbito circunscricional de incidência do princípio republicano não se restringe à administração executiva. Não se cinge ao núcleo diretivo do Estado alterável por eleições e responsável pela gestão do interesse público e pelo exercício do poder político. Na verdade, vai muito além. Alcança a própria administração pública como um tudo. Mais: irradia-se por sobre as atividades de legislação [rectius: jurislação] e de jurisdição. Todas as funções essenciais do Estado - administrativa, jurislativa e jurisdicional - devem ser igualmente estruturadas sob o signo da republicanidade. Cada qual dentro de suas peculiaridades materiais.

Nesse sentido, pode-se falar num 1) republicanismo administrativo-executivo ou governamental, 2) num republicanismo administrativo não-executivo, 3) num republicanismo jurislativo e 4) num republicanismo jurisdicional. Daí as necessidades de dessetorialização ambiental e, em consequência, de reformulação enunciativa do princípio republicano. O seu programa jurídico-normativo tem sido tradicionalmente exprimido mediante palavras e expressões próprias ao estrito jargão governamental. Ora, isso tem travado a desenvoltura compreensiva do instituto. Por isso, é preciso reescrever as notas características da republicanidade em termos mais amplos. Elas devem abarcar, outrossim, as particularidades dos âmbitos estatais não-governamentais. Em suma, é preciso conferir uma omniabrangência conteudística supragovernamental ao princípio. No caso específico do republicanismo jurisdicional, o problema é ainda mais grave, uma vez que no Brasil o tema é imerso em um lastimável deathly silence. Quando muito se verbaliza para o nosso Poder Judiciário os republicanismos administrativo-judiciário e jurislativo-regimental. Contudo, por estas bandas, a ideia de republicanização da jurisdição propriamente dita - onde sempre grassou o autoritarismo absolutista do «juiz-monarca» - não é sequer imaginável. E não sem razão: o cânon republicano devolve «inconvenientemente» o processo ao seu centro gravitacional, servindo como barreira de contenção às investidas procedimentalista e jurisdicionalista. Daí por que, para os processualistas (os constitucionalistas da macrogarantia contrajurisdicional processual), o hífen da cópula processo-república é «o» coração temático. Ele é a ponte de ouro, que reascende a processualidade ao plano das garantias individuais, do qual foi expulsa pela parceria antirrepublicana procedimentalismo-jurisdicionalismo.

Já se viu que, no âmbito jurisdicional (não propriamente no âmbito judiciário, dentro do qual também se exercem as funções administrativa e jurislativa), é preciso uma reconfiguração expressivo-adaptativa do programa normativo-republicano. Deve-se sair dos limites tradicionais do republicanismo governamental, subir a um republicanismo mais amplo, reelaborá-lo em termos renovados e só depois descer ao republicanismo jurisdicional.

Como já tratado, as características republicanas especificamente governamentais são:

a.1) a soberania popular («o poder é emanado do povo, devotado para o povo e exercido pelo povo diretamente, nos termos da Constituição, ou mediante representantes»);

a.2) a extinção de privilégios e discriminações arbitrárias;

a.3) a eletividade dos representantes populares;

a.4) a periodicidade ou temporariedade dos mandatos;

a.5) o dever de prestação de contas;

a.6) a transparência na gestão;

a.7) a possibilidade de controle direto do arbítrio governamental pelo povo;

a.8) a possibilidade de responsabilização direta dos governantes;

a.9) a serventia das coisas públicas exclusivamente ao povo, não aos governantes.

Abstraindo-se o matiz governamental, o republicanismo lato sensu tem como características mais genéricas:

b.1) a soberania popular («o poder é emanado do povo, devotado para o povo e exercido pelo povo diretamente, nos termos da Constituição, ou mediante representantes»);

b.2) a igualdade formal perante a lei;

b.3) a escolha dos agentes públicos dentre o povo mediante seleção por critérios objetivos de mérito;

b.4) a inexistência de cargos públicos só vagáveis post mortem;

b.5) a exposição dos motivos que levam o agente público a agir de determinada maneira, permitindo-se ao público detectar eventuais vícios no ato;

b.6) a eliminação de qualquer ocultação que impeça o conhecimento e o controle dos atos estatais pelo povo;

b.7) a possibilidade de controle direto do arbítrio estatal pelo povo;

b.8) possibilidade de responsabilização direta de todo e qualquer agente público;

b.9) a serventia das coisas públicas exclusivamente ao povo, não aos agentes públicos.

Consequentemente, as características correspondentes do republicanismo jurisdicional são:

c.1) a soberania popular («o poder jurisdicional é emanado do povo, devotado para o povo e exercido pelo povo diretamente, nos termos da Constituição, ou mediante juízes e tribunais»);

c.2) a isonomia processual entre as partes (CF, art. 5º, caput);

c.3) a escolha dos juízes dentre o povo mediante concurso público de provas e títulos (CF, art. 93, I);

c.4) a permanência dos juízes até atingirem a idade prevista para a aposentadoria compulsória (CF, art. 40, § 1º, II; ADCT, art. 100), vedando-se a perda do cargo senão por sentença judicial transitada em julgado (CF, art. 95, I);

c.5) o dever de fundamentação das decisões judiciais (CF, art. 93, IX);

c.6) o dever de publicidade dos atos judiciais (CF, art. 5º, LX; art. 93, IX);

c.7) a possibilidade de controle - repressivo e preventivo - do arbítrio jurisdicional pelas partes, o que se viabiliza mediante, por exemplo, as instituições de garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), da imparcialidade (CF, art. 5º, § 2º, c.c. CIDH, art. 8º, 1), do duplo grau de jurisdição (CF, art. 5º, § 2º, c.c. CIDH, art. 8º, 2, h), da legalidade (CF, art. 5º, II), do contraditório (CF, art. 5º, LV), da ampla defesa (CF, art. 5º, LV), do juiz natural (CF, art. 5º, XXXVII), da presunção de inocência em suas dimensões penal e civil (CF, art. 5º, LVII), do habeas corpus (CF, art. 5º, LXVIII), do mandado de segurança (CF, art. 5º, LXIX), da reclamação constitucional ao STF (CF, art. 102, II, l; art. 103-A, § 3º), da reclamação constitucional ao STJ (art. 105, I, f), da reclamação constitucional ao TST (CF, art. 111-A, § 3º), da reclamação às ouvidorias de justiça (CF, art. art. 5º, § 2º, c.c. art. 103-B, § 7º) e da advocacia (CF, art. art. 5º, § 2º, c.c. art. 133);

c.8) a possibilidade de responsabilização direta dos juízes (CF, art. 52, II; CPC, art. 143);

c.9) a serventia do processo exclusivamente às partes, não ao juiz.

Como se vê, as notas características de uma jurisdição republicana decorrem - em boa parte - do modo como ela é limitada pelo «devido processo legal» em si [= processo-garantia = garantia individual do processo = macrogarantia contrajurisdicional processual] e pelos princípios constitucionais que o informam. Em outras palavras, uma jurisdição republicana é o modo privativo da jurisdição determinado preponderantemente pela processualidade garantista. É o modo de ser de um poder jurisdicional confinado em grande medida pelo processo. É a jurisdição com baixo potencial patogênico-arbitrário, pois des-absolutizada por forças institucionais domesticadoras, mormente pela força garantista da instituição processual. Enfim, é a jurisdição compelida pelo processo, o qual serve de proteção «ao povo» e, portanto, «às partes» (o que impede o juiz - dentre outras coisas - de apropriar-se do processo, deturpá-lo num instrumento da jurisdição e nele exceder-se em «razões de Estado» semanticamente vagas como a cooperação, a eficiência e a boa-fé). Afinal de contas, porque uma garantia individual do cidadão em juízo (CF, art. 5º, LIV), o processo é uma res publica, uma res populi, não uma res principis. Daí por que parcela considerável do republicanismo da jurisdição decorre diretamente do garantismo do processo, que a limita. Sem a garanticidade não existe o processo (tendo em vista que o processo que não é uma garantia é um «subprocesso», uma «aparência de processo»). Sem o processo, a jurisdição descai em puro descontrole, em poder incontido. Adensando-se a garanticidade, fortalece-se a processualidade; fortalecendo-se a processualidade, aumenta-se o grau de republicanidade da jurisdição. Eliminando-se ou despotenciando-se o processo-garantia, a jurisdição se faz absoluta, o juiz se degrada em monarca e as partes se reduzem a súditas.

É preciso deixar claro, porém: a republicanidade não é atributo do processo, mas da jurisdição; da mesma forma, a garanticidade não é atributo da jurisdição, mas do processo. Não se fala em «processo republicano» assim como não se fala em «jurisdição garantista». Na realidade, o garantismo está para o processo assim como o republicanismo está para a jurisdição. Quem defende o garantismo processual, promove o republicanismo jurisdicional; quem luta pelo republicanismo jurisdicional, empunha o garantismo processual. Uma coisa leva à outra. São verso e reverso do mesmo fenômeno. Nesse sentido, uma jurisdição republicana é o objetivo supremo de um autêntico processualista (o constitucionalista do devido processo legal). É o produto final acabado da obra magna garantista. Aliás, uma obra dogmática sequer inconclusa, visto que ainda iniciante. Mas a obra da vida num país onde a democracia se encontra sob a ameaça de um «Estado Judicial de Direito»...

 

Imagem Ilustrativa do Post:Scales of Justice // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

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