Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
DIREITOS HUMANOS: DESAFIOS DA ORDEM INTERNACIONAL
CONTEMPORÂNEA 1
Flávia Piovesan 2
1. Introdução
O objetivo deste ensaio é propor uma reflexão a respeito dos direitos
humanos e seus desafios, na ordem internacional contemporânea.
Para tanto, preliminarmente, será enfocada a concepção contemporânea
de direitos humanos, à luz do sistema internacional de proteção, avaliando-se o seu
perfil, os seus objetivos, a sua lógica e principiologia. O sistema internacional de
proteção dos direitos humanos constitui o legado maior da chamada “Era dos
Direitos”, que tem permitido a internacionalização dos direitos humanos e a
humanização dos Direito Internacional contemporâneo, como atenta Thomas
Buergenthal 3 .
Em um segundo momento, serão avaliados os principais desafios para a
implementação destes direitos, a fim de que o valor dos direitos humanos assuma a
centralidade referencial a orientar a ordem contemporânea.
Este texto serviu de base à conferência “Direitos Humanos: Desafios e Perspectivas
Contemporâneas”, proferida na abertura do IV Fórum Mundial de Juízes, em Porto Alegre, em 23 de
janeiro de 2005.
1
2
Professora Doutora da PUC/SP nas disciplinas de Direitos Humanos e Direito Constitucional;
Professora de Direitos Humanos dos Programas de Pós Graduação da PUC/SP, da PUC/PR e da
Universidade Pablo de Olavide (Espanha); Procuradora do Estado de São Paulo; Visiting fellow do
Harvard Human Rights Program (1995 e 2000); membro do Comitê Latino- Americano e do Caribe
para a Defesa dos Direitos das Mulher (CLADEM) e membro do Conselho Nacional de Defesa dos
Direitos da Pessoa Humana.
3
Thomas Buergenthal, prólogo do livro de Antônio Augusto Cançado Trindade, A Proteção
Internacional dos Direitos Humanos: fundamentos jurídicos e instrumentos básicos, São Paulo,
Saraiva, 19991, p.XXXI. No mesmo sentido, afirma Louis Henkin: “O Direito Internacional pode ser
classificado como o Direito anterior à Segunda Guerra Mundial e o Direito posterior a ela. Em 1945, a
vitória dos aliados introduziu uma nova ordem com importantes transformações no Direito
Internacional.” (Louis Henkin et al, International Law: Cases and materials, 3a edição, Minnesota,
West Publishing, 1993, p.03)
5
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2. Concepção contemporânea de direitos humanos
Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando
devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não
nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas 4 . Para Hannah Arendt, os
direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em
constante processo de construção e reconstrução 5 . Compõe um construído
axiológico, fruto da nossa história, de nosso passado, de nosso presente, a partir de
um espaço simbólico de luta e ação social. No dizer de Joaquim Herrera Flores 6 , os
direitos humanos compõem a nossa racionalidade de resistência, na medida em que
traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade
humana. Realçam, sobretudo, a esperança de um horizonte moral, pautada pela
gramática da inclusão, refletindo a plataforma emancipatória de nosso tempo.
Considerando a historicidade destes direitos, pode-se afirmar que a
definição de direitos humanos aponta a uma pluralidade de significados. Tendo em
vista tal pluralidade, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos
humanos, que veio a ser introduzida com o advento da Declaração Universal de
1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.
Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos
humanos, que constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo,
a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos
durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos
4
Norberto Bobbio, Era dos Direitos, trad. Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro, Campus, 1988.
5
Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. A
respeito, ver também Celso Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos: Um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt, Cia das Letras, São Paulo, 1988, p.134. No mesmo sentido, afirma
Ignacy Sachs: “Não se insistirá nunca o bastante sobre o fato de que a ascensão dos direitos é fruto
de lutas, que os direitos são conquistados, às vezes, com barricadas, em um processo histórico cheio
de vicissitudes, por meio do qual as necessidades e as aspirações se articulam em reivindicações e
em estandartes de luta antes de serem reconhecidos como direitos”. (Ignacy Sachs,
Desenvolvimento, Direitos Humanos e Cidadania, In: Direitos Humanos no Século XXI, 1998, p.156).
Para Allan Rosas: “O conceito de direitos humanos é sempre progressivo. (…) O debate a respeito do
que são os direitos humanos e como devem ser definidos é parte e parcela de nossa história, de
nosso passado e de nosso presente.” (Allan Rosas, So-Called Rights of the Third Generation, In:
Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff
Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p. 243).
6
Joaquim Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência,
mimeo, p.7.
6
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humanos, a era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e descartabilidade da
pessoa humana, que resultou no envio de 18 milhões de pessoas a campos de
concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de
comunistas, homossexuais, ciganos,… O legado do nazismo foi condicionar a
titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a
determinada raça - a raça pura ariana. No dizer de Ignacy Sachs, o século XX foi
marcado por duas guerras mundiais e pelo horror absoluto do genocídio concebido
como projeto político e industrial 7 .
É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos
humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional
contemporânea. Ao cristalizar a lógica da barbárie, da destruição e da
descartabilidade da pessoa humana, a Segunda Guerra Mundial simbolizou a
ruptura com relação aos direitos humanos, significando o Pós Guerra a esperança
de reconstrução destes mesmos direitos.
É neste cenário que se manifesta a grande crítica e repúdio à concepção
positivista de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, confinado à ótica
meramente formal – tendo em vista que o nazismo e o fascismo ascenderam ao
poder dentro do quadro da legalidade e promoveram a barbárie em nome da lei.
Sob o prisma da reconstrução dos direitos humanos, no Pós Guerra,
há, de um lado, a emergência do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”, e, por
outro, a nova feição do Direito Constitucional ocidental, aberto a princípios e a
valores.
Vale dizer, no âmbito do Direito Internacional, começa a ser delineado o
sistema normativo internacional de proteção dos direitos humanos. É como se se
projetasse a vertente de um constitucionalismo global, vocacionado a proteger
direitos fundamentais e limitar o poder do Estado, mediante a criação de um aparato
internacional de proteção de direitos.
Por sua vez, no âmbito do Direito Constitucional ocidental, percebe-se a
elaboração de textos constitucionais abertos a princípios, dotados de elevada carga
axiológica, com destaque ao valor da dignidade humana.
Daí a primazia ao valor da dignidade humana, como paradigma e
7
Ignacy Sachs, “O Desenvolvimento enquanto apropriação dos direitos humanos”, in Estudos
Avançados 12 (33), 1998, p.149.
7
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referencial
ético,
verdadeiro
superprincípio
a
orientar
o
constitucionalismo
contemporâneo, nas esferas local, regional e global, dotando-lhes especial
racionalidade, unidade e sentido.
Fortalece-se a idéia de que a proteção dos direitos humanos não deve se
reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse
internacional. Por sua vez, esta concepção inovadora aponta a duas importantes
conseqüências:
1a) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que
passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas
intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; isto é,
transita-se de uma concepção “hobbesiana” de soberania centrada no Estado para
uma concepção “kantiana” de soberania centrada na cidadania universal 8 ;
2a) a cristalização da idéia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos
na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.
Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o
Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição
doméstica, decorrência de sua soberania.
Neste cenário, a Declaração de 1948 inova a gramática dos direitos
humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos,
marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos. Universalidade porque
clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a
condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando
o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e
dignidade. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição
para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando
um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem,
assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de
conjugar o catálogo de direitos civis e políticos ao catálogo de direitos sociais,
econômicos e culturais.
A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito
8
Para Celso Lafer, de uma visão ex parte príncipe, fundada nos deveres dos súditos com relação ao
Estado passa-se a uma visão ex parte populi, fundada na promoção da noção de direitos do cidadão.
(Comércio, Desarmamento, Direitos Humanos: reflexões sobre uma experiência diplomática, São
Paulo, Paz e Terra, 1999, p.145).
8
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Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos
internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e
unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade,
indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos.
O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação
de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado
por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética
contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o
consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da
salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos - do “mínimo ético irredutível”.
Neste sentido, cabe destacar que, até 2003, o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos contava com 149 Estados-partes; o Pacto Internacional dos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 146 Estados-partes; a
Convenção contra a Tortura contava com 132 Estados-partes; a Convenção sobre a
Eliminação da Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes; a Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 170 Estadospartes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla
adesão, com 191 Estados-partes.
Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de
proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais,
particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do
sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez,
integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos
humanos.
Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares.
Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo
instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica,
os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos
indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes
sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de
proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos
fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito dos
Direitos Humanos.
9
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Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993,
reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5o, afirma:
"Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A
comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma
justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”.A Declaração de
Viena afirma ainda a interdependência entre os valores dos Direitos Humanos,
Democracia e Desenvolvimento.
Não há direitos humanos sem democracia e nem tampouco democracia
sem direitos humanos. Vale dizer, o regime mais compatível com a proteção dos
direitos humanos é o regime democrático. Atualmente, 140 Estados, dos quase 200
Estados que integram a ordem internacional, realizam eleições periódicas. Contudo,
apenas 82 Estados (o que representa 57% da população mundial) são considerados
plenamente democráticos. Em 1985, este percentual era de 38%, compreendendo
44
Estados 9 .
O
pleno
exercício
dos
direitos
políticos
pode
implicar
o
“empoderamento” das populações mais vulneráveis, o aumento de sua capacidade
de pressão, articulação e mobilização políticas. Para Amartya Sen, os direitos
políticos (incluindo a liberdade de expressão e de discussão) são não apenas
fundamentais para demandar respostas políticas às necessidades econômicas, mas
são centrais para a própria formulação destas necessidades econômicas 10 .
Já o direito ao desenvolvimento demanda uma globalização ética e
solidária. No entender de Mohammed Bedjaqui: “Na realidade, a dimensão
internacional do direito ao desenvolvimento é nada mais que o direito a uma
repartição eqüitativa concernente ao bem estar social e econômico mundial. Reflete
uma demanda crucial de nosso tempo, na medida em que os quatro quintos da
população mundial não mais aceitam o fato de um quinto da população mundial
continuar a construir sua riqueza com base em sua pobreza”. 11 As assimetrias
9
Consultar UNDP, Human Development Report 2002: Deepening democracy in a fragmented world,
New York/Oxford, Oxford University Press, 2002.
10
Amartya Sen, Foreword ao livro “Pathologies of Power”, Paul Farmer, Berkeley, University of
California Press, 2003.
11
Mohammed Bedjaqui, The Right to Development, in M. Bedjaoui ed., International Law:
Achievements and Prospects, 1991, p. 1182.
10
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globais revelam que a renda dos 1% mais ricos supera a renda dos 57% mais
pobres na esfera mundial 12 .
Como atenta Joseph E. Stiglitz: “The actual number of people living in
poverty has actually increased by almost 100 million. This occurred at the same time
that total world income increased by an average of 2.5 percent annually”. 13 Para a
World Health Organization: “poverty is the world’s greatest killer. Poverty wields its
destructive influence at every stage of human life, from the moment of conception to
the grave. It conspires with the most deadly and painful diseases to bring a wretched
existence to all those who suffer from it.” 14
O desenvolvimento, por sua vez, há de ser concebido como um processo
de expansão das liberdades reais que as pessoas podem usufruir, para adotar a
concepção de Amartya Sen 15 . Acrescente-se ainda que a Declaração de Viena de
1993 enfatiza ser o direito ao desenvolvimento um direito universal e inalienável,
parte integral dos direitos humanos fundamentais. Reitere-se que a Declaração de
12
A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford, Oxford University
Press, 2002, p. 19.
13
Joseph E. Stiglitz, Globalization and its Discontents, New York/London, WW Norton Company,
2003, p.06. Acrescenta o autor: “Development is about transforming societies, improving the lives of
the poor, enabling everyone to have a chance at success and access to health care and education.”
(op.cit.p.252).
14
Paul Farmer, Pathologies of Power, Berkeley, University of California Press, 2003, p.50.
De acordo com dados do relatório “Sinais Vitais”, do Worldwatch Institute (2003), a desigualdade de
renda se reflete nos indicadores de saúde: a mortalidade infantil nos países pobres é 13 vezes maior
do que nos países ricos; a mortalidade materna é 150 vezes maiores nos países de menor
desenvolvimento com relação aos países industrializados. A falta de água limpa e saneamento básico
mata 1,7 milhão de pessoas por ano (90% crianças), ao passo que 1,6 milhão de pessoas morrem de
doenças decorrentes da utilização de combustíveis fósseis para aquecimento e preparo de alimentos.
O relatório ainda atenta para o fato de que a quase totalidade dos conflitos armados se concentrar no
mundo em desenvolvimento, que produziu 86% de refugiados na última década.
15
Ao conceber o desenvolvimento como liberdade, sustenta Amartya Sen: “Neste sentido, a
expansão das liberdades é vista concomitantemente como 1) uma finalidade em si mesma e 2) o
principal significado do desenvolvimento. Tais finalidades podem ser chamadas, respectivamente,
como a função constitutiva e a função instrumental da liberdade em relação ao desenvolvimento. A
função constitutiva da liberdade relaciona-se com a importância da liberdade substantiva para o
engrandecimento da vida humana. As liberdades substantivas incluem as capacidades elementares,
como a de evitar privações como a fome, a sub-nutrição, a mortalidade evitável, a mortalidade
prematura, bem como as liberdades associadas com a educação, a participação política, a proibição
da censura,… Nesta perspectiva constitutiva, o desenvolvimento envolve a expansão destas e de
outras liberdades fundamentais. Desenvolvimento, nesta visão, é o processo de expansão das
liberdades humanas.” (Amartya Sen, op. cit. p.35-36 e p.297). Sobre o direito ao desenvolvimento, ver
também Karel Vasak, For Third Generation of Human Rights: The Rights fo Solidarity, International
Institute of Human Rights, 1979.
11
Caderno de Direito Constitucional – 2006
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Viena
reconhece
a
relação
de
interdependência
entre
a
democracia,
o
desenvolvimento e os direitos humanos.
Feitas essas considerações a respeito da concepção contemporânea de
direitos humanos, transita-se à reflexão final, que tem por objetivo destacar os
desafios centrais aos direitos humanos na ordem internacional contemporânea.
3.
Direitos
Humanos:
Desafios
da
Ordem
Internacional
Contemporânea
Serão destacados sete desafios considerados centrais à implementação
dos direitos humanos na ordem contemporânea.
1º) Universalismo x Relativismo Cultural
O debate entre os universalistas e os relativistas culturais retoma o
dilema a respeito dos fundamentos dos direitos humanos: por que temos direitos?
As normas de direitos humanos podem ter um sentido universal ou são
culturalmente relativas?
Para os universalistas, os direitos humanos decorrem da dignidade
humana, enquanto valor intrínseco à condição humana. Defende-se, nesta
perspectiva, o mínimo ético irredutível – ainda que possa se discutir o alcance deste
“mínimo ético”.
Para os relativistas, a noção de direitos está estritamente relacionada ao
sistema político, econômico, cultural, social e moral vigente em
sociedade.
Cada
cultura possui
determinada
seu próprio discurso acerca dos direitos
fundamentais, que está relacionado às específicas circunstâncias culturais e
históricas de cada sociedade. Não há moral universal, já que a história do mundo é a
história de uma pluralidade de culturas. Há uma pluralidade de culturas no mundo e
estas culturas produzem seus próprios valores. 16
Na visão de Jack Donnelly, há diversas correntes relativistas: “No
extremo, há o que nós denominamos de relativismo cultural radical, que concebe a
cultura como a única fonte de validade de um direito ou regra moral. (...) Um forte
16
. R.J. Vincent, Human rights and international relations, p. 37-38.
12
Caderno de Direito Constitucional – 2006
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relativismo cultural acredita que a cultura é a principal fonte de validade de um
direito ou regra moral.(...) Um relativismo cultural fraco, por sua vez, sustenta que a
cultura pode ser uma importante fonte de validade de um direito ou regra moral”. 17
Para dialogar com Jack Donnelly, poder-se-ia sustentar a existência de
diversos graus de universalismos, a depender do alcance do “mínimo ético
irredutível”. No entanto, a defesa, por si só, deste mínimo ético, independentemente
de seu alcance, apontará à corrente universalista — seja a um universalismo radical,
forte ou fraco.
Neste debate, destaca-se a visão de Boaventura de Souza Santos, em
defesa de uma concepção multicultural de direitos humanos, inspirada no diálogo
entre as culturas, a compor um multiculturalismo emancipatório. Para Boaventura:
“os direitos humanos têm que ser reconceptualizados como multiculturais. O
multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada
e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que
constituem os dois atributos de uma política contra-hegemônica de direitos humanos
no nosso tempo”. 18 Prossegue o autor defendendo a necessidade de superar o
debate sobre universalismo e relativismo cultural, a partir da transformação
cosmopolita dos direitos humanos. Na medida em que todas culturas possuem
concepções distintas de dignidade humana, mas são incompletas, haveria que se
aumentar a consciência destas incompletudes culturais mútuas, como pressuposto
para um diálogo intercultural. A construção de uma concepção multicultural dos
direitos humanos decorreria deste diálogo intercultural 19 .
No mesmo sentido, Joaquim Herrera Flores sustenta um universalismo de
confluência, ou seja, um universalismo de ponto de chegada e não de ponto de
partida. No dizer de Herrera Flores: “(...) nossa visão complexa dos direitos baseiase em uma racionalidade de resistência. Uma racionalidade que não nega que é
possível chegar a uma síntese universal das diferentes opções relativas a direitos.
17
. Jack Donnelly, Universal human rights in theory and practice, op. cit., p. 109-110.
18
A respeito ver Boaventura de Souza Santos, Uma concepção multicultural de direitos humanos,
Revista Lua Nova, v. 39, São Paulo, 1997, p.112.
19
Boaventura de Souza Santos, op. cit. p.114. Adiciona o autor: “Neste contexto é útil distinguir entre
globalização de-cima-para-baixo e globalização de-baixo-para-cima, ou entre globalização
hegemônica e globalização contra-hegemônica. O que eu denomino de localismo globalizado e
globalismo localizado são globalizações de-cima-para-baixo; cosmopolitanismo e patrimônio comum
da humanidade são globalizações de-baixo-para cima.” (op.cit.p.111).
13
Caderno de Direito Constitucional – 2006
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(...) O que negamos é considerar o universal como um ponto de partida ou um
campo de desencontros. Ao universal há que se chegar – universalismo de chegada
ou de confluência – depois (não antes de) um processo conflitivo, discursivo de
diálogo (...). Falamos de entrecruzamento e não de uma mera superposição de
propostas” 20 . A respeito do diálogo entre as culturas, merece menção as reflexões
de Amartya Sen sobre direitos humanos e valores asiáticos, particularmente pela
crítica feita à interpretações autoritárias destes valores e pela defesa de que as
culturas asiáticas (com destaque ao Budismo) enfatizam a importância da liberdade
e da tolerância 21 . Menção também há que ser feita às reflexões de Abdullah Ahmed
An-na’im, ao tratar dos direitos humanos no mundo islâmico, a partir de uma nova
interpretação do islamismo e da Sharia 22 .
Acredita-se, de igual modo, que a abertura do diálogo entre as culturas,
com respeito à diversidade e com base no reconhecimento do outro, como ser pleno
de dignidade e direitos, é condição para a celebração de uma cultura dos direitos
humanos, inspirada pela observância do “mínimo ético irredutível”, alcançado por um
universalismo de confluência.
Este universalismo de confluência, fomentado pelo ativo protagonismo da
sociedade civil internacional 23 , a partir de suas demandas e reivindicações morais, é
20
Joaquim Herrera Flores, Direitos Humanos, Interculturalidade e Racionalidade de Resistência,
mimeo, p.7.
21
Amartya Sen, Human Rights and Asian Values, The New Republic 33-40 (July 14,1997), Apud
Louis Henkin at al, Human Rights. New York, New York Foundation Press, 1999, p.113-116. A
respeito da perspectiva multicultural dos direitos humanos e das diversas tradições religiosas,
ver Direitos Humanos na Sociedade Cosmopolita, César Augusto Baldi (org.), Rio de Janeiro, ed.
Renovar, 2004, em especial os artigos de Chandra Muzaffar, Islã e direitos humanos; Damien
Keown, Budismo e direitos humanos; Tu Weiming, Os direitos humanos como um discurso
moral confuciano; e Ashis Nandy, A política do secularismo e o resgate da tolerância religiosa.
22
Abdullah Ahmed An-na’im, Human Rights in the Muslim World, 3 Harvard Human Rights Journal, 13
(1990), Apud Henry J. Steiner e Philip Alston, International Human Rights in Context, p.389-398.
Como observa Daniela Ikawa: “An-na’im ilustra a possibilidade do diálogo entre culturas a partir de
uma das condições colocadas por Boaventura: a adoção da versão cultural que inclua o maior grau
de diversidade, no caso, que inclua também as mulheres em relação de igualdade com os homens.
An-na’im prevê uma possibilidade de intercâmbio cultural pautado na reinterpretação de certas bases
culturais, como ocorre na reinterpretação do Corão. Essa reinterpretação possibilitaria um diálogo
entre a cultura islâmica e a cultura dos direitos humanos, ao menos no que toca ao direitos das
mulheres”. (Daniela Ikawa, Universalismo, Relativismo e Direitos Humanos, In: Maria de Fátima
Ribeiro e Valério de Oliveira Mazzuoli, Direito Internacional dos Direitos Humanos: Estudos em
Homenagem à Professora Flávia Piovesan, Curitiba, ed. Juruá, 2004, p.124).
Se em 1948 apenas 41 organizações não-governamentais tinham status consultivo junto ao
Conselho Econômico e Social, em 2004 este número alcança aproximadamente 2350 organizações
não-governamentais com status consultivo. Sobre o tema, consultar Gay J. McDougall, Decade for
23
14
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que assegurará a legitimidade do processo de construção de parâmetros
internacionais mínimos voltados à proteção dos direitos humanos.
2º)
Laicidade Estatal x Fundamentalismos religiosos
Um segundo desafio central à implementação dos direitos humanos é o
da laicidade estatal. Isto porque o Estado laico é garantia essencial para o exercício
dos direitos humanos, especialmente nos campos da sexualidade e reprodução 24 .
Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas
incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de
sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado
Democrático de Direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer
religião. Os grupos religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de
seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não
têm o direito a pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente
laico.
No Estado laico, marcado pela separação entre Estado e religião, todas
as religiões mereçam igual consideração e profundo respeito, inexistindo, contudo,
qualquer religião oficial, que se transforme na única concepção estatal, a abolir a
dinâmica de uma sociedade aberta, livre, diversa e plural. Há o dever do Estado em
garantir as condições de igual liberdade religiosa e moral, em um contexto
desafiador em que, se de um lado o Estado contemporâneo busca separar-se da
religião, esta, por sua vez, busca adentrar nos domínios do Estado (ex: bancadas
religiosas no Legislativo).
Destacam-se, aqui, duas estratégias: a) reforçar o princípio da laicidade
estatal, com ênfase à Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação com base em Intolerância Religiosa; e b) fortalecer leituras e
NGO Struggle, In: Human Rights Brief – 10th Anniversary, American University Washington College of
Law, Center for Human Rights and Humanitarian Law, v.11, issue 3 (spring 2004), p.13
Ver a respeito Miriam Ventura, Leila Linhares Barsted, Daniela Ikawa e Flavia Piovesan (org.),
“Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos na perspectiva dos direitos humanos”, Rio de Janeiro,
Advocaci/UNFPA, 2003.
24
15
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interpretações progressistas no campo religioso, de modo a respeitar os direitos
humanos 25 .
3º)
Direito ao Desenvolvimento x Assimetrias Globais
O terceiro desafio traduz a tensão entre o direito ao desenvolvimento e as
assimetrias globais.
Em 1986, foi adotada pela ONU a Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento por 146 Estados, com um voto contrário (EUA) e 8 abstenções.
Para Allan Rosas: “A respeito do conteúdo do direito ao desenvolvimento, três
aspectos devem ser mencionados. Em primeiro lugar, a Declaração de 1986
endossa a importância da participação. (…) Em segundo lugar, a Declaração deve
ser concebida no contexto das necessidades básicas de justiça social. (…) Em
terceiro lugar, a Declaração enfatiza tanto a necessidade de adoção de programas e
políticas nacionais, como da cooperação internacional. (…)” 26
Deste modo, o direito ao desenvolvimento compreende três dimensões:
a)
a importância da participação, com realce ao componente
democrático a orientar a formulação de políticas públicas. A sociedade civil clama
por maior transparência, democratização e accountability na gestão do
orçamento público e na construção e implementação de políticas públicas;
b)
a proteção às
necessidades básicas de justiça social,
enunciando a Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento que: “A pessoa
humana é o sujeito central do desenvolvimento e deve ser ativa participante e
beneficiária do direito ao desenvolvimento.”; e
c)
a necessidade de adoção de programas e políticas nacionais,
como de cooperação internacional – já que a efetiva cooperação internacional é
essencial para prover aos países em desenvolvimento meios que encorajem o
direito ao desenvolvimento. A respeito, adiciona o artigo 4o da Declaração que os
25
A título exemplificativo, mencione-se a atuação das Católicas pelo Direito de Decidir e o trabalho de
Abdullahi Na-Na’im acerca da reinterpretação do islamismo à luz dos direitos humanos.
Allan Rosas, The Right to Development, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas,
Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995,
p. 254-255.
26
16
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
Estados têm o dever de adotar medidas, individualmente ou coletivamente,
voltadas a formular políticas de desenvolvimento internacional, com vistas a
facilitar a plena realização de direitos, acrescentando que a efetiva cooperação
internacional é essencial para prover aos países em desenvolvimento meios que
encorajem o direito ao desenvolvimento.
Em uma arena global não mais marcada pela bipolaridade Leste/Oeste,
mas sim pela bipolaridade Norte/Sul, abrangendo os país desenvolvidos e em
desenvolvimento (sobretudo as regiões da América Latina, Ásia e África), há que se
demandar uma globalização mais ética e solidária.
Note-se que, em face das assimetrias globais, os 15% mais ricos
concentram 85% da renda mundial, enquanto que os 85% mais pobres concentram
15% da renda mundial.
Se, tradicionalmente, a agenda de direitos humanos centrou-se na tutela
de direitos civis e políticos, sob o forte impacto da “voz do Norte”, testemunha-se,
atualmente, a ampliação desta agenda tradicional, que passa a incorporar novos
direitos, com ênfase nos direitos econômicos, sociais e culturais, no direito ao
desenvolvimento, no direito à inclusão social e na pobreza como violação de direitos.
Este processo permite ecoar a “voz própria do Sul”, capaz de revelar as
preocupações, demandas e prioridades desta região.
Neste contexto, é fundamental consolidar e fortalecer o processo de
afirmação dos direitos humanos, sob esta perspectiva integral, indivisível e
interdependente.
4º) Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais x Desafios
Globalização Econômica
O quarto desafio relaciona-se com o terceiro, na medida em que aponta
aos dilemas decorrentes do processo de globalização econômica, com destaque à
temerária flexibilização dos direitos sociais.
Nos anos 90, as políticas neoliberais, fundadas no livre mercado, nos
programas de privatização e na austeridade econômica, permitiram que, hoje, sejam
antes os Estados que se achem incorporados aos mercados e não a economia
17
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
política às fronteiras estatais, como salienta Jurgen Habermas 27 .
A globalização econômica tem agravado ainda mais as desigualdades
sociais, aprofundando-se as marcas da pobreza absoluta e da exclusão social.
Lembre-se que o próprio então diretor-gerente do FMI, Michel Camdessus, em seu
último discurso oficial, afirmou que “desmantelar sistematicamente o Estado não é o
caminho para responder aos problemas das economias modernas. (…) A pobreza é
a ameaça sistêmica fundamental à estabilidade em um mundo que se globaliza” 28 .
Considerando os graves riscos do processo de desmantelamento das
políticas públicas sociais, há que se redefinir o papel do Estado sob o impacto da
globalização econômica. Há que se reforçar a responsabilidade do Estado no
tocante à implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais.
Como adverte Asbjorn Eide: “Caminhos podem e devem ser encontrados
para que o Estado assegure o respeito e a proteção dos direitos econômicos, sociais
e culturais, de forma a preservar condições para uma economia de mercado
relativamente livre. A ação governamental deve promover a igualdade social,
enfrentar as desigualdades sociais, compensar os desequilíbrios criados pelos
mercados e assegurar um desenvolvimento humano sustentável. A relação entre
governos e mercados deve ser complementar.” 29
No mesmo sentido, pontua Jack Donnelly: “Mercados livres são
economicamente análogos ao sistema político baseado na regra da maioria, sem
contudo a observância aos direitos das minorias. As políticas sociais, sob esta
perspectiva, são essenciais para assegurar que as minorias, em desvantagem ou
privadas pelo mercado, sejam consideradas com o mínimo respeito na esfera
27
Jurgen Habermas, Nos Limites do Estado, Folha de São Paulo, Caderno Mais!, p.5, 18 de julho de
1999.
28
“Camdessus crítica desmonte do Estado”, Folha de São Paulo, 14.02.2000.
Asbjorn Eide, Obstacles and Goals to be Pursued, In: Asbjorn Eide, Catarina Krause e Allan Rosas,
Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers, Dordrecht, Boston e Londres, 1995,
p.383. Acrescenta o autor: “Onde a renda é igualmente distribuída e as oportunidades razoavelmente
equânimes, os indivíduos estão em melhores condições para tratar de seus interesses e há uma
menor necessidade de despesas públicas por parte do Estado. Quando, por outro lado, a renda é
injustamente distribuída, a demanda por iguais oportunidades e igual exercício de direitos
econômicos, sociais e culturais requer maior despesa estatal, baseada em uma tributação
progressiva e outras medidas. Paradoxalmente, entretanto, a tributação para despesas públicas nas
sociedades igualitárias parece mais bem vinda que nas sociedades em que a renda é injustamente
distribuída.” (Asbjorn Eide.Economic, Social and Cultural Rights as Human Rights, In: Asbjorn Eide,
Catarina Krause e Allan Rosas, Economic, Social and Cultural Rights, Martinus Nijhoff Publishers,
Dordrecht, Boston e Londres, 1995, p.40).
29
18
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
econômica. (...) Os mercados buscam eficiência e não justiça social ou direitos
humanos para todos.”
30
No contexto da globalização econômica, faz-se também premente a
incorporação da agenda de direitos humanos por atores não estatais. Neste sentido,
surgem 3 atores fundamentais: a) agências financeiras internacionais; b) blocos
regionais econômicos; e c) setor privado.
Com relação às agências financeiras internacionais, há o desafio de que
os direitos humanos possam permear a política macro-econômica, de forma a
envolver a política fiscal, a política monetária e a política cambial. As instituições
econômicas internacionais devem levar em grande consideração a dimensão
humana de suas atividades e o forte impacto que as políticas econômicas podem ter
nas economias locais, especialmente em um mundo cada vez mais globalizado 31 .
Embora as agências financeiras internacionais estejam vinculadas ao
sistema das Nações Unidas, na qualidade de agências especializadas, o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, por exemplo, carecem da formulação de
uma política vocacionada aos direitos humanos. Tal política é medida imperativa
para o alcance dos propósitos da ONU e, sobretudo, para a coerência ética e
principiológica que há de pautar sua atuação. A agenda de direitos humanos deve
ser, assim, incorporada no mandato de atuação destas agências.
Há que se romper com os paradoxos que decorrem das tensões entre a
tônica includente voltada para a promoção dos direitos humanos, consagrada nos
relevantes tratados de proteção dos direitos humanos da ONU (com destaque ao
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) e, por outro lado, a
tônica excludente ditada pela atuação especialmente do Fundo Monetário
Internacional, na medida em que a sua política, orientada pela chamada
30
Jack Donnelly, International Human Rights, Westview Press, Boulder, 1998, p.160. “Aliviar o
sofrimento da pobreza e adotar políticas compensatórias são funções do Estado e não do mercado.
Estas são demandas relacionadas à justiça, a direitos e a obrigações e não à eficiência. (...) Os
mercados simplesmente não podem tratá-las – porque não são vocacionados para isto.” (Jack
Donnelly, Ethics and International Human Rights, in: Ethics and International Affairs, Japão, United
Nations University Press, 2001, p.153).
Cf. Mary Robinson, Constructing an International Financial, Trade and Development Architeture:
The Human Rights Dimension, Zurich, 1 July 1999, www.unhchr.org. Adiciona Mary Robinson: “A
título de exemplo, um economista já advertiu que o comércio e a política cambial podem ter maior
impacto no desenvolvimento dos direitos das crianças que propriamente o alcance do orçamento
dedicado à saúde e educação. Um incompetente diretor do Banco Central pode ser mais prejudicial
aos direitos das crianças que um incompetente Ministro da Educação”. (op. cit)
31
19
Caderno de Direito Constitucional – 2006
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“condicionalidade”, submete países em desenvolvimento a modelos de ajuste
estrutural incompatíveis com os direitos humanos 32 . Além disso, há que se fortalecer
a democratização, a transparência e a accountability destas instituições 33 . Note-se
que 48% do poder de voto no FMI concentra-se nas mãos de 7 Estados (US, Japão,
França, Inglaterra, Arábia Saudita, China e Rússia), enquanto que no Banco Mundial
46% do poder de voto concentra-se nas mãos também destes mesmos Estados 34 .
Na percepção crítica de Joseph E. Stiglitz: “(...) we have a system that might be
called global governance without global government, one in which a few institutions –
the World Bank, the IMF, the WTO – and a few players – the finance, commerce, and
trade ministries, closely linked to certain financial and commercial interests –
dominate the scene, but in which many of those affected by their decisions are left
almost voiceless. It’s time to change some of the rules governing the international
economic order (...)” 35 .
32
Afirma Jeffrey Sachs: “Aproximadamente 700 milhões de pessoas – as mais empobrecidas – estão
em débito perante os países ricos. Os chamados “Highly Indebted Poor Countries” (países pobres
altamente endividados) compõem um grupo de quarenta e duas economias financeiramente falidas e
largamente desestruturadas. Eles devem mais de $100 milhões em dívida não paga ao Banco
Mundial, ao Fundo Monetário Internacional, a demais Bancos de desenvolvimento e governos (...).
Muitos deste empréstimos foram feitos em regimes tirânicos para responder aos propósitos da Guerra
Fria. Muitos refletem idéias equivocadas do passado. (...) O Jubileu 2000, uma organização que tem
o apoio de pessoas tão diversas como o Papa João Paulo II, Jesse Jackson e Bono, o cantor de rock,
tem defendido a eliminação da dívida externa dos países mais pobres do mundo. A idéia é
freqüentemente vista como irrealista, mas são os realistas que fracassam ao compreender as
oportunidades econômicas da ordem contemporânea. (...) Em 1996 o FMI e o Banco Mundial
anunciaram um programa de grande impacto, mas sem prover um diálogo verdadeiro com os países
afetados. Três anos depois, estes planos fracassaram. Apenas 2 países, Bolívia e Uganda,
receberam $200 milhões, enquanto que 40 países aguardam na fila. No mesmo período, a bolsa de
valores dos países ricos cresceu mais de $5 trilhões, mais que 50 vezes que o débito dos quarenta e
dois países pobres. Assim, é um jogo cruel dos países mais ricos do mundo protestar que eles não
teriam como cancelar as dívidas.” (Jeffrey Sachs, Release the Poorest Countries for Debt Bondage,
International Herald Tribune, 12 e 13 de junho de 1999, p.8, apud Henry Steiner e Philip Alston,
International Human Rights in Context: Law, Politics and Morals, second edition, Oxford, Oxford
University Press, 2000, p.1329-1330).
33
A respeito, consultar Joseph E. Stiglitz, Globalization and its Discontents, New York/London, WW
Norton Company, 2003. Para o autor: “When crises hit, the IMF prescribed outmoded, inappropriate, if
standard solutions, without considering the effects they would have on the people in the countries told
to follow these policies. Rarely did I see forecasts about what the policies would do to poverty. Rarely
did I see thoughtful discussions and analyses of the consequences of alternative policies. There was a
single prescription. Alternative opinions were not sought. Open, frank discussion was discouraged –
there is no room for it. Ideology guided policy prescription and countries were expected to follow the
IMF guidelines without debate. These attitudes made me cringe. It was not that they often produced
poor results; they were antidemocratic.”(op.cit. p.XIV).
34
A respeito, consultar Human Development Report 2002, UNDP, New York/Oxford, Oxford University
Press, 2002.
35
Joseph E. Stiglitz, op.cit.p.21-22.
20
Caderno de Direito Constitucional – 2006
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Quanto aos blocos regionais econômicos, vislumbram-se, do mesmo
modo, os paradoxos que decorrem das tensões entre a tônica excludente do
processo de globalização econômica e os movimentos que intentam reforçar a
democracia e os direitos humanos como parâmetros a conferir lastro ético e moral à
criação de uma nova ordem internacional. De um lado, portanto, lança-se a tônica
excludente do processo de globalização econômica e, de outro lado, emerge a
tônica includente do processo de internacionalização dos direitos humanos, somado
ao processo de incorporação das cláusulas democráticas e direitos humanos pelos
blocos econômicos regionais. Embora a formação de blocos econômicos de alcance
regional, tanto na União Européia, como no Mercosul, tenha buscado não apenas a
integração e cooperação de natureza econômica, mas posterior e paulatinamente a
consolidação da democracia e a implementação dos direitos humanos nas
respectivas regiões (o que se constata com maior evidência na União Européia e de
forma ainda bastante incipiente no Mercosul), observa-se que as cláusulas
democráticas e de direitos humanos não foram incorporadas na agenda do processo
de globalização econômica.
No que se refere ao setor privado, há também a necessidade de acentuar
sua responsabilidade social, especialmente das empresas multinacionais, na medida
em que constituem as grandes beneficiárias do processo de globalização, bastando
citar que das 100 (cem) maiores economias mundiais, 51 (cinqüenta e uma) são
empresas multinacionais e 49 (quarenta e nove) são Estados nacionais. Por
exemplo, importa encorajar empresas a adotarem códigos de direitos humanos
relativos à atividade de comércio; demandar sanções comerciais a empresas
violadoras dos direitos sociais; adotar a “taxa Tobin” sobre os investimentos
financeiros internacionais, dentre outras medidas.
5º) Respeito à Diversidade x Intolerâncias
Em razão da indivisibilidade dos direitos humanos, a violação aos direitos
econômicos, sociais e culturais propicia a violação aos direitos civis e políticos, eis
que a vulnerabilidade econômico-social leva à vulnerabilidade dos direitos civis e
políticos. No dizer de Amartya Sen: “A negação da liberdade econômica, sob a
forma da pobreza extrema, torna a pessoa vulnerável a violações de outras formas
de liberdade.(…) A negação da liberdade econômica implica na negação da
21
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
liberdade social e política.” 36
O processo de violação dos direitos humanos alcança prioritariamente os
grupos sociais vulneráveis, como as mulheres e a população afro-descedentes (daí
os fenômenos da “feminização” e “etnicização” da pobreza). Se no mundo hoje há 1
bilhão de analfabetos adultos, 2/3 são mulheres.
A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas
universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis,
enquanto vítimas preferenciais da exclusão. Isto é, a implementação dos direitos
humanos requer a universalidade e a indivisibilidade destes direitos, acrescidas do
valor da diversidade. Nas lições de Paul Farmer: “The concept of human rights may
at times be brandished as an all-purpose and universal tonic, but it was developed to
protect the vulnerable. The true value of human rights movement’s central
documents is revealed only when they serve to protect the rights of those who are
most likely to have their rights violated. The proper beneficiaries of the Universal
Declaration of Human Rights (...) are the poor and otherwise disempowered”. 37
A primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica
da proteção geral, que expressava o temor da diferença (que no nazismo havia sido
orientada para o extermínio), com base na igualdade formal.
Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral
e abstrata. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser
visto em sua peculiaridade e particularidade. Nesta ótica, determinados sujeitos de
direitos, ou determinadas violações de direitos, exigem uma resposta específica e
diferenciada. Neste cenário as mulheres, as crianças, a população afrodescendentes, os migrantes, as pessoas portadoras de deficiência, dentre outras
categorias vulneráveis, devem ser vistas nas especificidades e peculiaridades de
sua condição social. Ao lado do direito `a igualdade, surge, também, como direito
fundamental, o direito `a diferença. Importa o respeito `a diferença e `a diversidade,
o que lhes assegura um tratamento especial.
Destacam-se, assim, três vertentes no que tange à concepção da
igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei”
(que, ao seu tempo, foi crucial para abolição de privilégios); b) a igualdade material,
36
Amartya Sen, Development as Freedom, Alfred A. Knopf, New York, 1999, p.08.
37
Paul Farmer, op.cit.p.212.
22
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo
critério sócio-econômico); e c) a igualdade material, correspondente ao ideal de
justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios
gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).
Para Nancy Fraser, a justiça exige, simultaneamente, redistribuição e
reconhecimento de identidades. Como atenta a autora: “O reconhecimento não pode
se reduzir à distribuição, porque o status na sociedade não decorre simplesmente
em função da classe. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode se reduzir ao
reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente em
função de status.” 38 Há, assim, o caráter bidimensional da justiça: redistribuição
somada ao reconhecimento. No mesmo sentido, Boaventura de Souza Santos
afirma que apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a
realização da igualdade 39 .
Ainda Boaventura acrescenta: “temos o direito a ser iguais quando a
nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa
igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as
desigualdades” 40 .
Considerando os processos de “feminização” e “etnicização” da pobreza,
há a necessidade de adoção, ao lado das políticas universalistas, de políticas
específicas, capazes de dar visibilidade a sujeitos de direito com maior grau de
vulnerabilidade, visando ao pleno exercício do direito à inclusão social. Se o padrão
de violação de direitos tem um efeito desproporcionalmente lesivo às mulheres e às
38
Afirma Nancy Fraser: “O reconhecimento não pode se reduzir à distribuição, porque o status na
sociedade não decorre simplesmente em função da classe. Tomemos o exemplo de um banqueiro
afro-americano de Wall Street, que não pode conseguir um táxi. Neste caso, a injustiça da falta de
reconhecimento tem pouco a ver com a má distribuição. (...) Reciprocamente, a distribuição não pode
se reduzir ao reconhecimento, porque o acesso aos recursos não decorre simplesmente da função de
status. Tomemos, como exemplo, um trabalhador industrial especializado, que fica desempregado em
virtude do fechamento da fábrica em que trabalha, em vista de uma fusão corporativa especulativa.
Neste caso, a injustiça da má distribuição tem pouco a ver com a falta de reconhecimento. (...)
Proponho desenvolver o que chamo concepção bidimensional da justiça. Esta concepção trata da
redistribuição e do reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas da justiça. Sem reduzir
uma à outra, abarca ambas em um marco mais amplo”. (Nancy Fraser, Redistribución,
reconocimiento y participación: hacia un concepto integrado de la justicia, In: Unesco, Informe
Mundial sobre la Cultura – 2000-2001, p.55-56).
39
A respeito, ver Boaventura de Souza Santos, Introdução: para ampliar o cânone do
reconhecimento, da diferença e da igualdade. In: Reconhecer para Libertar: Os caminhos do
cosmopolitanismo multicultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, p.56. Ver ainda do
mesmo autor “Por uma Concepção Multicultural de Direitos Humanos”. In: op.cit. p.429-461.
40
Ver Boaventura de Souza Santos, op. cit.
23
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
populações afro-descendentes, adotar políticas “neutras” no tocante ao gênero, à
raça/etnia, significa perpetuar este padrão de desigualdade e exclusão.
Daí a urgência no combate de toda e qualquer forma de racismo;
sexismo; homofobia; xenofobia e outras formas de intolerância correlatas, tanto
mediante a vertente repressiva (que proíbe e pune a discriminação e a intolerância),
como mediante a vertente promocional (que promove a igualdade).
6º) Combate ao Terror x Preservação de Direitos e Liberdades
Públicas
O desafio de combater todas as formas de intolerância se soma ao sexto
desafio, que realça o dilema de preservação dos direitos e das liberdades públicas
no enfrentamento ao terror.
No cenário do Pós 11 de setembro o risco é que a luta contra o terror
comprometa o aparato civilizatório de direitos, liberdades e garantias, sob o clamor
de segurança máxima.
Basta atentar à doutrina de segurança adotada nos EUA pautada: a) no
unilateralismo; b) nos ataques preventivos e c) na hegemonia do poderia militar
norte-americano. Atente-se às nefastas conseqüências para a ordem internacional
se cada um dos duzentos Estados que integram a ordem internacional invocasse
para si o direito de cometer “ataques preventivos”, com base no unilateralismo. Seria
lançar o próprio atestado de óbito do Direito Internacional, celebrando o mais puro
hobbesiano “Estado da Natureza”, em que a guerra é o termo forte e a paz se limita
a ser a ausência da guerra.
A escusa de combater o chamado “império do mal”
tem propagado,
sobretudo, o “mal do império”. Pesquisas demonstram o perverso impacto do Pós 11
de setembro, na composição de uma agenda global tendencialmente restritiva de
direitos e liberdades. A título de exemplo, cite-se pesquisas acerca da legislação
aprovada, nos mais diversos países, ampliando a aplicação da pena de morte e
demais penas; tecendo discriminações insustentáveis; afrontando o devido processo
legal e o direito a um julgamento público e justo; admitindo a extradição sem a
24
Caderno de Direito Constitucional – 2006
Flávia Piovesan
garantia de direitos; restringindo direitos, como a liberdade de reunião e de
expressão; dentre outras medidas 41 .
No segundo mandato da era Bush, inaugurado em 20 de janeiro de 2005,
foi empossado como Secretario de Justiça o autor de memorando que justifica o uso
da tortura no combate ao terrorismo.
Como preservar a Era dos Direitos em tempos de terror?
7º) Unilateralismo x Multilateralismo: Fortalecer o Estado de Direito
e a Construção da Paz nas Esferas Global, Regional e Local mediante uma
Cultura de Direitos Humanos
Por fim, cabe enfatizar que, no contexto Pós 11 de setembro, emerge o
desafio de prosseguir no esforço de construção de um “Estado de Direito
Internacional”, em uma arena que está por privilegiar o “Estado Polícia” no campo
internacional, fundamentalmente guiado
pelo lema da força e segurança
internacional.
Contra o risco do terrorismo de Estado e do enfrentamento do terror, com
instrumentos do próprio terror, só resta uma via – a via construtiva de consolidação
dos delineamentos de um “Estado de Direito” no plano internacional. Só haverá um
efetivo Estado de Direito Internacional sob o primado da legalidade, com o “império
do Direito”, com o poder da palavra e a legitimidade do consenso.
À luz deste cenário, marcado pelo poderio de uma única superpotência
mundial, o equilíbrio da ordem internacional exigirá o avivamento do multilateralismo
e o fortalecimento da sociedade civil internacional, a partir de um solidarismo
cosmopolita.
Quanto à multilateralismo, ressalte-se o processo e justicialização do
Direito Internacional. Para Norberto Bobbio, a garantia dos direitos humanos no
plano internacional só será implementada quando uma “jurisdição internacional se
impuser concretamente sobre as jurisdições nacionais, deixando de operar dentro
dos Estados, mas contra os Estados e em defesa dos cidadãos.” 42
41
Ver, dentre outras, a pesquisa apontada no artigo For whom the Liberty Bell tolls, The Economist,
august 31, 2002, p. 18-20.
42
Norberto Bobbio, A Era dos Direitos, op. cit. p. 25-47.
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Caderno de Direito Constitucional – 2006
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É necessário que se avance no processo de justicialização dos direitos
humanos internacionalmente enunciados. Associa-se a idéia de Estado de Direito
com a existência de Cortes independentes, capazes de proferir decisões obrigatórias
e vinculantes.
Neste quadro emerge ainda o fortalecimento da sociedade civil
internacional,
com
imenso
repertório
imaginativo
e
inventivo,
mediante
networks/redes que aliam e fomentam a interlocução entre entidades locais,
regionais e globais, a partir de um solidarismo cosmopolita. Se em 1948 apenas 41
ONGs tinham status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU, em
2004 este número aponta a aproximadamente 2350 ONGs.
Multilateralismo e sociedade civil internacional: são estas as únicas forças
capazes de deter o amplo grau de discricionariedade do poder do Império, civilizar
este temerário “Estado da Natureza” e permitir que, de alguma forma, o império do
direito possa domar a força do império.
Se, no início, este artigo acentuava que os direitos humanos não são um
dado, mas um construído, enfatiza-se agora que a violação a estes direitos também
o são. Isto é, as violações, as exclusões, as discriminações, as intolerâncias são um
construído histórico, a ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco
de romper com a cultura da “naturalização” da desigualdade e da exclusão social,
que, enquanto construídos históricos, não compõem de forma inexorável o destino
de nossa humanidade. Há que se enfrentar essas amarras, mutiladoras do
protagonismo, da cidadania, da dignidade e da potencialidade de seres humanos.
Diante destes desafios resta concluir pela crença na implementação dos
direitos humanos, como a racionalidade de resistência e única plataforma
emancipatória de nosso tempo.
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