O leitor sabe. Há muitos momentos na vida em que o que mais queremos, o que mais precisamos é simplesmente fugir da realidade que nos opri...

Fugir da realidade

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O leitor sabe. Há muitos momentos na vida em que o que mais queremos, o que mais precisamos é simplesmente fugir da realidade que nos oprime, nos incomoda, nos torna infelizes. Essa realidade pode consistir num problema sério ou apenas num certo cansaço com as coisas e situações do dia a dia. A situação do país, por exemplo, martelando nosso juízo cotidianamente nos jornais (os que restam) e na televisão. Uma tediosa repetição de notícias deprimentes, suficiente, por si só, para levar qualquer um à depressão. Que fazer então?

Fugir. Fugir da realidade. Ou pelo menos de uma parte dela, aquela que não mais suportamos, por estar além de nossas forças. Fazemos isso todos os dias e nem sempre notamos.
Yanal Tayyem
É uma defesa, um instinto de autopreservação. Não aguentaríamos a realidade o tempo inteiro, enlouqueceríamos ou morreríamos. A realidade, se refletirmos bem, é insuportável. Literalmente.

E não se pense que a realidade dos ricos, poderosos e bem-sucedidos em geral é mais leve ou mais fácil que a dos outros. Absolutamente, não. É a mesma coisa para todo mundo, assim como a morte, isonomia maior de tudo que vive. Se cada qual carrega sua cruz, como dizem os cristãos, essa cruz é a realidade, e é muito pesada, sabemos. E se o próprio Cristo precisou de um Cireneu, que dizer de nós?

Mas o que é a realidade? Entre os filósofos, a questão não é pacífica. Há quem diga que tudo que pensamos ser real não passa de mera aparência de real. Este, propriamente dito, não estaria e não está ao alcance do nosso conhecimento, ou seja, nós, os humanos, não estamos devidamente aparelhados para apreender a realidade. Tudo não passa, portanto, de uma ilusão. Será?

André Comte-Sponville, o pensador francês contemporâneo, define o real como “o conjunto das coisas e dos acontecimentos, conhecidos ou desconhecidos,
Samantha Celera
duradouros ou efêmeros, na medida em que estão presentes: é o conjunto de tudo que acontece ou continua”. Fico pensando: A taça de vinho que bebo e aprecio é realidade ou aparência? Para mim, é bastante real, não tenho dúvida, e essa certeza me basta. Aliás, ficaria muito frustrado se o vinho que de fato bebi e bebo constituísse apenas uma mera ilusão, pô.

O fato é que, aparência ou não, a realidade, tal como a cruz, pesa em nossos ombros, e esse peso é muito real, ou, pelo menos, sentimos como tal, a ponto de querermos afastá-lo, nem que seja parcialmente.

Da realidade, foge-se de todas as maneiras, sabemos bem. Desde a cachacinha no boteco mais modesto da periferia até ao spa mais estrelado. Desde a literatura de ficção às drogas alucinógenas, passando pelos filmes de todos os gêneros. De todas as formas, foge-se, porque essa é uma questão de sobrevivência física e mental.

Tenho uma amiga que deixou de assistir aos noticiários da televisão. Pra quê?, diz ela, só para me deprimir com tanta notícia ruim? “Nenhuma notícia boa na política, na economia, nas relações internacionais, na ecologia ou nos simples costumes. Melhor não saber. Passo melhor ignorando o lixo do mundo”. Não tiro a razão dela.

Bill Smith
Comigo é a mesma coisa. Não assisto mais a filmes sobre o Holocausto nem sobre nada que implique em sofrimento. Conversa baixo astral, também tô fora. E assim por diante. O que for de mal (ou de mau), vou atrás do poeta que não der para evitar, paciência, enfrento, mas só o suficiente para contornar a pedra no meio do caminho. No mais, tchau, fujo sem nenhum remorso.

Não se pense, porém, que estou fazendo o elogio da alienação. Fugir da realidade como forma de preservação pessoal é uma coisa, alienar-se é outra bem diversa. A fuga normalmente é uma atitude consciente, a alienação é exatamente o contrário: a ausência de consciência. Preste atenção aos alienados que você conhece...

Pensando bem, por tudo isso, a vida é uma coisa muito louca. Para poder enfrentar-se a realidade, há que se fugir dela, veja só. Mas isso há que ser feito com moderação e cuidado, é claro, porque se se exagerar na dose, aí sim, vira caso de hospício mesmo e nunca mais cairemos na real, se é que esta expressão ainda existe.

Que tal irmos todos embora pra Pasárgada?

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