Traição bonificada

Delação premiada na "lava jato" está eivada de inconstitucionalidades

Autor

4 de dezembro de 2014, 6h00

Delação premiada: favor legal antiético
Delação premiada consiste na redução de pena (podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmo a total isenção de pena) para o delinquente que delatar seus comparsas, concedida pelo juiz na sentença condenatória, desde que sejam satisfeitos os requisitos que a lei estabelece. Trata-se de instituto importado de outros países[1], independentemente da diversidade de peculiaridades de cada ordenamento jurídico e dos fundamentos políticos que o justificam.

Por esse instituto premia-se o participante delator que trai seu comparsa, com a redução de um a dois terços da pena aplicada, ou, em alguns casos, podendo chegar ao perdão judicial.

Com efeito, a eufemisticamente denominada delação premiada, que foi inaugurada no ordenamento jurídico brasileiro com a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90, artigo 8º, parágrafo único), proliferou em nossa legislação esparsa, atingindo níveis de vulgaridade. Enfim, iniciou-se a proliferação da “traição bonificada”, defendida pelas autoridades como grande instrumento de combate à criminalidade organizada, que, finalmente, recebe sua definição legal com a Lei 12.850/2013.

O fundamento invocado é a confessada falência do Estado para combater a dita “criminalidade organizada”, que é mais produto da omissão dos governantes ao longo dos anos do que propriamente alguma “organização” ou “sofisticação” operacional da delinquência massificada. Na verdade, virou moda falar crime organizado, organização criminosa e outras expressões semelhantes, para justificar a incompetência e a omissão dos detentores do poder, nos últimos 20 anos, pelo menos.

Chega a ser paradoxal que se insista numa propalada sofisticação da delinquência; num país onde impera a improvisação e tudo é desorganizado, como se pode aceitar que só o crime seja organizado? Quem sabe o Poder Público, num exemplo de funcionalidade, comece combatendo o crime desorganizado, já que capitulou ante o que resolveu tachar de crime organizado; pelo menos combateria a criminalidade de massa, a criminalidade violenta, devolvendo a segurança à coletividade brasileira, que tem dificuldade até mesmo de transitar pelas ruas das capitais. Está-se tornando intolerável a inoperância do Estado no combate à criminalidade, seja ela massificada, organizada ou desorganizada, conforme nos têm demonstrado as alarmantes estatísticas diariamente.

Como se tivesse descoberto uma poção mágica, o legislador contemporâneo acena com a possibilidade de premiar o traidor — atenuando a sua responsabilidade criminal — desde que delate seu comparsa, facilitando o êxito da investigação das autoridades constituídas. Com essa figura esdrúxula o legislador brasileiro possibilita premiar o “alcaguete”, oferecendo-lhe vantagem legal, manipulando os parâmetros punitivos, alheio aos fundamentos do direito-dever de punir que o Estado assumiu com a coletividade.

Não se pode admitir, sem qualquer questionamento, a premiação de um delinquente que, para obter determinada vantagem, “dedure” seu parceiro, com o qual deve ter tido, pelo menos, uma relação de confiança para empreenderem alguma atividade, no mínimo, arriscada, que é a prática de algum tipo de delinquência. Estamos, na verdade, tentando falar da moralidade e justiça da postura assumida pelo Estado nesse tipo de premiação. Qual é, afinal, o fundamento ético legitimador do oferecimento de tal premiação?

Convém destacar que, para efeito da delação premiada, não se questiona a motivação do delator, sendo irrelevante que tenha sido por arrependimento, vingança, ódio, infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista, antiética e infiel do traidor-delator. Venia concessa, será legítimo o Estado lançar mão de meios antiéticos e imorais, como estimular a deslealdade e traição entre parceiros, apostando em comportamentos dessa natureza para atingir resultados que sua incompetência não lhe permite através de meios mais ortodoxos? Certamente não é nada edificante estimular seus súditos a mentir, trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, seja de que natureza for.

Note-se que, ainda que seja possível afirmar ser mais positivo moralmente estar ao lado da apuração do delito do que de seu acobertamento, é, no mínimo arriscado apostar em que tais informações, que são oriundas de uma traição, não possam ser elas mesmas traiçoeiras em seu conteúdo. Certamente aquele que é capaz de trair, delatar ou dedurar um companheiro movido exclusivamente pela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, não terá escrúpulos em igualmente mentir, inventar, tergiversar e manipular as informações que oferece para merecer o que deseja. Com essa postura antiética, não se pode esperar que o delator adote, de sua parte, um comportamento ético e limite-se a falar a verdade às autoridades repressoras; logicamente, o beneficiário da delação dirá qualquer coisa que interesse às autoridades na tentativa de beneficiar-se. Essa circunstância retira eventual idoneidade que sua delação possa ter, se é que alguma delação pode ser considerada idônea em algum lugar.

Na realidade, a praxis tem desrecomendado não apenas o instituto da delação como também as próprias autoridades que a têm utilizado, bastando recordar, apenas para ilustrar, a hipótese do doleiro da CPI dos Correios e do ex-assessor do atual ministro Palocci, que foram interpelados e compromissados a delatar, na calada da noite e/ou no interior das prisões, enfim, nas circunstâncias mais inóspitas possíveis, sem lhes assegurar a presença e orientação de um advogado, sem contraditório, ampla defesa e o devido processo legal.

Inversão na hierarquia do ordenamento jurídico
Ao longo do tempo temos denunciado que vivemos em um país onde há inversão total do ordenamento jurídico, na medida em que a Constituição Federal, para determinadas autoridades, não passa de peça puramente ornamental, sendo contrariada por leis ordinárias, decretos, resoluções, portarias, e, agora, até por acordo de “delação premiada”, eufemisticamente cognominada de “colaboração premiada” (Lei 12.850/13).

Nos últimos anos, o legislador contemporâneo tem demonstrado censurável desapreço pelas garantias constitucionais, e certa predileção em editar diplomas legais francamente inconstitucionais, e, particularmente, afrontadores de direitos fundamentais assegurados na própria Constituição. Na verdade, há uma “produção” excessiva de leis que, a pretexto de combater a impunidade, ignoram a existência de garantias fundamentais, e algumas até contradizem diretamente as previsões constitucionais, como ocorre, por exemplo, com a Lei 12.850/2.013.

No livro Comentários à lei de organização criminosa[2] em que abordamos a indigitada, imoral e antiética “colaboração premiada”, apontamos algumas nulidades; mas essas são nulidades e inconstitucionalidades que decorrem do próprio texto legal, confrontado com a nossa Carta Magna. No entanto, além dessas inconstitucionalidades textuais, a aplicação, in concreto, do instituto da “delação”, com certa deturpação interpretativa pode ampliar tais inconstitucionalidades, dependendo da forma como as autoridades colocam em prática a utilização do referido instituto.

Nesse sentido, pelas informações vazadas na mídia, essas nulidades e inconstitucionalidades são pródigas na “colaboração premiada” celebrada na “operação lava jato”, com o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. Trata-se, a rigor, de um “acordo de colaboração premiada” eivado de nulidades, mas nulidades absurdamente grotescas, ou seja, decorrentes de negação de garantias fundamentais impostas pelo Ministério Público (negociador da delação) a referido réu e ao seu defensor!

Pelo que vazou, foram violadas, dentre outras, as garantais fundamentais da ampla defesa, do devido processo legal, do direito ao silêncio, de não produzir prova contra si mesmo, direito de não se autoincriminar etc. Ou seja, foi imposto ao “delator” que renunciasse {pode ?!} — a todos esses direitos constitucionais —, inclusive direitos de ações (afastando a jurisdicionalidade do cidadão). Afinal, desde quando as garantias fundamentais do direito de ação, do devido processo legal, da ampla defesa podem simplesmente ser renunciadas por alguém, ainda mais na imposição de uma delação premiada? Ora, se são garantias contra o poder estatal, são irrenunciáveis!

Vejamos algumas pérolas de nulidades e inconstitucionalidades flagrantes que, segundo nos consta, existem nesse “acordo de delação premiada”:

1)o delator tem que desistir de todos os habeas corpus impetrados;

2)deve desistir, igualmente, do exercício de defesas processuais, inclusive de questionar competência e outras nulidades;

3)deve assumir compromisso de falar a verdade em todas as investigações (contrariando o direito ao silêncio, a não se auto-incriminar e a não produzir prova contra si mesmo);

4)não impugnar o acordo de colaboração, por qualquer meio jurídico;

5)renunciar, ainda, ao exercício do direito de recorrer de sentenças condenatórias relativas aos fatos objetos da investigação.

Reconhecem que o colaborador tem direito constitucional ao silêncio e a garantia contra a auto-incriminação. Mas invocam o disposto no artigo 4°, parágrafo 14, da Lei 12.850/2013, para exigir a renúncia do colaborador nos depoimentos em que prestar. Em outros termos, invertem a ordem natural da hierarquia de nosso ordenamento jurídico, e, com um simples acordo, “revogam” a Constituição Federal.

Menos mal que o digno e culto ministro Teori Zavascki, ao homologar o acordo de delação, excluiu todas aquelas restrições que visavam afastar a jurisdicionalidade, que também é uma garantia de todo cidadão, em outros termos, assegurou-se o amplo de direito de ação.

Inconstitucionalidade textual: renúncia ao direito de silenciar (artigo 4º, parágrafo 14)
Uma vez iniciado o processo, sendo o colaborador, induvidosamente, parte no processo, goza de pleno direito ao silêncio. A lei incorrendo em grave inconstitucionalidade estabelece em seu parágrafo 14º do artigo 4º, que o colaborador renunciará — utiliza-se voz cogente — ao direito ao silêncio, na presença de seu defensor. Ora, o dispositivo legislativo é claramente inconstitucional enquanto obriga (ou condiciona, o que dá no mesmo) o réu a abrir mão de um direito seu consagrado não apenas na constituição, como em todos os pactos internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é signatário. Afinal, o réu simplesmente não está obrigado a fazer prova contra si em circunstância alguma, mesmo a pretexto de “colaborar” com a Justiça, ou seja, na condição de colaborador. Afinal, lhe interessa muito mais (lhe é muito mais benéfico) uma sentença absolutória, que a aplicação dos benefícios decorrentes da colaboração.

Mas não para por aí a coleção de absurdos que emoldura o depoimento do colaborador em juízo. Com efeito, o parágrafo 12 do artigo 4º prevê que ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial. Essa disposição legal é de uma estupidez sem precedentes, além de absolutamente desnecessária.

Por um lado, porque repete a hipótese tecnicamente inviável do colaborador não ter sido denunciado, caso tenha cometido crime ou, de qualquer modo, concorrido para ele. Caso não o tenha, poderá sempre ser arrolado como testemunha, pelo que, a disposição é inútil.

Por outro, o perdão judicial se aplica, repetindo, por ocasião da sentença e, depois dela, não se pode mais produzir prova no processo! Ademais, estranhamente, se a regulamentação diz respeito a prova a ser produzida a respeito de outro processo, não há nenhuma necessidade de regulamentação, pois qualquer pessoa pode ser testemunha de quem quer que seja, em qualquer processo!

É pertinente e persistente a crítica doutrinária de que o Brasil vem legislando no processo penal de forma a desviar o foco da produção probatória através da investigação do fato, para concentrar-se na pessoa do próprio investigado como fonte de prova, transferindo-lhe obrigações — ou, no caso, estimulando-o — a reconstituição do fato[3]. Não deixa de ser uma forma indireta de o legislador burlar ou desrespeitar a garantia constitucional de o cidadão não produzir prova contra si mesmo.

Prende-se para investigar, prende-se para fragilizar, prende-se para forçar a confissão e, por fim, prende-se para desgastar, subjugar, ameaçar e forçar a “colaboração premiada”! Aliás, a própria autoridade repressora reconhece, oficialmente, em seu parecer, que esse é o objetivo maior das prisões e tem sido exitoso: arrancar a confissão e forçar a “delação”! Retornamos à Idade Média, quando às ordalhas e a tortura também tinham objetivo de arrancar a confissão, e também eram cem por cento exitosas! Só falta torturar fisicamente, por que psicologicamente já está correndo!

Essa admissão oficial do fundamento das prisões escancara a sua ilegalidade, a sua arbitrariedade e a sua ilegitimidade! Certamente, não resistirá ao crivo dos tribunais superiores! Ao menos, é o que se espera em um Estado Democrático de Direito, que consagra a prisão como última ratio!


[1] Código Penal espanhol, arts. 376 e 579, n. 3; Código Penal italiano, arts. 289bis e 630, e Leis n. 304/82, 34/87 e 82/91; Código Penal português, arts. 299, n. 4, 300, n. 4, e 301, n. 2; Código Penal chileno, art. 8º; Código Penal argentino, art. 217; Código Penal colombiano, arts. 413/418, entre outros.

[2] BITENCOURT, Cezar Roberto & BUSATO, Paulo César. Comentários à lei de organização criminosa – Lei 12.850/2013.

[3] A opinião é de SARCEDO, Leandro. “A delação premiada e a necessária mitigação do princípio da obrigatoriedade da ação penal”, in Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo, vol. 27, Jan. 2011. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 192.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!