#75 - PROCESSO COMO COISA  

17/08/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

 

Ao querido casal Igor e Natascha

I

Metáfora é uma figura de linguagem: «tropo pelo qual se dá a uma pessoa ou coisa uma qualificação que ella não tem e que só por analogia se póde admittir; emprego de uma palavra em um sentido differente do próprio por semelhança» (AULETE, Francisco Júlio de Caldas. Diccionario contemporaneo da lingua portugueza. 2. ed. v. 2. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira, 1925, p. 288). Não raro, tendo em vista a complexidade fenomenal do direito, os juristas se referem aos seus institutos por meio de metáforas. E é bom que o façam, pois elas cumprem um importante papel explicativo, «enquanto imagem que concentra toda uma riqueza de representação conceitual e sensível, ensejando desdobramentos»; ou seja, as metáforas se põem «a serviço da razão ou do esforço exploratório da concepção que guia a elaboração da teoria» (REGNER, Anna Carolina K. P. O papel da metáfora no longo argumento da «Origem das espécies». <https://cutt.ly/3stiIWg>). Um dos institutos jurídicos que melhor se representam por metáforas é o processo. Processo é instituição de dificílima apreensão. Sob o ponto de vista estrutural, trata-se de um complexo proteiforme lógica, cronológica e teleologicamente organizado, composto de atos stricto sensu, negócios, atos-fatos, fatos stricto sensu, que - à medida que se sucedem - tendem a criar, modificar e desfazer um emaranhado de situações jurídicas entre o Estado-juiz e as partes (pretensões, faculdades, poderes, funções, imunidades, ônus, deveres, sujeições etc.). Entretanto, sob o ponto de vista funcional, não existe consenso entre os processualistas: grosso modo, para uns o processo serve ao Estado-jurisdição [= publicismo processual]; para outros, aos jurisdicionados [= privatismo processual] (conquanto haja faixas híbridas, intercalares ou intermediárias entre uma posição e outra, quase sempre disfarçadas de terze vie inedite, como se fossem um «desprezo» [Überwindung] às ou uma «superação» [Aufhebung] das duas posições antagônicas tradicionais). E é aí que a eficiência representativa da metáfora incide: auxilia os juristas na ilustração dos seus modelos funcionais de processo, substituindo a imagem real complicada por uma imagem similar mais simples.

 

II

Para tanto, merece destaque a metáfora do processo como coisa. À luz da dogmática do direito civil, bem se sabe que processo não é propriamente coisa, res, bem. No entanto, a comparação tem razão de êxito: há patente semelhança ou homologia entre a) o modo como a coisa serve ao titular de um direito real sobre ela (nu-proprietário, usufrutuário, usuário, superficiário, habitador, enfiteuta etc.) e b) o modo como o processo serve ao Estado-juiz e às partes. Em geral, duas correntes se rivalizam: 1) para uma, processo é «coisa das partes» [Sache der Parteien]; 2) para outra, «coisa do juiz» [Sache der Richter]. É preciso advertir, porém: a palavra alemã Sache não significa apenas «coisa», mas também «questão», «assunto», «tema», «problema», «negócio», «interesse» (cf. TOCHTROP, Leonardo. Dicionário alemão-português. 6. ed. Rio de Janeiro: Globo, 1994, p. 437). Na língua português, é igual: coisa, além de exprimir «tudo que existe objetivamente com exclusão do homem», exprime «questão», «assunto», «tema», «problema», «negócio», «interesse» (cf. AULETE, Francisco Júlio de Caldas. Ob. cit., v. 1, p. 506). Relatar, por exemplo, que se está «tratando de coisas importantes», ou «cuidando das próprias coisas», é exprimir essa segunda ordem de sentidos. Logo, quando se afirma que o processo é uma «coisa das partes», afirma-se que processo é assunto ou problema das partes, interessando-lhes com exclusividade ou primazia; da mesma forma, afirmando-se que o processo é uma «coisa do juiz», afirma-se que processo é assunto ou problema do Estado-juiz, porque se encontra sob o seu exclusivo ou primaz interesse. Em alemão, se algo compete ao juiz, «es ist Sache der Richter»; se incumbe às partes, «es ist Sache der Parteien». Como se vê, não há aí metaforicidade. Ainda assim, a palavra coisa abre um portal de imagens novas. É possível uma representação metafórica do regime do processo pelo regime dos bens (bem aqui entendido como coisa útil, suscetível de apropriação e dotada de valor econômico). Enfim, o modo de serventia do processo pode comparar-se ao modo de serventia de um bem. A analogia ajuda na sistematização dos diferentes modelos funcionais de processo (que, aliás, não se reduzem ao esquema maniqueísta «bem das partes» versus «bem do juiz»).

 

III

No privatismo processual, o processo se compara a um BEM PRIVADO ou PARTICULAR. Os beneficiários primários, diretos ou imediatos do uso processual são as partes; o beneficiário secundário, indireto ou mediato, o Estado-juiz. Todos eles usam o processo; entretanto, o benefício por esse uso é assimétrico: o proveito das partes prefere ao proveito do Estado-juiz. Em outros termos, o processo se «aplica» predominantemente para atender aos direitos subjetivos das partes in statu assertionis; só por via reflexa e de forma eventual se descobre a verdade e, em consequência, se realiza corretamente o direito objetivo do Estado. Nesse sentido, haveria quase uma supressão do interesse público pelos interesses privados. Daí por que não existe espaço para um minimum de razões exógenas públicas instrumentais (cooperação, moralidade, igualdade, eficiência, matérias de ordem pública etc.), senão apenas para razões endógenas privadas instituídas dialeticamente pelas próprias partes. Isso quer dizer que o processo é uma «COISA PRIVADA DAS PARTES». É uma estrutura privada com função privada. É usado pelas partes sob a ideia-força do laissez-faire. É um âmbito expandido de anarquismo libertino. Na expressão «coisa privada das partes», a preposição «de» adquire força genitiva, indicando uma relação de posse entre «coisa» e «partes». Processo é bem particular. Pertence às partes de maneira plena e exclusiva. É propriedade individual delas. Dele as partes se utilizam, como um jogo de estratégia adversarial, para a satisfação das suas necessidades pessoais. Tudo se passa como se, em relação ao processo, as partes tivessem o «ius utendi, fruendi et abutendi re sua, exclusis aliis, quatenus iuris ratio patitur» [Digestae, 7, 8, 2, par.]. Portanto, as partes vão demarcando espontaneamente para si mesmas - dentro de uma «saudável desordem» - as balizas de utilização febril do processo. Com isso o Estado-juiz se comprime a um papel mínimo e inercial no mercado processual: um árbitro passivo neutro, um «juiz anão», um «vigilante noturno», um «guarda de trânsito», um «convidado de pedra», um mandatário das partes. Na prática, somente lhe resta sentenciar, julgar o meritum causæ após o esgotamento ad nauseam do duelo esportivo entre elas.

 

IV

Em posição diametralmente oposta está o publicismo processual. Nele, o processo é comparável a um BEM PÚBLICO DE USO ESPECIAL. Lembre-se que uso especial é sinônimo de uso pelo Estado. Decerto, não se trata de uso apenas interno pelo Estado, pois a jurisdição não maneja o processo de modo fechado ou exclusivo. Franqueia-se o acesso a terceiros, que são os jurisdicionados. Por isso, na realidade, trata-se de uso interno pelo Estado-juiz e uso externo pelas partes. De toda forma, o uso pelas partes se circunscreve a quem o próprio Estado-juiz reconheça como legitimado. Ainda assim, o beneficiário primário do processo é o Estado-juiz; os beneficiários secundários, as partes. Todos eles usam; todavia, o benefício pelo uso é assimétrico: o proveito do Estado-juiz prefere ao proveito das partes. Em outras palavras, o processo se «aplica» predominantemente na descoberta da verdade, na correta aplicação do direito objetivo do Estado e, portanto, nas consecuções da justiça e da paz social; só como efeito colateral desejável se «aplica» o processo para atender aos interesses privados das partes. Logo, haveria quase uma supressão dos interesses privados pelo interesse público. Isso significa que o processo é uma «COISA PÚBLICA DO JUIZ». É uma estrutura público-oficial com função público-oficial. É dominado e controlado ex officio por um juiz plenipotenciário. Não pode ficar à mercê da mesquinhez egoísta de interesses inferiores, íntimos e inconfessos. É um âmbito mandamental de autocracia judicial. Enfim, é um autêntico regnum iudicis. A cópula «pública» + «de» especifica a ideia de publicidade, expressando a ideia mais restrita de estatalidade. A preposição «de» tem aí força genitiva, indicando relação de posse entre «coisa» e «juiz». Processo é bem público-estatal. Pertence ao Estado-juiz. É propriedade dele. Dele o Estado-juiz se utiliza como um Dulce ou um Führer para satisfazer a sua libido dominandi [= fascismo jurisdicional], ou como um Robin Hood para concretizar políticas sociais igualitárias [= socialismo jurisdicional]. Ao mandarinato judicial - e somente a ele - compete definir, para si e para as partes, os marcos de utilização processual por todos. E, frequentemente, ele o faz in causa sua. Ou seja, a dinâmica do uso processual é definida ex parte principis, não ex parte civium.

 

V

No gerencialismo processual, o processo se compara àquilo que a doutrina comercialista italiana chama de BENE AZIENDALE. Os beni aziendali são «organizzati dall’imprenditore per l'esercizio dell'impresa» (Codice Civile de 1942, art. 2555). Compõem, por conseguinte, a universalidade de bens com os quais se desenvolve a atividade econômica (isto é, a azienda). Enfim, integram o chamado estabelecimento empresarial (cf. CC/2002, art. 1.142: «Considera-se estabelecimento todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária»). Nesse sentido, o processo é um bem instrumental, que integra o estabelecimento da empresa judiciária. A jurisdição «emprega» o processo na prestação eficiente do serviço forense aos jurisdicionados. Tudo dentro de um planejamento estratégico calculado, de uma lógica fordista, de um autoritarismo soft neoliberal e dos postulados do good judicial governance. Isso significa que o processo é uma «COISA PRIVADA DO JUIZ». É uma estrutura privada com função pública. O juiz usa-a - de maneira discricionária, plena e exclusiva - no desenvolvimento técnico do seu empreendimento próspero. O processo é titularizado dominialmente pelo «managerial-style judge», pelo «juiz-gerente», pelo «juiz Chief Executive Officer», pelo «juiz pós-keynesiano», pelo «juiz-superintendente da empresa pública judiciária»: um agente plástico, pragmático, carismático, produtivo e informal, coadjuvado por um staff assessorial e dotado de inteligência organizativa, capacidade mobilizadora e liderança motivacional. Admite-se a cogestão eventual da coisa processual pelas partes, desde que - aos olhos da tecnocracia judiciária - isso propicie «the just, speedy, and inexpressive determination of every action and proceeding» [Federal Rules of Civil Procedure dos EUA, Rule 1]. O importante é que a empresa judicial - com ou sem a participação democrática das partes - alcance as suas metas de produtividade, eliminando o congestionamento processual, flexibilizando procedimentos, calendarizando etapas, abreviando fases, informatizando expedientes e, em consequência, entregando a tutela jurisdicional em larga escala e em tempo célere.

 

VI

No garantismo processual, o processo se compara a um BEM PÚBLICO DE USO COMUM DO POVO. Daí por que a sua função fundamental não é atender às necessidades públicas da jurisdição, mas às necessidades particulares dos jurisdicionados [= qualquer pessoa, física ou jurídica, nacional ou estrangeira, de direito privado ou público, bem como quem tenha capacidade de estar em juízo ex vi legis]. Ao juiz não é dado empecilhar o uso popular do processo, v. g., mediante construções restritivas contra vel extra legem [ex.: jurisprudência defensiva]. Não obstante o processo seja público, não há nele a imbricação titular-objeto: os destinatários específicos (as partes) não são o proprietário (o Estado-juiz). Por isso, o processo não é uma «coisa pública do juiz» [= estrutura pública + função pública]. Tampouco é uma «coisa privada das partes» [= estrutura privada + função privada]. Na verdade, é uma «COISA PÚBLICA PARA AS PARTES» [= estrutura pública + função privada]. Encaixa-se mal na disputa privatismo versus publicismo. No entanto, «pública» não é aí sinônimo de «estatal», mas de legal: o uso comum do processo não obedece a ditames pessoais, unilaterais e subjetivos impostos pelo juiz ex parte principis, mas impessoais, omnilaterais e objetivos impostos pela lei ex parte civium. Além do mais, a preposição «para» tem ali força dativa, indicando entre «coisa» e «partes» uma relação de daçãodádivaofertabenefício. Portanto, não haveria propriamente «supressão» do interesse público pelos interesses privados, mas primazia. A dinâmica processual se rege por razões endógenas privadas instituídas pelas partes [= fator liberal]; contudo, podem ser temperadas excepcionalmente por razões exógenas públicas (cooperação, moralidade, igualdade, eficiência, ordem pública etc.), dês que mediante regras legais, expressas, claras, pontuais e discretas [= fator conservador]. Ou seja, os poderes do juiz sobre o uso processual são fortemente reduzidos, embora não eliminados. Em geral esses poderes se exercem com imparcialidade para garantir que as partes utilizem o processo em igualdade formal de condições e que o mau uso por uma não prejudique o bom uso pela outra. Todavia, não podem influenciar o modo de uso que as partes elegeram livremente para si de acordo com os seus próprios interesses.

 

VII

No cooperativismo processual, o processo é comparável a um CONDOMÍNIO PÚBLICO-PRIVADO. Isso quer dizer que Estado-juiz e parte são igualmente beneficiários do uso processual, sem qualquer hierarquia entre si. Assim, para que se atenda combinadamente aos direitos subjetivos individuais e ao direito objetivo do Estado, é preciso que nessa convivência condominial - moralizada, humanizada, não conflituosa, consensual - haja não só «coliving», mas também «coworking»: todos os sujeitos do processo devem abrir mão das suas estratégias manipulatórias e cooperar habermasianamente entre si, com sinceridade e desimpedimento, «para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva». Não existem polarizações do tipo «interesse público vs. interesse privado», «juiz vs. partes», «Estado vs. indivíduo», «autoridade vs. liberdade», «ex parte principis vs. ex parte civium», «razões exógenas vs. razões endógenas», «inquisitividade vs. dispositividade»: há tão apenas «razões», que são introduzidas de maneira espontânea por qualquer dos sujeitos processuais e comentados pelos outros dois. Tudo se passa dentro de uma «terceira via», ou seja, de uma comunidade neocorporativa de trabalho dialogal simétrico entre Estado-juiz e partes, que só é rompida quando o Estado-juiz precisa decidir. As partes são os bons sauvages de Rousseau, os «bons litigantes»; o juiz, o «juiz amigo», o «juiz companheiro», o «juiz camarada», o «juiz gente fina», o «juiz good fellow», o «juiz-Gasparzinho». Tamanho é o grau de irmandade que as partes beiram a imparcialidade e o juiz a parcialidade, quase que se equivalendo ocupacionalmente (isto é, um verdadeiro «processo non sense de Alice no País das Maravilhas»). Logo, o processo é uma «COISA MISTA DO JUIZ E DAS PARTES». É uma estrutura mista público-privada com função mista público-privada. É usada por todos os sujeitos processuais sob ideais social-democratas como boa-fé objetiva, colaboração, cooperação, comparticipação, parceria, fraternidade, solidariedade e função social. Daí a necessidade de se regular o uso compartilhado e de se resguardar a «boa vizinhança» por meio de uma convenção de condomínio, que muitas vezes é um compósito heterogêneo de leis e negócios processuais.

 

escola processual

estrutura do processo

função do processo

bem análogo

regime de uso

ideologia afim

privativismo

privada

privada

bem particular

coisa privada das partes

liberalismo clássico 

publicismo

pública

pública

bem público de uso especial

coisa pública do juiz

fascismo/socialismo

gerencialismo

privada

pública

benaziendale

coisa privada do juiz

neoliberalismo

garantismo

pública 

privada

bem público de uso comum do povo

coisa pública para as partes

liberal-conservadorismo

cooperativismo

mista

mista

condomínio público-privado

coisa mista do juiz e das partes

social-democracia

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Legal Gavel & Closed Law Book // Foto de: Blogtrepreneur // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/143601516@N03/27571522123

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura