Academia.eduAcademia.edu
A REPRESENTAÇÃO DE DILEMAS MORAIS E EXISTENCIAIS EM NEON GENESIS EVANGELION FELIPE, Kaio1 Resumo: Este trabalho analisará as questões sociofilosóficas presentes no mangá Neon Genesis Evangelion, criado por Hideaki Anno e desenhado por Yoshiyuki Sadamoto. Lançado em 1995 e ainda em produção, Evangelion se notabilizou pela profunda exploração das psiques de seus personagens, os quais apresentam intensos conflitos psicológicos. Começarei este artigo com uma análise do repertório filosófico deste mangá, o qual envolve pensadores como Schopenhauer (―dilema do ouriço‖), Kierkegaard (desespero humano) e Hegel (holismo e instrumentalidade), e como este repertório é simbolizado em três dos personagens da série: Shinji Ikari, Asuka Soryu e Gendo Ikari. Também discutirei o uso da biotecnologia pelas organizações SEELE e NERV como engenharia social para criar ―uma nova humanidade‖. Ambas têm como objetivo o Projeto de Instrumentalidade Humana, que transformaria todos os seres humanos, incompletos e inconstantes, numa única entidade perfeita. A terceira parte do artigo será sobre a questão da identidade, pois o próprio ato de pilotar o Evangelion representa um grande desafio existencial para os três pilotos: Shinji (auto-menosprezo), Asuka (superação de trauma) e Rei Ayanami (construção do ―eu‖). Nesse sentido, farei uma breve excursão sobre a dimensão sociocultural desta temática da identidade, afinal na década de 90 o Japão passava por uma aguda crise social e moral. Por fim, será feito um balanço de todas estas discussões sociológicas e morais presentes em Evangelion. Palavras-chave: Evangelion; Existencialismo; Filosofia Moral; Sociologia das Histórias em Quadrinhos. 1. Introdução Neon Genesis Evangelion é possivelmente o anime/mangá mais aclamado por público e crítica nos últimos vinte anos. Poucas vezes uma obra do gênero alcançou tamanha popularidade e suscitou tantos debates e controvérsias. O fato de Evangelion ter forte caráter metalingüístico, possuir personagens psicologicamente densos, um enredo instigante e apresentar vasto conteúdo filosófico, psicanalítico e religioso são as principais razões para tal repercussão. O enredo de Evangelion revela forte influência da mitologia gnóstica. Tudo começa há quatro bilhões de anos, com a colisão de um objeto esférico gigante, 1 Mestrando em Ciência Política (IESP/UERJ). denominado ―Lua Negra‖, com a Terra; eis o chamado Primeiro Impacto. Como resultado, uma grande quantidade de detritos foi lançada em órbita, aglomerando-se e formando o satélite natural da Terra: a Lua. Porém, o núcleo da ―Lua Negra‖ trazia Lilith, uma das Sementes da Vida 2; sendo que outra já existia na Terra: Adão, enviado pela ―Lua Branca‖. O problema é que sob hipótese alguma duas Sementes podem coexistir no mesmo planeta. No entanto, como a Lança de Longinus3 de Lilith foi destruída, a lança que restou no planeta - a de Adão - se ativou para tentar corrigir a situação, e colocou Adão num estado de hibernação indeterminado. Livre, Lilith começa a espalhar a ―sopa primordial‖ da qual a vida terrestre ―normal‖ nasce, e começou o processo evolutivo que se seguiu por bilhões de anos, o qual culminou com a raça humana. Assim, a humanidade, descendente de Lilith, usurpou o lugar dos Anjos, descendentes de Adão, como a raça dominante na Terra.4 No ano de 2000, uma expedição científica na Antártida descobriu Adão inerte e a Lança de Longinus na qual ele foi empalado. No dia 13 de setembro foi realizada a experiência de contato entre um embrião humano (portanto, com DNA de Lilith) e Adão. Porém, a retirada da Lança de Longinus foi mal-sucedida; Adão só possuía o Fruto da Vida (e não ambos, pois o Fruto da Sabedoria é possuído por Lilith - cuja ―Lua‖ estava em outro lugar), e perdeu o controle. A reintrodução da lança impediu uma tragédia ainda maior – o aparecimento de outros anjos, que levariam a uma destruição completa da vida terrestre. Porém, ainda assim houve o Segundo Impacto, nome dado para o desastre global que destruiu, direta (desequilíbrio ecológico, com o derretimento da Antártida e a elevação do nível dos mares) ou indiretamente (guerras civis acarretadas pela fome e escassez), metade da população mundial. Além disso, a reaparição dos Anjos, que tentariam novamente entrar em contato com Lilith, era iminente. Diante de tal cenário, uma organização secreta chamada SEELE (―alma‖, em alemão) descobriu que a Lua Negra de Lillith ficava no Japão, no chamado Geofront. Sobre ela foi construído o quartel da NERV, que, sob o comando de 2 Fonte: http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Primeiro_Impacto A Lança de Longinus é um artefato extraterrestre com o poder de penetrar qualquer Campo AT (campo de força que protege a ―alma‖ dos Evangelions e Anjos) e imobilizar seres divinos. 4 Fonte: http://pt-br.neongenesisevangelion.wikia.com/wiki/Lilith 3 Gendo Ikari, continuou as pesquisas para realizar a experiência de criar um ―Deus humano‖. Foram criados os Evangelions, humanóides gigantescos (mas que parecem robôs, em razão de suas ―armaduras‖) e os únicos capazes de vencer os Anjos. Todos os EVAs são clones a partir do embrião de Adão, exceto a Unidade 01, clonada a partir de Lilith. O EVA-01 contém a alma da cientista Yui Ikari, esposa de Gendo e mãe de Shinji, o protagonista da série. Yui foi absorvida de propósito, mas ainda assim seu marido ficou abalado pelo acontecimento; além de abandonar o filho, passou a cultivar um objetivo diferente daquele que a SEELE havia lhe proposto. (Veremos mais sobre o Projeto de Instrumentalidade Humana no próximo capítulo.) 2015. Em um mundo pós-apocalíptico, que tenta se reerguer após o Segundo Impacto, a bem-sucedida reconstrução econômica coexiste com o sentimento de que o fim se aproxima. É quando o Terceiro Anjo (já que Adão e Lilith são os dois primeiros) ataca Tóquio-3, cidade em cujo subsolo se encontra o Geofront. Os esforços militares da ONU são ineficazes; mesmo as bombas N2 não afetam o Anjo. Nesse mesmo dia, Shinji Ikari é levado por Misato Katsuragi (diretora de operações estratégicas) à sede da NERV para encontrar seu pai, e recebe a missão de pilotar o EVA-01 e derrotar o Anjo. Começa então o 1º capítulo de Neon Genesis Evangelion. Embora a versão em quadrinhos tenha sido lançada antes, em fevereiro de 1995, Evangelion surgiu como desenho animado, criado e dirigido por Hideaki Anno. O anime possui 26 episódios, e foi exibido entre outubro de 1995 e março de 1996; o mangá, roteirizado pelo desenhista da série, Yoshiyuki Sadamoto, continua sendo publicado até hoje; por enquanto há 12 volumes (no formato japonês, com 180 páginas, que equivalem aos 24 volumes da edição brasileira), sendo que o 13º será lançada mundialmente em novembro de 2012. Cabe dizer que há algumas diferenças entre o anime e o mangá. Em primeiro lugar, o Shinji da versão em HQ é menos passivo-agressivo e mais revoltado que o apresentado no desenho animado. Além disso, o número de Anjos foi reduzido de 17 para 12. O mangá mantém o clima soturno e misterioso da série, mas é mais ―didático‖ que o anime, explicando melhor a trama e contendo mais passagens que revelam o passado dos personagens. Por fim, cabe salientar as diferenças entre os autores, apontadas por Marcel R. Goto: ―O estilo de Anno, fragmentado, sombrio, e explorando ao máximo as possibilidades de expressão dos desenhos animados, dá nuances diferentes aos acontecimentos das de Sadamoto, que prefere um estilo narrativo linear, mais tradicional e direto.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 7, p. 91) Outro contraste é que a versão em quadrinhos de Neon Genesis Evangelion centra o conflito nos problemas pessoais de seus caracteres. ―Desse modo, deslocou o centro de atenção das lutas, principal enfoque dos quadrinhos que seguem a linha mecha5, para o universo humano e psicológico das personagens.‖ (MENDES, 2006: 50) De toda forma, mantém-se o projeto estético que já havia no anime: ―Hideaki Anno trata sempre do peso do talento inato, da obrigação de ser bem-sucedido quando se possui um grande dom, e do medo de fracassar por não conseguir encontrar forças dentro de si para enfrentar seus fantasmas interiores.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 3, p. 90) Feita essa apresentação, cabe dizer que o propósito deste artigo é a análise de como Evangelion apresenta artisticamente as dúvidas e questionamentos relacionados à conduta social e intersubjetiva e ao sentido existencial de seus personagens. Diante disso, uma questão epistemológica vem à tona: por que estudar tais questões a partir de um mangá? Em primeiro lugar, as histórias em quadrinhos são, desde o seu nascimento, uma forma de comunicação e, portanto, portanto um meio de transmissão de mensagens. Por meio das imagens desenhadas, das palavras e diálogos, da representação pictórica, os quadrinhos manifestam valores, sentimentos, concepções, etc. (cf. VIANA, 2008) A abordagem sociológica dos quadrinhos centra sua análise em dois aspectos fundamentais: a produção social e a mensagem que apresenta em suas produções. Em segundo lugar, em HQs mais intelectualizadas é possível encontrar tanto um projeto estético (isto é, modificações operadas no âmbito da linguagem e a apresentação de uma visão sobre que é uma obra de arte) quanto um 5 Pertencem ao gênero mecha títulos que tratam de qualquer tipo de mecanismo de alta tecnologia, em particular ―séries em que os heróis pilotam robôs gigantescos em batalhas tanto na Terra como no espaço sideral ou planetas alienígenas.‖ (MENDES, 2006, p. 44). projeto ideológico, marcado pelo pensamento de um determinado contexto. Evangelion é esteticamente uma obra que, embora a priori pertença ao gênero mecha, desconstrói constantemente os cânones do mesmo, a começar por seu caráter auto-reflexivo, beirando a meta-ficção. Ideologicamente, Neon Genesis Evangelion tem marcas da psicanálise freudiana (afinal, quase todos os personagens têm problemas e conflitos com seus pais e mães) e, como demonstrarei no capítulo a seguir, possui forte carga filosófica. 2. O Repertório Filosófico de Neon Genesis Evangelion 2.1. Schopenhauer e o Dilema do Ouriço Num dia frio de inverno, um grupo de ouriços se uniu em grupo cerrado para se proteger mutuamente do congelamento com seu próprio calor. Porém, logo sentiram os seus espinhos, o que os afastou novamente uns dos outros. Quando a necessidade de aquecimento novamente os aproximou e aquele incômodo se repetiu, eles oscilavam entre dois sofrimentos, até encontrarem uma meia distância, a partir da qual conseguissem suportar-se da melhor maneira possível. Assim também a necessidade da sociedade, nascida do vazio e da monotonia, leva os homens a viverem juntos; contudo, suas múltiplas qualidades repelentes e seus erros insuportáveis fazem com que se distanciem de novo. A distância média que finalmente encontram, e pela qual pode subsistir uma vida em comum, consiste na polidez e nas boas maneiras. (cf. SCHOPENHAUER, 2006: 168-169) Esta parábola de Arthur Schopenhauer foi utilizada numa conversa entre Misato e a cientista Ritsuko para descrever o comportamento de Shinji Ikari, o qual revelava dificuldade para desenvolver intimidade com as pessoas. Solitário, ele adota um comportamento cauteloso e distante, talvez por medo de se machucar. Em um de seus monólogos interiores, Shinji explicita este receio de ter seus sentimentos feridos: ―Vou guardar meu coração no lugar mais oculto do meu corpo. Assim... não precisarei sentir mais nada.‖ (SADAMOTO, 2002, vol. 3, p. 36). Não são poucos os momentos em que ele hesita em pilotar o EVA, sentindo-se inútil e alegando que as pessoas (a começar por seu pai) só o vêem como piloto (imagem 1). Shinji encaixa-se bastante no diagnóstico de Schopenhauer sobre a condição humana: o mundo é essencialmente sofrimento; somos controlados por uma Vontade cega e irracional. A vida oscila eternamente entre a dor e o tédio, e a carência e a miséria existencial lhe são intrínsecas. Sempre que possível, a solidão é preferível à vida social, pois a sociabilidade é uma das inclinações mais perigosas e perversas, na medida em que nos põe em contato com seres cuja maioria é moralmente ruim e intelectualmente obtusa ou invertida. (cf. SCHOPENHAUER, 2006: 169) Esta forma melancólica e pessimista de encarar a existência humana pode levar a uma postura blasé - o que parece ser justamente o caso de Shinji Ikari. Em certo sentido, o ―herói‖ de Evangelion não é um personagem com que o público pode ter empatia; sua personalidade é assaz introspectiva. Aliás, o mundo de Neon Genesis Evangelion, em si, é como ele: uma interioridade fechada. Para Shinji, esta introspecção profunda aparece como uma realidade imóvel; não por acaso, o tema que vem à tona a partir da 2ª metade da série é: como lidar com essa interioridade fechada, com essa ―prisão da autoconsciência‖? (cf. TSURIBE, 1999) Em outras palavras, uma questão central na saga de Shinji é o paradoxo entre a inevitabilidade e os limites de uma tentativa de interiorizar o mundo. 2.2. Kierkegaard e o Desespero Humano O episódio 16 do anime de Evangelion tem como título ―Sickness Unto Death‖ (―Doença até a Morte‖), justamente o nome da tradução inglesa para uma das obras mais famosas de Sören Kierkegaard: ―O Desespero Humano‖. Porém, a influência kierkegaardiana aparece em outros momentos da série, particularmente na construção da personagem Asuka Langley, piloto do EVA-02. Segundo Kierkegaard, o desespero é doença do espírito, do ―eu‖, podendo tomar três formas: o desespero inconsciente de ter um ―eu‖ (sendo que tal ignorância de si é o verdadeiro desespero), o desespero que não quer, e aquele que quer ser ele próprio. É a consciência que determina a medida e natureza do desespero; quanto maior ela for, mais ―eu‖ haverá; logo, maior será o desespero. “O desespero é, portanto, a „doença mortal‟, esse suplício contraditório, essa enfermidade do eu: eternamente morrer, morrer sem todavia morrer, morrer a morte. (...) Mas esta destruição de si própria que é o desespero é impotente e não consegue os seus fins. A sua vontade própria é destruir-se, mas é o que ela não pode fazer. (...) Eis o ácido, a gangrena do desespero, esse suplício cuja ponta, dirigida sobre o interior, nos afunda cada vez mais numa autodestruição impotente.” (KIERKEGAARD, 1988: 199-200) Em outras palavras, o desespero é morrer sem literalmente morrer; é querer libertar-se de si mesmo e jamais consegui-lo. Embora tal perspectiva esteja presente em outros personagens, é em Asuka Soryu Langley que podemos verificar um processo mais completo, envolvendo as três fases do desespero kierkegaardiano. Ainda criança, Asuka passou por uma experiência traumática: presenciou o suicídio da mãe. Durante muitos anos lidou com esse drama com denegação, focando-se exclusivamente na preparação para ser piloto do EVA-02. Seu perfeccionismo e sua atitude arrogante funcionaram bem como sublimação durante algum tempo; porém, quando teve o seu orgulho ferido após duas derrotas humilhantes nas batalhas contra os Anjos (as quais foram vencidas justamente pela Unidade 01 de Shinji), Asuka reagiu com ira e ressentimento. Sua taxa de sincronização com o EVA começa a cair, e ela ainda teve que ouvir de Kaworu (o qual mais tarde revelaria ser o Último Anjo) uma dolorosa lição: ―Você nunca vai conseguir controlar o EVA se não abrir o seu coração. O EVA não é uma marionete. Ele tem vida própria. Você só não consegue sincronizar se estiver com o seu coração fechado.‖ (SADAMOTO, 2004, v. 17, pp. 45-46) Após ser devastada psiquicamente por um ataque mental do 10º Anjo (o qual a fez se lembrar de seu trauma de infância), Asuka cai em depressão, ficando em estado catatônico. Sua superação veio de uma aceitação a si mesma: durante a batalha final contra a SEELE 6, ela descobriu que a sua mãe sempre a esteve protegendo, pois a alma dela estava ―alojada‖ no EVA-02, por meio da barreira protetora do Campo AT. Com isso, a piloto consegue processar a sua ansiedade de separação, restaurando sua autoconfiança. Utilizando a teoria de Kierkegaard, poderíamos dizer que Asuka começou com um desespero inconsciente de si mesmo (por exemplo, quando se protegia na persona de uma garota auto-suficiente e prepotente), passando por um desespero de não querer ser ela mesma (que vem à tona quando a sublimação fracassa e o ―fantasma‖ da morte da mãe - e a sensação de solidão disso resultante - volta a lhe assombrar) e, por fim, o desespero acarretado por querer ser ela própria (que ocorre quando, ao descobrir que seu Evangelion foi feito a partir da alma de sua mãe, Asuka supera seu trauma). 2.3. Hegel e a Instrumentalidade Dos três filósofos analisados neste capítulo, Hegel é o único que não serviu de influência declarada para Neon Genesis Evangelion. Ainda assim, há interessantes analogias entre sua filosofia e as ambições da NERV e SEELE. Manabu Tsuribe (1999) argumenta que o Projeto de Instrumentalidade Humana assemelha-se ao sistema da filosofia de Hegel, pois em ambos há a idéia de um sistema como um anel, em que o começo é o fim, e o fim é o começo. É um pensamento ideal, uma "auto-realização dos conceitos", que envolve as contradições e confrontos dinamicamente, integrando-os de forma monística. 6 Após a morte do último Anjo (Kaworu), a SEELE tenta antecipar o Plano de Instrumentalidade Humana e ataca a base da NERV, enviando tropas do exército japonês. Depois que a Unidade 02 desperta e destrói os navios, helicópteros e bombas, finalmente aparecem os nove últimos EVAs, com os quais a SEELE pretende imolar a Unidade 01 e iniciar os rituais do Terceiro Impacto. A característica fundamental da dialética hegeliana é a idéia de que ―o Todo é igual à soma das Partes‖. Este holismo em Hegel é, contudo, um holismo segundo Lavoisier: ―na natureza, nada se cria, nada se perde e tudo se transforma‖ — sendo que ―natureza‖ é aqui entendida como sendo restrita à matéria, ou seja, tudo aquilo que tem massa e resulta da entropia da gravidade. Em Hegel, embora a Totalidade não seja uma classe de elementos que se deixe definir mediante a coleção de todos os elementos que a constitui, o autor também exclui que exista algum fator exógeno ao sistema (ou seja, à soma das partes) que desempenhe qualquer função.7 De acordo com o pensamento hegeliano, a individualidade e a acidentalidade são reduzidas à universalidade e à inevitabilidade. Neste sistema, tudo se resume a um processo teleológico, em direção a um fim; aliás, a direção deste telos já seria pressuposta no início. Neste sistema, o processo no qual uma criança se torna um homem e mesmo a história da humanidade são consideradas como partes de um processo de evolução gradual para a realização da idéia (Idee). (cf. TSURIBE, 1999) O Projeto de Instrumentalidade Humana desenhado pela SEELE e NERV assemelha-se a certos aspectos deste holismo de Hegel. Vislumbra-se um mundo comunitário: a idéia é fundir todas as almas humanas em uma só, para compensar os vazios de cada um e criar um ser perfeito e completo. Todos os campos AT, individuais, desapareceriam para se fundir em um só. Seria o fim dos conflitos humanos, alcançando-se assim a harmonia. Portanto, o real objetivo da NERV e da SEELE é evoluir a espécie humana: o EVA é o ápice da existência dos homens; logo, chegando-se ao limite, é necessário evoluir. O projeto transformaria todos os seres humanos, incompletos e inconstantes, numa única entidade perfeita; ou seja, uma integração orgânica de todas as personalidades. Após essa fusão acabariam os problemas, deficiências, medos etc.; os homens perderiam sua individualidade, e se tornariam - só e unicamente - a Humanidade. Embora estejam envolvidas neste ambicioso empreendimento de bioengenharia, NERV e SEELE têm objetivos diferentes: enquanto esta quer 7 Fonte: http://espectivas.wordpress.com/2012/04/27/a-dialectica-de-hegel-e-anacronica/ gerar o Terceiro Impacto, Gendo Ikari tem como objetivo secreto se fundir com Yui8. Para a SEELE, a raça humana está estagnada; porém, ela poderia evoluir mais um passo. Cabe, portanto, moldar o verdadeiro destino da humanidade, que seria fundir todas as almas formando uma só e com isso extinguir as fraquezas, inseguranças e sofrimentos que cada pessoa carrega em si. Já a NERV carrega o propósito pessoal de seu Comandante Supremo: rever a alma da esposa. Embora oficialmente o objetivo desta organização seja combater os Anjos, este é apenas o método, e não a finalidade dela. Apesar de Gendo parecer ser o vilão de Evangelion, na verdade ele é um personagem tão complexado e frágil quanto os demais. Desde a morte da esposa, ele persegue obsessivamente seu plano, o que dá às pessoas à sua volta a impressão de que ele é frio e distante; mantendo mesmo diante de seu filho Shinji uma postura hostil. É possível que, durante alguns anos, ainda estivesse seguindo os objetivos da SEELE; porém, a experiência de incorporação de Yui pela Unidade 01 abala-o profundamente a ponto de mudar seus planos. Gendo não convoca Shinji para pilotar a Unidade 01 por nepotismo; na verdade, só seu filho é capaz de sincronizar com o EVA cuja alma é a da própria mãe. Depois da batalha contra o 9º Anjo, em que o Evangelion 01 ―desperta‖ e, após uma impressionante demonstração de poder, absorve o mecanismo S2 do Anjo (o qual lhe assegura tempo de funcionamento ilimitado, o que é um passo decisivo para a Instrumentalidade), a SEELE finalmente percebe as intenções secretas de Gendo: ―Nós não precisamos de deuses materializados. Muito menos... se esse Deus for o filho do Ikari.‖ (SADAMOTO, 2003, v. 15, p. 86) Sendo assim, neste mundo pós-apocalíptico de Evangelion, o controle do destino da Humanidade está nas mãos de duas organizações megalomaníacas e potencialmente destruidoras; o rastro de destruição deixado pelo Segundo Impacto não deixa dúvidas quanto a isso. SEELE e NERV operam uma engenharia social em larga escala, na medida em que se utilizam da biotecnologia para alcançar seus propósitos. Porém, mesmo que em alguns 8 No volume 7, Gendo consegue o embrião de Adão, o Primeiro Anjo, o que permitirá a fusão com Rei Ayanami, clone de Yui e portadora da alma de Lilith, e que é também a piloto da Unidade 00. momentos se revele o ―complexo militar-político‖ (por exemplo, quando, após a destruição do último Anjo, a sede da NERV é invadida pelo governo japonês, a mando da SEELE), o ―poder‖ almejado pelas duas organizações transcende, não é estritamente material; como se viu no capítulo anterior, Neon Genesis Evangelion é uma distopia com forte fundo místico-religioso. Por fim, ainda sobre o Projeto de Instrumentalidade Humana, a questão é colocada de forma radical. Durante a batalha final e a iminência do Terceiro Impacto, Shinji Ikari, piloto do único EVA feito a partir de Lilith, precisa tomar uma decisão: ou ele mantém sua individualidade, rejeita a instrumentalidade e continua a viver num mundo apocalíptico, ou aceita o projeto, vive num mundo ideal, mas no qual cada indivíduo deixaria de sê-lo para dar lugar à unidade. Considerando a fragilidade psíquica de Shinji, qual decisão ele tomará? 3. O Três Pilotos e a Questão da Identidade Susan Napier (2002) afirma que Evangelion pode ser visto como um romance de formação (Bildungsroman), em que há um gradual processo de amadurecimento e auto-descoberta do protagonista. Shinji teria de lidar com uma ordem patriarcal (na medida em que seu pai é também seu chefe) e a forte presença do feminino (as pilotos Rei e Asuka, a capitã Misato, a cientista Ritsuko e o próprio EVA, que é uma entidade maternal). Os Anjos seriam como o ―outro‖ que precisa ser repudiado para que o sujeito em questão (ou seja, Shinji) amadureça. Seria o protagonista capaz de, ao longo da trama, desenvolver uma forma coesa de subjetividade? Na opinião de Manabu Tsuribe, a resposta é ―não‖: “Talvez Evangelion tenha deixado de ser uma história em um determinado ponto. No episódio 6 da série de TV 9, Shinji e Rei, que eram „crianças de mente fechada‟, lutaram juntos contra um Anjo e „abriram suas mentes‟, trocando sorrisos um com o outro. Embora esta cena tenha provavelmente sido o primeiro clímax da série, talvez Neon Genesis Evangelion como uma história de „crescimento e independência de um menino‟, como um Bildungsroman - terminou naquele ponto. Evangelion como uma história parou por aí. Na segunda metade da série (...), a evolução do tempo como uma história parou e o mundo de 9 Equivalente no mangá aos capítulos 16 a 19, que compõem o volume 6 da edição brasileira. Evangelion começou a gradualmente abordar a realidade de forma auto-referencial. Não há qualquer evolução de uma história a partir dali.” (TSURIBE, 1999) A análise do perfil psicológico dos três pilotos pode elucidar se há ou não um processo de amadurecimento. Antes de tudo, adotarei uma distinção proposta por Charles Duan (2001) de duas formas de identidade do ―eu‖ [self]: a ―real‖ (inerentemente presente no ―eu‖, sua natureza) e a ―construída‖ (produzida a partir de observações e interpretações humanas ―não-naturais‖ de uma pessoa, feitas tanto por ela mesma quanto pelos outros) Trocando em miúdos, a identidade real é criada pela pessoa real, onde não há falta de autoentendimento do ―eu‖; já a identidade construída é feita a partir de representações simbólicas dessa pessoa. Tal distinção é utilizada pelo autor para afirmar que o tema de Evangelion é o estudo dos fatores que levam os personagens a escolherem viver por meio do ―eu‖ construído ao invés do ―eu‖ real, e as maneiras pelas quais eles finalmente se libertam desses fatores restritivos. Tal estudo seria feito pela exploração de como se dá a auto-descoberta desses fatores pelos personagens, no intuito de que a própria audiência/público da série possa descobrir os mesmos fatores em si mesmos e se libertar de maneiras semelhantes. O primeiro ―caso‖ que analisarei é Shinji Ikari, que encarna de forma trágica - e não épica, heróica - o fardo de pilotar o EVA, algo que só o faz sofrer. Ele é um herói relutante, e afirma constantemente que não pilota a Unidade 01 por um senso de dever cívico ou por amor à humanidade, mas porque é tão fraco que deixa os outros tomarem as decisões por ele. O filho de Gendo Ikari possui forte auto-menosprezo, ou seja, age como se fosse indiferente a tudo, incapaz de reação. Porém, ao mesmo tempo Shinji teme que, sem o EVA, ele não é nada. Por trás da aparência fraca e medrosa, no fundo ele luta para ter a aprovação das pessoas, especialmente de seu pai. Segundo o próprio Yoshiyuki Sadamoto, no início Shinji busca esse reconhecimento pilotando o EVA-01, ―mas acaba se questionando sobre seu papel na NERV e o valor da sua própria vida.‖ (SADAMOTO, 2001, v. 2, p. 89) É possível afirmar que Shinji usa a covardia como ―máscara‖ para esconder sua verdadeira natureza. Para Charles Duan (2001), há três momentos que indicam tal possibilidade interpretativa são: primeiro, quando Shinji se recusa a destruir o EVA-03, possuído por um Anjo, mas contendo um ser humano dentro dele (Toji Suzuhara, amigo de Shinji); segundo, a indecisão do personagem quando Kaworu, o último Anjo, lhe pediu para que o matasse; por fim, o colapso moral que abateu Shinji após matá-lo, fazendo com que, mesmo no controle do EVA-01 durante os rituais do Terceiro Impacto, ele continuasse agindo de forma evasiva. As três cenas têm em comum o fato de Shinji Ikari estar ―empoderado‖, habilitado para se tornar não uma identidade criada, mas um criador (ou destruidor) de identidades alheias. Como piloto do único Evangelion feito a partir de Lilith, ele adquire o poder de julgar a humanidade, pois está em suas mãos se o Terceiro Impacto ocorrerá ou não. Porém, mesmo nesta situação extrema Shinji reage contra sua identidade real, portando-se como covarde, criando um escudo para o seu próprio poder. Ele teme que, ao usá-lo, causará dor aos outros; mesmo que reconheça sua liberdade de escolha, Shinji constata que aceitar sua identidade real não leva a um único e predeterminado destino, e é essa dúvida - entre continuar na ―zona de conforto‖, eximindo-se de suas responsabilidades, ou aceitar a si mesmo, com o risco de ferir as pessoas que estima - que o corrói. (cf. DUAN, 2001) No final, Shinji acredita que todos o odeiam, mas reconhece que, para que isso mude, depende apenas dele mesmo. Nas palavras do Fuyutsuki, subcomandante da NERV, ―sua verdade pode ser alterada, simplesmente, pela maneira como você a aceita‖. Com isso, Shinji recusa a Instrumentalidade e aceita sua identidade real, o que envolve lidar com sua individualidade (e, portanto, sua incompletude): ―Eu me odeio... mas, talvez eu possa ser capaz de me amar. Talvez minha vida tenha um valor maior. Sim. Eu não sou nada além de mim. Eu sou eu. Eu quero ser eu.10 Quero continuar a existir nesse mundo! Eu sou digno de viver aqui!‖ (BRODERICK, 2002) 10 Notem aqui um traço do terceiro tipo de desespero kierkegaardiano: querer ser ele próprio. Por sua vez, Asuka Langley, assim como Shinji, tem um background de família disfuncional. Ambos perderam precocemente suas mães e têm pais ausentes - embora no caso de Asuka, isso ocorra porque ela é fruto de uma inseminação artificial. Porém, ao invés de agir de forma introspectiva, a piloto do EVA-02 adota uma atitude arrogante, à la ―posso me virar sozinha‖. Asuka torna-se obcecada pelo sucesso profissional, e esconde seu trauma familiar com demonstrações de eficiência no trabalho. O fato de ter sido criada na Alemanha a fez estudar num sistema educacional em que a eficiência e a excelência são cobradas implacavelmente. Asuka também adquire uma relação de dominação técnica com o mundo exterior, tratando os objetos, as pessoas e seu próprio Evangelion como meios para o seu o seu fim: preservar a identidade construída de ser uma piloto bem-sucedida. A seguinte passagem do mangá mostra como ela vinculava seu bem-estar ao reconhecimento de seu talento: ―Se eu fui escolhida entre tantos para ser uma piloto... e eu luto e derroto estes Anjos... e se todos reconhecerem esses feitos... então estarei feliz.‖ (SADAMOTO, 2002, v. 8, p. 52) Porém, quando as barreiras protetoras e agressivas que desenvolveu para si são quebradas, o delicado quadro clínico de Asuka é desvelado. Seu EVA pára de funcionar porque, como dissera Kaworu, ela ―não abre o seu coração‖, tratando-o como marionete, robô. O ataque psíquico do 10º Anjo - e, com isso, a recordação do passado sombrio - a faz ficar depressiva. O primeiro passo para a cura de Asuka é a descoberta de sua identidade real: o fato de ser uma garota carente, que quer que alguém que a proteja. Isso ocorre justamente quando reconhece que sua mãe não a abandonou, mas esteve este tempo todo cuidando dela, por meio do Campo AT, no EVA-02. Após tal descoberta, ela sorri e diz: ―Mamãe. Era você quem esteve me protegendo por todo este tempo.‖ (SADAMOTO, 2010, v. 24, p. 34) Por sua vez, Rei Ayanami, piloto do EVA-00, é como uma construção a partir do vazio; o fato de ser um clone de Yui Ikari potencializa seu caráter de ―tabula rasa‖. Não por acaso, a interrogação de Rei é mais metafísica que a de Shinji e Asuka: inicialmente considera-se uma ―casca vazia com uma alma falsa‖, mas sua voz interior sugere que ela é formada pelas interações com os outros - e isso a faz ter medo de cessar e desaparecer das mentes deles. Ao longo da série ela gradualmente deixa de ter Gendo, seu ―criador‖, como único referencial, e se aproxima de Shinji. Este processo também é o de questionamento de seu ―eu‖ construído (a piloto que segue ordens) e a busca por uma identidade real. Em uma das cenas mais emocionantes de Neon Genesis Evangelion, Rei se suicida, ao colocar o EVA-00 em modo de autodestruição e assim derrotar o penúltimo Anjo. Porém, antes disso, ela e o inimigo têm uma estranha ―conversa‖, na qual o Anjo revela os desejos inconscientes de Ayanami: ―Você tem (...) a vontade de ter [Shinji] Ikari só para você. (...) Você se sente tão sozinha que... desejaria ele sempre perto de você. Esse é o seu coração. Cheio de tristeza, ódio e melancolia.‖ (SADAMOTO, 2006, v. 19, pp. 26-28) Imobilizada pelo Anjo e temendo que este ataque o EVA-01, Rei Ayanami vê como única solução explodir a Unidade 00. Porém, pouco depois se descobre que ela era apenas a ―Segunda‖ de uma série de clones. A ―Terceira‖ inicialmente não se lembra de nada que ocorreu com as cópias anteriores, mas ao longo do tempo descobre sua misteriosa conexão com elas. Rei Ayanami também desempenhará um papel importante no Projeto de Instrumentalidade Humana, pois, como foi dito no capítulo anterior, ela é portadora da alma de Lilith. Rei, contudo, recusa-se a se fundir com Gendo e resolve se unir com Shinji, seu ―filho‖ (afinal, ela foi clonada a partir de Yui), cujo EVA é feito a partir do corpo de Lilith. Com isso, inicia-se o Terceiro Impacto. Porém, após muito refletir, Shinji recusa esta fusão com sua ―mãe‖, e escolhe que deveria estar com Asuka, sua alteridade radical, o ―outro‖ que ele nunca poderia se fundir em um só. Evangelion, portanto, termina quando Shinji encontrou Asuka como "o outro". Para Shinji, ela é uma existência ambígua: por um lado, Asuka o inspira e se importa com ele, mas por outro ela também é uma existência fora de seu controle, o ―outro‖ que nunca pode ser interiorizado. A ambigüidade de Asuka é também a ambigüidade do próprio Evangelion. (cf. TSURIBE, 1999) 4. Evangelion e o Mal-Estar Japonês nos Anos 90 Em 1995 o Japão passou por dois desastres, sendo um natural e outro feito pelo próprio homem. O primeiro foi o terremoto de Kobe, em 17 de janeiro, que vitimou mais de seis mil pessoas e causou enormes prejuízos materiais para a cidade. Apenas dois meses depois, em 20 de março, seguidores da seita Aum Shinrikyo (Aum Verdade Suprema) conduziram ataques simultâneos em cinco carros de diferentes trens do metrô de Tóquio com gás sarin, resultando em 12 mortes e cerca de 5500 pessoas afetadas de alguma forma, sendo mais de 1300 com lesões permanentes, como cegueira. (cf. ANTONIOLI, 2012). O terremoto e o ataque terrorista abalaram o já combalido moral da população japonesa, que atravessava uma recessão desde 1990. Kauê Antonioli relacionou de forma intrigante os dois eventos com o sucesso de Evangelion: “Se um dos objetivos da Aum com o ataque foi violentar o país, para forçá-lo à auto-reflexão, isso de fato aconteceu. Não apenas com os intelectuais que estudaram o caso, mas as próprias vítimas, ao invés de apenas demonizar o culto, o fizeram não sem mirar seu dedo indicador para o espelho. (...) Para o Japão, o atentando no metrô de Tóquio foi uma advertência e o fato pontual da virada histórica do país, o início de uma nova era, menos brilhante e pomposa. 1995 foi também o ano do terremoto de Kobe e do lançamento de Neon Genesis Evangelion, que não teve o apelo popular que conquistou com seu teor pessimista apenas por acaso.” (Ibidem) O estado de espírito japonês estava em crise; mais do que isso, predominava no país, particularmente entre os jovens, a sensação de anomia, isto é, de falta de objetivos e perda de identidade decorridos do acelerado desenvolvimento econômico e das profundas alterações sociais, os quais debilitaram a consciência coletiva. Embora generalizado, este mal-estar dos anos 90 foi mais forte no Japão; talvez pela experiência da bomba atômica na II Guerra, mas também por uma antiga preocupação cultural com a transitoriedade da vida, os japoneses desenvolveram uma crítica apocalíptica à tecnologia, a qual se manifestou em muitos mangás e animes (um exemplo notório é Akira). Moldou-se uma cultura de massa obcecada pela temática do ―fim do mundo‖, e Evangelion pode ser visto como uma alegoria deste Japão pós-moderno. Esta visão pessimista da tecnologia aparece em Neon Genesis Evangelion na medida em que há um questionamento sobre a relação do homem e da máquina, sendo que esta parece cada vez mais dominar e interferir na realidade. A problematização da identidade humana no contexto da tecnologia é levada em uma direção crescentemente apocalíptica, uma atmosfera de ―desespero cultural‖ concretamente manifestada no incidente envolvendo a Aum Shinrikyo e que também serviu de inspiração ideológica e estética para mangás como Evangelion. (cf. NAPIER, 2002, p. 103-107) Os dramas dos personagens de Evangelion também refleteM algo culturalmente específico ao Japão: a crescente desconfiança e alienação entre as gerações. A distância entre Shinji e seu pai é um exemplo sintomático disso. A cena que se em encontram no cemitério para velar o túmulo de Yui (fazia 11 anos desde sua morte) foi uma das raras em que os dois chegaram a conversar, e ainda assim foi um diálogo duro (Imagem 2). Neon Genesis Evangelion também pode ser visto como a história da superação de uma depressão - no caso a de seu criador, Hideaki Anno. Na 1ª edição do mangá há um texto dele, intitulado ―O que estamos tentando criar?‖, que é uma verdadeira carta de intenções da série: “[O cenário em que se passa Neon Genesis Evangelion é] um mundo saturado de visões pessimistas. O mundo no qual nossa história começa (...) somente depois de terem sido removidos todos os traços do otimismo. Há ali um garoto de 14 anos com medo de ter contato com outras pessoas. Ele considera esse contato inútil, abandonou qualquer esforço para que os outros o compreendam e tenta viver em um mundo isolado. É um garoto que se sente abandonado pelo pai e se convenceu de que é uma pessoa completamente desnecessária para o mundo. Um menino amedrontado, que não tem coragem [sequer] de se suicidar.” (SADAMOTO, 2005, pp. 182-183) Esta descrição de Shinji Ikari, quando comparada com o trecho a seguir, pode ser vista como um auto-retrato de Anno: “Em Neon Genesis Evangelion estão depositados quatro anos da minha vida, a vida de um homem estraçalhado, incapaz de realizar o que quer que fosse. Um homem que fugiu de tudo durante quatro anos, e de quem o máximo que se poderia dizer é que não estava morto.” (Ibidem, p. 182) É plausível que o período de quatro anos de depressão de Anno foi a principal fonte dos elementos psicológicos da série e de seus personagens, pois ele escreveu no papel muitas das provações e tormentos de sua condição depressiva. Durante a produção da série, Hideaki Anno se desencantou com o estilo de vida otaku, considerando-o uma forma de autismo forçado. Sucederam-se aos pais e avós que trabalharam arduamente pela reconstrução do Japão (as décadas de 1940 a 70) uma geração de jovens desiludidos, formados sob valores materialistas e carentes de propósitos existenciais. Muitos deles encontraram na cultura otaku uma válvula de escape para seu deslocamento social: Akai Takami, co-fundador da Gainax (famoso estúdio de animação, responsável por animes como o próprio Evangelion), defende-os: ―É porque são abafados pelo meio social que os jovens escapam para a dimensão virtual. Nossa geração cresceu sem razão real para se orgulhar de si mesma.‖ (ANTONIOLI, 2011) Porém, Anno não os poupa da crítica de serem escapistas, de fugirem do confronto com a realidade. 5. Conclusão Uma das coisas mais notáveis sobre Evangelion é que a série funciona em em quatro níveis distintos. Pode ser simplesmente apreciado como uma aventura sci-fi habilmente realizada, mas é também uma sátira sombria do gênero mecha, uma parábola sobre amadurecimento e um tratado sobre como enfrentar a solidão e a incerteza no mundo adulto. (cf. CRANDOL, 2002) Ao longo deste artigo procurei mapear as principais questões que marcam Neon Genesis Evangelion. Quase todas elas lidam com o 3º e o 4º destes níveis de interpretação estabelecidos por Mike Crandol (2002). Diferentemente de outros títulos do gênero mecha, em que a ênfase é dada nos robôs, Evangelion retrata a vida dos personagens com suas imperfeições e problemas. ―Evidenciase, então, a analogia entre a própria vida e o mundo dos quadrinhos: a vida concebida como mangá e mangá concebido como vida.‖ (MENDES, 2006, p. 57) É possível dizer que temos nesta HQ uma ―lição‖ envolvendo a aceitação da condição humana: postula-se que qualquer lugar pode ser o paraíso, contanto que se tenha o desejo de viver. Há também uma crítica à mentalidade ―tecno-gnóstica‖, isto é, a mescla de engenharia social com ambições místicas. Nesse sentido, a mensagem de Evangelion é que o homem não pode fundar uma nova realidade, moldar a humanidade a seu bel-prazer, como se o conhecimento das verdades divinas fosse acessível a alguns mortais, e estes pudessem interferir profundamente na vida dos demais - no caso da SEELE e NERV, causando o Segundo Impacto e encaminhando o Terceiro. Há também a idéia, com ecos de Schopenhauer, de que as pessoas nunca poderão acabar com sua solidão, porque todas elas estão fundamentalmente sozinhas. Sendo assim, cabe aceitar a incompletude inerente à natureza humana, e desenvolver uma distância média que nos permita evitar tanto a completa solidão quanto os desgastes da sociabilidade. Além disso, quando Shinji Ikari aceita a vida e recusa a instrumentalidade, acaba indiretamente fazendo uma ode ao livre-arbítrio: todo ser humano tem o potencial de criar seu próprio mundo. A fábula do amadurecimento de Shinji, ao mesmo tempo em que é autobiográfica, talvez também procure convencer a nós, leitores, de que somos dignos de viver neste mundo. O mesmo pode ser dito do processo de desespero de Asuka, que aprendeu a aceitar a si mesma (isto é, sua identidade real), reconhecendo as próprias fragilidades e deixando de lado a persona arrogante e auto-suficiente que construíra. Por outro lado, considerando o retrato soturno da psique humana que há na série, a visão apocalíptica de Neon Genesis Evangelion também pode ser vista como irônica: mesmo quando pensamos ter controle da realidade à nossa volta, na verdade estamos à sua mercê, como personagens nas mãos do destino - ou dos autores/desenhistas. (cf. NAPIER, 2002, p. 115) Outra dimensão pessimista de Evangelion vem à tona quando se considera seu contexto histórico e cultural: o Japão dos anos 1990, um país sob anomia, conflitos geracionais, temores apocalípticos e uma desconfiança sobre a capacidade da tecnologia de gerar bem-estar ao invés de (ainda mais) dilemas morais e existenciais. Por estas e outras razões (como a estética), a trama de Evangelion tornou-se cada vez mais sombria à medida que a série progrediu. Independentemente do olhar adotado ser otimista ou amargo, em ambos os casos Neon Genesis Evangelion aparece certamente como um mangá (e anime) intrigante e denso, que encanta seus leitores (e espectadores) com os dramas e angústias de seus personagens. Estes vivem uma grande aventura apenas para descobrirem que esta não pode compensar as necessidades humanas básicas de amor e amizade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTONIOLI, Kauê. Aum Shinrikyo: A Verdade Suprema e o ataque terrorista com gás sarin ao metrô de Tóquio em 1995. Março/2012. Fonte: http://otakismo.blogspot.com.br/2012/03/aumshinrikyo-verdade-suprema-e-o.html ______________ Homo Virtuens, o surgimento do fenômeno otaku. Junho/2011. Fonte: http://otakismo.blogspot.com.br/2011/06/homo-virtuens-o-surgimento-do-fenomeno.html BRODERICK, Mick. ―Anime‘s Apocalypse: Neon Genesis Evangelion as Millenarian Mecha‖. IN: Intersections: Gender, History and Culture in the Asian Context. Issue 7, Março/2002. Fonte: http://intersections.anu.edu.au/issue7/broderick_review.html CRANDOL, Mike. Understanding Evangelion. Junho/2002. Fonte: http://www.animenewsnetwork.com/feature/2002-06-11 DUAN, Charles. Constructing the Self: An analysis of Neon Genesis Evangelion. Maio/2001. Fonte: http://www.sbf5.com/~cduan/writings/eva-full.shtml KIERKEGAARD, Sören. ―Diário de um sedutor; Temor e tremor; O desespero humano‖. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1988. MENDES, Alexandre Luiz dos Santos. Mangá: uma nova gênese - Análise da história em quadrinhos Neon Genesis Evangelion. Dissertação de mestrado. FAAC/UNESP. Bauru, 2006. NAPIER, Susan. ―When the Machines Stop: Fantasy, Reality, and Terminal Identity in ‗Neon Genesis Evangelion‘ and ‗Serial Experiments Lain‘. IN: Science Fiction Studies, Vol. 29, No. 3, Japanese Science Fiction (Novembro/2002), pp. 418-435. SADAMOTO, Yoshiyuki. Neon Genesis Evangelion. São Paulo: Conrad, volume 2, 2001; v. 3, 7 e 8, 2002, v. 15, 2003; v. 17, 2004; v. 1 (relançamento), 2005; v. 19, 2006; v. 24, 2010. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a Sabedoria de Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006. TSURIBE, Manabu. Prison of Self-Consciousness: an Essay on Evangelion. 1999. Fonte: http://www001.upp.so-net.ne.jp/tsuribe/anime/critique/evae.html VIANA, Nildo. ―O Que Dizem os Quadrinhos?‖. IN: Sociologia, Ciência & Vida, v. 17, p. 53-62, 2008. Fonte: http://portalcienciaevida.uol.com.br/ESSO/edicoes/18/artigo98209-1.asp REFERÊNCIAS FOTOGRÁFICAS Imagem 1: http://www.mangapt.net/online/Shinseiki_Evangelion/v02_c11/15 Imagem 2: http://www.mangapt.net/online/Shinseiki_Evangelion/v05_c29/21