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Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS DA ORDEM INTERNACIONAL CONTEMPORÂNEA 1 Flávia Piovesan 2 1. Introdução O objetivo deste ensaio é propor uma reflexão a respeito dos direitos humanos e seus desafios, na ordem internacional contemporânea. Para tanto, preliminarmente, será enfocada a concepção contemporânea de direitos humanos, à luz do sistema internacional de proteção, avaliando-se o seu perfil, os seus objetivos, a sua lógica e principiologia. O sistema internacional de proteção dos direitos humanos constitui o legado maior da chamada “Era dos Direitos”, que tem permitido a internacionalização dos direitos humanos e a humanização dos Direito Internacional contemporâneo, como atenta Thomas Buergenthal 3 . Em um segundo momento, serão avaliados os principais desafios para a implementação destes direitos, a fim de que o valor dos direitos humanos assuma a centralidade referencial a orientar a ordem contemporânea. Este texto serviu de base à conferência “Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas Contemporâneas”, proferida na abertura do IV Fórum Mundial de Juízes, em Porto Alegre, em 23 de janeiro de 2005. 1 2 Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direitos Humanos e Direito Constitucional; Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da PUC/SP, da PUC/PR e da Universidade Pablo de Olavide (Espanha); Procuradora do Estado de São Paulo; Visiting fellow do Harvard Human Rights Program (1995 e 2000); membro do Comitê Latino- Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulher (CLADEM) e membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. 3 Thomas Buergenthal, prólogo do livro de Antônio Augusto Cançado Trindade, A Proteção Internacional dos Direitos Humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, São Paulo, Saraiva, 19991, p.XXXI. No mesmo sentido, afirma Louis Henkin: “O Direito Internacional pode ser classificado como o Direito anterior à Segunda Guerra Mundial e o Direito posterior a ela. Em 1945, a vitória dos aliados introduziu uma nova ordem com importantes transformações no Direito Internacional.” (Louis Henkin et al, International Law: Cases and materials, 3a edição, Minnesota, West Publishing, 1993, p.03) 5 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan 2. Concepção contemporânea de direitos humanos Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas 4 . Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução 5 . Compõe um construído axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de nosso presente, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquim Herrera Flores 6 , os direitos humanos compõem a nossa racionalidade de resistência, na medida em que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Realçam, sobretudo, a esperança de um horizonte moral, pautada pela gramática da inclusão, refletindo a plataforma emancipatória de nosso tempo. Considerando a historicidade destes direitos, pode-se afirmar que a definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em vista tal pluralidade, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos 4 Norberto Bobbio, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988. 5 Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. A respeito, ver também Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p.134. No mesmo sentido, afirma Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos”. (Ignacy Sachs, Desenvolvimento, Direitos Humanos e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156). Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (…) O debate a respeito do que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de nosso passado e de nosso presente.” (Allan Rosas, So-Called Rights of the Third Generation, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 243). 6 Joaquim Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p.7. 6 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e descartabilidade da pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciganos,… O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça - a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido como projeto político e industrial 7 . É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea. Ao cristalizar a lógica da barbárie, da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, a Segunda Guerra Mundial simbolizou a ruptura com relação aos direitos humanos, significando o Pós Guerra a esperança de reconstrução destes mesmos direitos. É neste cenário que se manifesta a grande crítica e repúdio à concepção positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinado à ótica meramente formal – tendo em vista que o nazismo e o fascismo ascenderam ao poder dentro do quadro da legalidade e promoveram a barbárie em nome da lei. Sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos, no Pós Guerra, há, de um lado, a emergência do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, e, por outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e a valores. Vale dizer, no âmbito do Direito Internacional, começa a ser delineado o sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos. É como se se projetasse a vertente de um constitucionalismo global, vocacionado a proteger direitos fundamentais e limitar o poder do Estado, mediante a criação de um aparato internacional de proteção de direitos. Por sua vez, no âmbito do Direito Constitucional ocidental, percebe-se a elaboração de textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga axiológica, com destaque ao valor da dignidade humana. Daí a primazia ao valor da dignidade humana, como paradigma e 7 Ignacy Sachs, “O Desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos”, in Estudos Avançados 12 (33), 1998, p.149. 7 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan referencial ético, verdadeiro superprincípio a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local, regional e global, dotando-lhes especial racionalidade, unidade e sentido. Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes conseqüências: 1a) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é, transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania centrada no Estado para uma concepção “kantiana” de soberania centrada na cidadania universal 8 ; 2a) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Neste cenário, a Declaração de 1948 inova a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito 8 Para Celso Lafer, de uma visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos com relação ao Estado passa-se a uma visão ex parte populi, fundada na promoção da noção de direitos do cidadão. (Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática, São Paulo, Paz e Terra, 1999, p.145). 8 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos - do “mínimo ético irredutível”. Neste sentido, cabe destacar que, até 2003, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 149 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 146 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 132 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 170 Estadospartes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes. Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos. Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito dos Direitos Humanos. 9 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5o, afirma: "Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”.A Declaração de Viena afirma ainda a interdependência entre os valores dos Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento. Não há direitos humanos sem democracia e nem tampouco democracia sem direitos humanos. Vale dizer, o regime mais compatível com a proteção dos direitos humanos é o regime democrático. Atualmente, 140 Estados, dos quase 200 Estados que integram a ordem internacional, realizam eleições periódicas. Contudo, apenas 82 Estados (o que representa 57% da população mundial) são considerados plenamente democráticos. Em 1985, este percentual era de 38%, compreendendo 44 Estados 9 . O pleno exercício dos direitos políticos pode implicar o “empoderamento” das populações mais vulneráveis, o aumento de sua capacidade de pressão, articulação e mobilização políticas. Para Amartya Sen, os direitos políticos (incluindo a liberdade de expressão e de discussão) são não apenas fundamentais para demandar respostas políticas às necessidades econômicas, mas são centrais para a própria formulação destas necessidades econômicas 10 . Já o direito ao desenvolvimento demanda uma globalização ética e solidária. No entender de Mohammed Bedjaqui: “Na realidade, a dimensão internacional do direito ao desenvolvimento é nada mais que o direito a uma repartição eqüitativa concernente ao bem estar social e econômico mundial. Reflete uma demanda crucial de nosso tempo, na medida em que os quatro quintos da população mundial não mais aceitam o fato de um quinto da população mundial continuar a construir sua riqueza com base em sua pobreza”. 11 As assimetrias 9 Consultar UNDP, Human Development Report 2002: Deepening democracy in a fragmented world, New York/Oxford, Oxford University Press, 2002. 10 Amartya Sen, Foreword ao livro “Pathologies of Power”, Paul Farmer, Berkeley, University of California Press, 2003. 11 Mohammed Bedjaqui, The Right to Development, in M. Bedjaoui ed., International Law: Achievements and Prospects, 1991, p. 1182. 10 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan globais revelam que a renda dos 1% mais ricos supera a renda dos 57% mais pobres na esfera mundial 12 . Como atenta Joseph E. Stiglitz: “The actual number of people living in poverty has actually increased by almost 100 million. This occurred at the same time that total world income increased by an average of 2.5 percent annually”. 13 Para a World Health Organization: “poverty is the world’s greatest killer. Poverty wields its destructive influence at every stage of human life, from the moment of conception to the grave. It conspires with the most deadly and painful diseases to bring a wretched existence to all those who suffer from it.” 14 O desenvolvimento, por sua vez, há de ser concebido como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir, para adotar a concepção de Amartya Sen 15 . Acrescente-se ainda que a Declaração de Viena de 1993 enfatiza ser o direito ao desenvolvimento um direito universal e inalienável, parte integral dos direitos humanos fundamentais. Reitere-se que a Declaração de 12 A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford, Oxford University Press, 2002, p. 19. 13 Joseph E. Stiglitz, Globalization and its Discontents, New York/London, WW Norton Company, 2003, p.06. Acrescenta o autor: “Development is about transforming societies, improving the lives of the poor, enabling everyone to have a chance at success and access to health care and education.” (op.cit.p.252). 14 Paul Farmer, Pathologies of Power, Berkeley, University of California Press, 2003, p.50. De acordo com dados do relatório “Sinais Vitais”, do Worldwatch Institute (2003), a desigualdade de renda se reflete nos indicadores de saúde: a mortalidade infantil nos países pobres é 13 vezes maior do que nos países ricos; a mortalidade materna é 150 vezes maiores nos países de menor desenvolvimento com relação aos países industrializados. A falta de água limpa e saneamento básico mata 1,7 milhão de pessoas por ano (90% crianças), ao passo que 1,6 milhão de pessoas morrem de doenças decorrentes da utilização de combustíveis fósseis para aquecimento e preparo de alimentos. O relatório ainda atenta para o fato de que a quase totalidade dos conflitos armados se concentrar no mundo em desenvolvimento, que produziu 86% de refugiados na última década. 15 Ao conceber o desenvolvimento como liberdade, sustenta Amartya Sen: “Neste sentido, a expansão das liberdades é vista concomitantemente como 1) uma finalidade em si mesma e 2) o principal significado do desenvolvimento. Tais finalidades podem ser chamadas, respectivamente, como a função constitutiva e a função instrumental da liberdade em relação ao desenvolvimento. A função constitutiva da liberdade relaciona-se com a importância da liberdade substantiva para o engrandecimento da vida humana. As liberdades substantivas incluem as capacidades elementares, como a de evitar privações como a fome, a sub-nutrição, a mortalidade evitável, a mortalidade prematura, bem como as liberdades associadas com a educação, a participação política, a proibição da censura,… Nesta perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão destas e de outras liberdades fundamentais. Desenvolvimento, nesta visão, é o processo de expansão das liberdades humanas.” (Amartya Sen, op. cit. p.35-36 e p.297). Sobre o direito ao desenvolvimento, ver também Karel Vasak, For Third Generation of Human Rights: The Rights fo Solidarity, International Institute of Human Rights, 1979. 11 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan Viena reconhece a relação de interdependência entre a democracia, o desenvolvimento e os direitos humanos. Feitas essas considerações a respeito da concepção contemporânea de direitos humanos, transita-se à reflexão final, que tem por objetivo destacar os desafios centrais aos direitos humanos na ordem internacional contemporânea. 3. Direitos Humanos: Desafios da Ordem Internacional Contemporânea Serão destacados sete desafios considerados centrais à implementação dos direitos humanos na ordem contemporânea. 1º) Universalismo x Relativismo Cultural O debate entre os universalistas e os relativistas culturais retoma o dilema a respeito dos fundamentos dos direitos humanos: por que temos direitos? As normas de direitos humanos podem ter um sentido universal ou são culturalmente relativas? Para os universalistas, os direitos humanos decorrem da dignidade humana, enquanto valor intrínseco à condição humana. Defende-se, nesta perspectiva, o mínimo ético irredutível – ainda que possa se discutir o alcance deste “mínimo ético”. Para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em sociedade. Cada cultura possui determinada seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e históricas de cada sociedade. Não há moral universal, já que a história do mundo é a história de uma pluralidade de culturas. Há uma pluralidade de culturas no mundo e estas culturas produzem seus próprios valores. 16 Na visão de Jack Donnelly, há diversas correntes relativistas: “No extremo, há o que nós denominamos de relativismo cultural radical, que concebe a cultura como a única fonte de validade de um direito ou regra moral. (...) Um forte 16 . R.J. Vincent, Human rights and international relations, p. 37-38. 12 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan relativismo cultural acredita que a cultura é a principal fonte de validade de um direito ou regra moral.(...) Um relativismo cultural fraco, por sua vez, sustenta que a cultura pode ser uma importante fonte de validade de um direito ou regra moral”. 17 Para dialogar com Jack Donnelly, poder-se-ia sustentar a existência de diversos graus de universalismos, a depender do alcance do “mínimo ético irredutível”. No entanto, a defesa, por si só, deste mínimo ético, independentemente de seu alcance, apontará à corrente universalista — seja a um universalismo radical, forte ou fraco. Neste debate, destaca-se a visão de Boaventura de Souza Santos, em defesa de uma concepção multicultural de direitos humanos, inspirada no diálogo entre as culturas, a compor um multiculturalismo emancipatório. Para Boaventura: “os direitos humanos têm que ser reconceptualizados como multiculturais. O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos no nosso tempo”. 18 Prossegue o autor defendendo a necessidade de superar o debate sobre universalismo e relativismo cultural, a partir da transformação cosmopolita dos direitos humanos. Na medida em que todas culturas possuem concepções distintas de dignidade humana, mas são incompletas, haveria que se aumentar a consciência destas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto para um diálogo intercultural. A construção de uma concepção multicultural dos direitos humanos decorreria deste diálogo intercultural 19 . No mesmo sentido, Joaquim Herrera Flores sustenta um universalismo de confluência, ou seja, um universalismo de ponto de chegada e não de ponto de partida. No dizer de Herrera Flores: “(...) nossa visão complexa dos direitos baseiase em uma racionalidade de resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar a uma síntese universal das diferentes opções relativas a direitos. 17 . Jack Donnelly, Universal human rights in theory and practice, op. cit., p. 109-110. 18 A respeito ver Boaventura de Souza Santos, Uma concepção multicultural de direitos humanos, Revista Lua Nova, v. 39, São Paulo, 1997, p.112. 19 Boaventura de Souza Santos, op. cit. p.114. Adiciona o autor: “Neste contexto é útil distinguir entre globalização de-cima-para-baixo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização hegemônica e globalização contra-hegemônica. O que eu denomino de localismo globalizado e globalismo localizado são globalizações de-cima-para-baixo; cosmopolitanismo e patrimônio comum da humanidade são globalizações de-baixo-para cima.” (op.cit.p.111). 13 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan (...) O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes de) um processo conflitivo, discursivo de diálogo (...). Falamos de entrecruzamento e não de uma mera superposição de propostas” 20 . A respeito do diálogo entre as culturas, merece menção as reflexões de Amartya Sen sobre direitos humanos e valores asiáticos, particularmente pela crítica feita à interpretações autoritárias destes valores e pela defesa de que as culturas asiáticas (com destaque ao Budismo) enfatizam a importância da liberdade e da tolerância 21 . Menção também há que ser feita às reflexões de Abdullah Ahmed An-na’im, ao tratar dos direitos humanos no mundo islâmico, a partir de uma nova interpretação do islamismo e da Sharia 22 . Acredita-se, de igual modo, que a abertura do diálogo entre as culturas, com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura dos direitos humanos, inspirada pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um universalismo de confluência. Este universalismo de confluência, fomentado pelo ativo protagonismo da sociedade civil internacional 23 , a partir de suas demandas e reivindicações morais, é 20 Joaquim Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência, mimeo, p.7. 21 Amartya Sen, Human Rights and Asian Values, The New Republic 33-40 (July 14,1997), Apud Louis Henkin at al, Human Rights. New York, New York Foundation Press, 1999, p.113-116. A respeito da perspectiva multicultural dos direitos humanos e das diversas tradições religiosas, ver Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita, César Augusto Baldi (org.), Rio de Janeiro, ed. Renovar, 2004, em especial os artigos de Chandra Muzaffar, Islã e direitos humanos; Damien Keown, Budismo e direitos humanos; Tu Weiming, Os direitos humanos como um discurso moral confuciano; e Ashis Nandy, A política do secularismo e o resgate da tolerância religiosa. 22 Abdullah Ahmed An-na’im, Human Rights in the Muslim World, 3 Harvard Human Rights Journal, 13 (1990), Apud Henry J. Steiner e Philip Alston, International Human Rights in Context, p.389-398. Como observa Daniela Ikawa: “An-na’im ilustra a possibilidade do diálogo entre culturas a partir de uma das condições colocadas por Boaventura: a adoção da versão cultural que inclua o maior grau de diversidade, no caso, que inclua também as mulheres em relação de igualdade com os homens. An-na’im prevê uma possibilidade de intercâmbio cultural pautado na reinterpretação de certas bases culturais, como ocorre na reinterpretação do Corão. Essa reinterpretação possibilitaria um diálogo entre a cultura islâmica e a cultura dos direitos humanos, ao menos no que toca ao direitos das mulheres”. (Daniela Ikawa, Universalismo, Relativismo e Direitos Humanos, In: Maria de Fátima Ribeiro e Valério de Oliveira Mazzuoli, Direito Internacional dos Direitos Humanos: Estudos em Homenagem à Professora Flávia Piovesan, Curitiba, ed. Juruá, 2004, p.124). Se em 1948 apenas 41 organizações não-governamentais tinham status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social, em 2004 este número alcança aproximadamente 2350 organizações não-governamentais com status consultivo. Sobre o tema, consultar Gay J. McDougall, Decade for 23 14 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan que assegurará a legitimidade do processo de construção de parâmetros internacionais mínimos voltados à proteção dos direitos humanos. 2º) Laicidade Estatal x Fundamentalismos religiosos Um segundo desafio central à implementação dos direitos humanos é o da laicidade estatal. Isto porque o Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos, especialmente nos campos da sexualidade e reprodução 24 . Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião. Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não têm o direito a pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico. No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas as religiões mereçam igual consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo, qualquer religião oficial, que se transforme na única concepção estatal, a abolir a dinâmica de uma sociedade aberta, livre, diversa e plural. Há o dever do Estado em garantir as condições de igual liberdade religiosa e moral, em um contexto desafiador em que, se de um lado o Estado contemporâneo busca separar-se da religião, esta, por sua vez, busca adentrar nos domínios do Estado (ex: bancadas religiosas no Legislativo). Destacam-se, aqui, duas estratégias: a) reforçar o princípio da laicidade estatal, com ênfase à Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação com base em Intolerância Religiosa; e b) fortalecer leituras e NGO Struggle, In: Human Rights Brief – 10th Anniversary, American University Washington College of Law, Center for Human Rights and Humanitarian Law, v.11, issue 3 (spring 2004), p.13 Ver a respeito Miriam Ventura, Leila Linhares Barsted, Daniela Ikawa e Flavia Piovesan (org.), “Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos na perspectiva dos direitos humanos”, Rio de Janeiro, Advocaci/UNFPA, 2003. 24 15 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan interpretações progressistas no campo religioso, de modo a respeitar os direitos humanos 25 . 3º) Direito ao Desenvolvimento x Assimetrias Globais O terceiro desafio traduz a tensão entre o direito ao desenvolvimento e as assimetrias globais. Em 1986, foi adotada pela ONU a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento por 146 Estados, com um voto contrário (EUA) e 8 abstenções. Para Allan Rosas: “A respeito do conteúdo do direito ao desenvolvimento, três aspectos devem ser mencionados. Em primeiro lugar, a Declaração de 1986 endossa a importância da participação. (…) Em segundo lugar, a Declaração deve ser concebida no contexto das necessidades básicas de justiça social. (…) Em terceiro lugar, a Declaração enfatiza tanto a necessidade de adoção de programas e políticas nacionais, como da cooperação internacional. (…)” 26 Deste modo, o direito ao desenvolvimento compreende três dimensões: a) a importância da participação, com realce ao componente democrático a orientar a formulação de políticas públicas. A sociedade civil clama por maior transparência, democratização e accountability na gestão do orçamento público e na construção e implementação de políticas públicas; b) a proteção às necessidades básicas de justiça social, enunciando a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento que: “A pessoa humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser ativa participante e beneficiária do direito ao desenvolvimento.”; e c) a necessidade de adoção de programas e políticas nacionais, como de cooperação internacional – já que a efetiva cooperação internacional é essencial para prover aos países em desenvolvimento meios que encorajem o direito ao desenvolvimento. A respeito, adiciona o artigo 4o da Declaração que os 25 A título exemplificativo, mencione-se a atuação das Católicas pelo Direito de Decidir e o trabalho de Abdullahi Na-Na’im acerca da reinterpretação do islamismo à luz dos direitos humanos. Allan Rosas, The Right to Development, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 254-255. 26 16 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan Estados têm o dever de adotar medidas, individualmente ou coletivamente, voltadas a formular políticas de desenvolvimento internacional, com vistas a facilitar a plena realização de direitos, acrescentando que a efetiva cooperação internacional é essencial para prover aos países em desenvolvimento meios que encorajem o direito ao desenvolvimento. Em uma arena global não mais marcada pela bipolaridade Leste/Oeste, mas sim pela bipolaridade Norte/Sul, abrangendo os país desenvolvidos e em desenvolvimento (sobretudo as regiões da América Latina, Ásia e África), há que se demandar uma globalização mais ética e solidária. Note-se que, em face das assimetrias globais, os 15% mais ricos concentram 85% da renda mundial, enquanto que os 85% mais pobres concentram 15% da renda mundial. Se, tradicionalmente, a agenda de direitos humanos centrou-se na tutela de direitos civis e políticos, sob o forte impacto da “voz do Norte”, testemunha-se, atualmente, a ampliação desta agenda tradicional, que passa a incorporar novos direitos, com ênfase nos direitos econômicos, sociais e culturais, no direito ao desenvolvimento, no direito à inclusão social e na pobreza como violação de direitos. Este processo permite ecoar a “voz própria do Sul”, capaz de revelar as preocupações, demandas e prioridades desta região. Neste contexto, é fundamental consolidar e fortalecer o processo de afirmação dos direitos humanos, sob esta perspectiva integral, indivisível e interdependente. 4º) Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais x Desafios Globalização Econômica O quarto desafio relaciona-se com o terceiro, na medida em que aponta aos dilemas decorrentes do processo de globalização econômica, com destaque à temerária flexibilização dos direitos sociais. Nos anos 90, as políticas neoliberais, fundadas no livre mercado, nos programas de privatização e na austeridade econômica, permitiram que, hoje, sejam antes os Estados que se achem incorporados aos mercados e não a economia 17 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan política às fronteiras estatais, como salienta Jurgen Habermas 27 . A globalização econômica tem agravado ainda mais as desigualdades sociais, aprofundando-se as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social. Lembre-se que o próprio então diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, em seu último discurso oficial, afirmou que “desmantelar sistematicamente o Estado não é o caminho para responder aos problemas das economias modernas. (…) A pobreza é a ameaça sistêmica fundamental à estabilidade em um mundo que se globaliza” 28 . Considerando os graves riscos do processo de desmantelamento das políticas públicas sociais, há que se redefinir o papel do Estado sob o impacto da globalização econômica. Há que se reforçar a responsabilidade do Estado no tocante à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais. Como adverte Asbjorn Eide: “Caminhos podem e devem ser encontrados para que o Estado assegure o respeito e a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, de forma a preservar condições para uma economia de mercado relativamente livre. A ação governamental deve promover a igualdade social, enfrentar as desigualdades sociais, compensar os desequilíbrios criados pelos mercados e assegurar um desenvolvimento humano sustentável. A relação entre governos e mercados deve ser complementar.” 29 No mesmo sentido, pontua Jack Donnelly: “Mercados livres são economicamente análogos ao sistema político baseado na regra da maioria, sem contudo a observância aos direitos das minorias. As políticas sociais, sob esta perspectiva, são essenciais para assegurar que as minorias, em desvantagem ou privadas pelo mercado, sejam consideradas com o mínimo respeito na esfera 27 Jurgen Habermas, Nos Limites do Estado, Folha de São Paulo, Caderno Mais!, p.5, 18 de julho de 1999. 28 “Camdessus crítica desmonte do Estado”, Folha de São Paulo, 14.02.2000. Asbjorn Eide, Obstacles and Goals to be Pursued, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p.383. Acrescenta o autor: “Onde a renda é igualmente distribuída e as oportunidades razoavelmente equânimes, os indivíduos estão em melhores condições para tratar de seus interesses e há uma menor necessidade de despesas públicas por parte do Estado. Quando, por outro lado, a renda é injustamente distribuída, a demanda por iguais oportunidades e igual exercício de direitos econômicos, sociais e culturais requer maior despesa estatal, baseada em uma tributação progressiva e outras medidas. Paradoxalmente, entretanto, a tributação para despesas públicas nas sociedades igualitárias parece mais bem vinda que nas sociedades em que a renda é injustamente distribuída.” (Asbjorn Eide.Economic, Social and Cultural Rights as Human Rights, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p.40). 29 18 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan econômica. (...) Os mercados buscam eficiência e não justiça social ou direitos humanos para todos.” 30 No contexto da globalização econômica, faz-se também premente a incorporação da agenda de direitos humanos por atores não estatais. Neste sentido, surgem 3 atores fundamentais: a) agências financeiras internacionais; b) blocos regionais econômicos; e c) setor privado. Com relação às agências financeiras internacionais, há o desafio de que os direitos humanos possam permear a política macro-econômica, de forma a envolver a política fiscal, a política monetária e a política cambial. As instituições econômicas internacionais devem levar em grande consideração a dimensão humana de suas atividades e o forte impacto que as políticas econômicas podem ter nas economias locais, especialmente em um mundo cada vez mais globalizado 31 . Embora as agências financeiras internacionais estejam vinculadas ao sistema das Nações Unidas, na qualidade de agências especializadas, o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, por exemplo, carecem da formulação de uma política vocacionada aos direitos humanos. Tal política é medida imperativa para o alcance dos propósitos da ONU e, sobretudo, para a coerência ética e principiológica que há de pautar sua atuação. A agenda de direitos humanos deve ser, assim, incorporada no mandato de atuação destas agências. Há que se romper com os paradoxos que decorrem das tensões entre a tônica includente voltada para a promoção dos direitos humanos, consagrada nos relevantes tratados de proteção dos direitos humanos da ONU (com destaque ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) e, por outro lado, a tônica excludente ditada pela atuação especialmente do Fundo Monetário Internacional, na medida em que a sua política, orientada pela chamada 30 Jack Donnelly, International Human Rights, Westview Press, Boulder, 1998, p.160. “Aliviar o sofrimento da pobreza e adotar políticas compensatórias são funções do Estado e não do mercado. Estas são demandas relacionadas à justiça, a direitos e a obrigações e não à eficiência. (...) Os mercados simplesmente não podem tratá-las – porque não são vocacionados para isto.” (Jack Donnelly, Ethics and International Human Rights, in: Ethics and International Affairs, Japão, United Nations University Press, 2001, p.153). Cf. Mary Robinson, Constructing an International Financial, Trade and Development Architeture: The Human Rights Dimension, Zurich, 1 July 1999, www.unhchr.org. Adiciona Mary Robinson: “A título de exemplo, um economista já advertiu que o comércio e a política cambial podem ter maior impacto no desenvolvimento dos direitos das crianças que propriamente o alcance do orçamento dedicado à saúde e educação. Um incompetente diretor do Banco Central pode ser mais prejudicial aos direitos das crianças que um incompetente Ministro da Educação”. (op. cit) 31 19 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan “condicionalidade”, submete países em desenvolvimento a modelos de ajuste estrutural incompatíveis com os direitos humanos 32 . Além disso, há que se fortalecer a democratização, a transparência e a accountability destas instituições 33 . Note-se que 48% do poder de voto no FMI concentra-se nas mãos de 7 Estados (US, Japão, França, Inglaterra, Arábia Saudita, China e Rússia), enquanto que no Banco Mundial 46% do poder de voto concentra-se nas mãos também destes mesmos Estados 34 . Na percepção crítica de Joseph E. Stiglitz: “(...) we have a system that might be called global governance without global government, one in which a few institutions – the World Bank, the IMF, the WTO – and a few players – the finance, commerce, and trade ministries, closely linked to certain financial and commercial interests – dominate the scene, but in which many of those affected by their decisions are left almost voiceless. It’s time to change some of the rules governing the international economic order (...)” 35 . 32 Afirma Jeffrey Sachs: “Aproximadamente 700 milhões de pessoas – as mais empobrecidas – estão em débito perante os países ricos. Os chamados “Highly Indebted Poor Countries” (países pobres altamente endividados) compõem um grupo de quarenta e duas economias financeiramente falidas e largamente desestruturadas. Eles devem mais de $100 milhões em dívida não paga ao Banco Mundial, ao Fundo Monetário Internacional, a demais Bancos de desenvolvimento e governos (...). Muitos deste empréstimos foram feitos em regimes tirânicos para responder aos propósitos da Guerra Fria. Muitos refletem idéias equivocadas do passado. (...) O Jubileu 2000, uma organização que tem o apoio de pessoas tão diversas como o Papa João Paulo II, Jesse Jackson e Bono, o cantor de rock, tem defendido a eliminação da dívida externa dos países mais pobres do mundo. A idéia é freqüentemente vista como irrealista, mas são os realistas que fracassam ao compreender as oportunidades econômicas da ordem contemporânea. (...) Em 1996 o FMI e o Banco Mundial anunciaram um programa de grande impacto, mas sem prover um diálogo verdadeiro com os países afetados. Três anos depois, estes planos fracassaram. Apenas 2 países, Bolívia e Uganda, receberam $200 milhões, enquanto que 40 países aguardam na fila. No mesmo período, a bolsa de valores dos países ricos cresceu mais de $5 trilhões, mais que 50 vezes que o débito dos quarenta e dois países pobres. Assim, é um jogo cruel dos países mais ricos do mundo protestar que eles não teriam como cancelar as dívidas.” (Jeffrey Sachs, Release the Poorest Countries for Debt Bondage, International Herald Tribune, 12 e 13 de junho de 1999, p.8, apud Henry Steiner e Philip Alston, International Human Rights in Context: Law, Politics and Morals, second edition, Oxford, Oxford University Press, 2000, p.1329-1330). 33 A respeito, consultar Joseph E. Stiglitz, Globalization and its Discontents, New York/London, WW Norton Company, 2003. Para o autor: “When crises hit, the IMF prescribed outmoded, inappropriate, if standard solutions, without considering the effects they would have on the people in the countries told to follow these policies. Rarely did I see forecasts about what the policies would do to poverty. Rarely did I see thoughtful discussions and analyses of the consequences of alternative policies. There was a single prescription. Alternative opinions were not sought. Open, frank discussion was discouraged – there is no room for it. Ideology guided policy prescription and countries were expected to follow the IMF guidelines without debate. These attitudes made me cringe. It was not that they often produced poor results; they were antidemocratic.”(op.cit. p.XIV). 34 A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford, Oxford University Press, 2002. 35 Joseph E. Stiglitz, op.cit.p.21-22. 20 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan Quanto aos blocos regionais econômicos, vislumbram-se, do mesmo modo, os paradoxos que decorrem das tensões entre a tônica excludente do processo de globalização econômica e os movimentos que intentam reforçar a democracia e os direitos humanos como parâmetros a conferir lastro ético e moral à criação de uma nova ordem internacional. De um lado, portanto, lança-se a tônica excludente do processo de globalização econômica e, de outro lado, emerge a tônica includente do processo de internacionalização dos direitos humanos, somado ao processo de incorporação das cláusulas democráticas e direitos humanos pelos blocos econômicos regionais. Embora a formação de blocos econômicos de alcance regional, tanto na União Européia, como no Mercosul, tenha buscado não apenas a integração e cooperação de natureza econômica, mas posterior e paulatinamente a consolidação da democracia e a implementação dos direitos humanos nas respectivas regiões (o que se constata com maior evidência na União Européia e de forma ainda bastante incipiente no Mercosul), observa-se que as cláusulas democráticas e de direitos humanos não foram incorporadas na agenda do processo de globalização econômica. No que se refere ao setor privado, há também a necessidade de acentuar sua responsabilidade social, especialmente das empresas multinacionais, na medida em que constituem as grandes beneficiárias do processo de globalização, bastando citar que das 100 (cem) maiores economias mundiais, 51 (cinqüenta e uma) são empresas multinacionais e 49 (quarenta e nove) são Estados nacionais. Por exemplo, importa encorajar empresas a adotarem códigos de direitos humanos relativos à atividade de comércio; demandar sanções comerciais a empresas violadoras dos direitos sociais; adotar a “taxa Tobin” sobre os investimentos financeiros internacionais, dentre outras medidas. 5º) Respeito à Diversidade x Intolerâncias Em razão da indivisibilidade dos direitos humanos, a violação aos direitos econômicos, sociais e culturais propicia a violação aos direitos civis e políticos, eis que a vulnerabilidade econômico-social leva à vulnerabilidade dos direitos civis e políticos. No dizer de Amartya Sen: “A negação da liberdade econômica, sob a forma da pobreza extrema, torna a pessoa vulnerável a violações de outras formas de liberdade.(…) A negação da liberdade econômica implica na negação da 21 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan liberdade social e política.” 36 O processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os grupos sociais vulneráveis, como as mulheres e a população afro-descedentes (daí os fenômenos da “feminização” e “etnicização” da pobreza). Se no mundo hoje há 1 bilhão de analfabetos adultos, 2/3 são mulheres. A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão. Isto é, a implementação dos direitos humanos requer a universalidade e a indivisibilidade destes direitos, acrescidas do valor da diversidade. Nas lições de Paul Farmer: “The concept of human rights may at times be brandished as an all-purpose and universal tonic, but it was developed to protect the vulnerable. The true value of human rights movement’s central documents is revealed only when they serve to protect the rights of those who are most likely to have their rights violated. The proper beneficiaries of the Universal Declaration of Human Rights (...) are the poor and otherwise disempowered”. 37 A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia sido orientada para o extermínio), com base na igualdade formal. Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e diferenciada. Neste cenário as mulheres, as crianças, a população afrodescendentes, os migrantes, as pessoas portadoras de deficiência, dentre outras categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de sua condição social. Ao lado do direito `a igualdade, surge, também, como direito fundamental, o direito `a diferença. Importa o respeito `a diferença e `a diversidade, o que lhes assegura um tratamento especial. Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que, ao seu tempo, foi crucial para abolição de privilégios); b) a igualdade material, 36 Amartya Sen, Development as Freedom, Alfred A. Knopf, New York, 1999, p.08. 37 Paul Farmer, op.cit.p.212. 22 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios). Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e reconhecimento de identidades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em função de status.” 38 Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição somada ao reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a realização da igualdade 39 . Ainda Boaventura acrescenta: “temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades” 40 . Considerando os processos de “feminização” e “etnicização” da pobreza, há a necessidade de adoção, ao lado das políticas universalistas, de políticas específicas, capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de vulnerabilidade, visando ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às 38 Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro afro-americano de Wall Street, que não pode conseguir um táxi. Neste caso, a injustiça da falta de reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desempregado em virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa. Neste caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. (...) Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta concepção trata da redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir uma à outra, abarca ambas em um marco mais amplo”. (Nancy Fraser, Redistribución, reconocimiento y participación: hacia un concepto integrado de la justicia, In: Unesco, Informe Mundial sobre la Cultura – 2000-2001, p.55-56). 39 A respeito, ver Boaventura de Souza Santos, Introdução: para ampliar o cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.56. Ver ainda do mesmo autor “Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos”. In: op.cit. p.429-461. 40 Ver Boaventura de Souza Santos, op. cit. 23 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan populações afro-descendentes, adotar políticas “neutras” no tocante ao gênero, à raça/etnia, significa perpetuar este padrão de desigualdade e exclusão. Daí a urgência no combate de toda e qualquer forma de racismo; sexismo; homofobia; xenofobia e outras formas de intolerância correlatas, tanto mediante a vertente repressiva (que proíbe e pune a discriminação e a intolerância), como mediante a vertente promocional (que promove a igualdade). 6º) Combate ao Terror x Preservação de Direitos e Liberdades Públicas O desafio de combater todas as formas de intolerância se soma ao sexto desafio, que realça o dilema de preservação dos direitos e das liberdades públicas no enfrentamento ao terror. No cenário do Pós 11 de setembro o risco é que a luta contra o terror comprometa o aparato civilizatório de direitos, liberdades e garantias, sob o clamor de segurança máxima. Basta atentar à doutrina de segurança adotada nos EUA pautada: a) no unilateralismo; b) nos ataques preventivos e c) na hegemonia do poderia militar norte-americano. Atente-se às nefastas conseqüências para a ordem internacional se cada um dos duzentos Estados que integram a ordem internacional invocasse para si o direito de cometer “ataques preventivos”, com base no unilateralismo. Seria lançar o próprio atestado de óbito do Direito Internacional, celebrando o mais puro hobbesiano “Estado da Natureza”, em que a guerra é o termo forte e a paz se limita a ser a ausência da guerra. A escusa de combater o chamado “império do mal” tem propagado, sobretudo, o “mal do império”. Pesquisas demonstram o perverso impacto do Pós 11 de setembro, na composição de uma agenda global tendencialmente restritiva de direitos e liberdades. A título de exemplo, cite-se pesquisas acerca da legislação aprovada, nos mais diversos países, ampliando a aplicação da pena de morte e demais penas; tecendo discriminações insustentáveis; afrontando o devido processo legal e o direito a um julgamento público e justo; admitindo a extradição sem a 24 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan garantia de direitos; restringindo direitos, como a liberdade de reunião e de expressão; dentre outras medidas 41 . No segundo mandato da era Bush, inaugurado em 20 de janeiro de 2005, foi empossado como Secretario de Justiça o autor de memorando que justifica o uso da tortura no combate ao terrorismo. Como preservar a Era dos Direitos em tempos de terror? 7º) Unilateralismo x Multilateralismo: Fortalecer o Estado de Direito e a Construção da Paz nas Esferas Global, Regional e Local mediante uma Cultura de Direitos Humanos Por fim, cabe enfatizar que, no contexto Pós 11 de setembro, emerge o desafio de prosseguir no esforço de construção de um “Estado de Direito Internacional”, em uma arena que está por privilegiar o “Estado Polícia” no campo internacional, fundamentalmente guiado pelo lema da força e segurança internacional. Contra o risco do terrorismo de Estado e do enfrentamento do terror, com instrumentos do próprio terror, só resta uma via – a via construtiva de consolidação dos delineamentos de um “Estado de Direito” no plano internacional. Só haverá um efetivo Estado de Direito Internacional sob o primado da legalidade, com o “império do Direito”, com o poder da palavra e a legitimidade do consenso. À luz deste cenário, marcado pelo poderio de uma única superpotência mundial, o equilíbrio da ordem internacional exigirá o avivamento do multilateralismo e o fortalecimento da sociedade civil internacional, a partir de um solidarismo cosmopolita. Quanto à multilateralismo, ressalte-se o processo e justicialização do Direito Internacional. Para Norberto Bobbio, a garantia dos direitos humanos no plano internacional só será implementada quando uma “jurisdição internacional se impuser concretamente sobre as jurisdições nacionais, deixando de operar dentro dos Estados, mas contra os Estados e em defesa dos cidadãos.” 42 41 Ver, dentre outras, a pesquisa apontada no artigo For whom the Liberty Bell tolls, The Economist, august 31, 2002, p. 18-20. 42 Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, op. cit. p. 25-47. 25 Caderno de Direito Constitucional – 2006 Flávia Piovesan É necessário que se avance no processo de justicialização dos direitos humanos internacionalmente enunciados. Associa-se a idéia de Estado de Direito com a existência de Cortes independentes, capazes de proferir decisões obrigatórias e vinculantes. Neste quadro emerge ainda o fortalecimento da sociedade civil internacional, com imenso repertório imaginativo e inventivo, mediante networks/redes que aliam e fomentam a interlocução entre entidades locais, regionais e globais, a partir de um solidarismo cosmopolita. Se em 1948 apenas 41 ONGs tinham status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, em 2004 este número aponta a aproximadamente 2350 ONGs. Multilateralismo e sociedade civil internacional: são estas as únicas forças capazes de deter o amplo grau de discricionariedade do poder do Império, civilizar este temerário “Estado da Natureza” e permitir que, de alguma forma, o império do direito possa domar a força do império. Se, no início, este artigo acentuava que os direitos humanos não são um dado, mas um construído, enfatiza-se agora que a violação a estes direitos também o são. Isto é, as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias são um construído histórico, a ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco de romper com a cultura da “naturalização” da desigualdade e da exclusão social, que, enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino de nossa humanidade. Há que se enfrentar essas amarras, mutiladoras do protagonismo, da cidadania, da dignidade e da potencialidade de seres humanos. Diante destes desafios resta concluir pela crença na implementação dos direitos humanos, como a racionalidade de resistência e única plataforma emancipatória de nosso tempo. 26