Opinião

Sankofa: a Defensoria Pública do futuro

Autor

  • Lívia Casseres

    é defensora pública no Estado do Rio de Janeiro onde exerce o cargo de coordenadora do Núcleo contra a Desigualdade Racial mestra em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro coordenadora da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos e integrante da Coletiva de Mulheres Defensoras Públicas do Brasil.

26 de agosto de 2020, 18h05

Na cultura dos povos akan, grupos étnicos localizados nas atuais repúblicas de Gana, Togo, Costa do Marfim e Guiné-Conacri, falantes das línguas do grupo kwa, encontra-se uma rica tradição oral, expressa em canções, poemas e contos [1]. Desafiando a concepção comum de que o conhecimento africano se resume à oralidade, é também na cultura dos akan da África Ocidental que está presente a representação grafada adinkra [2].

Os adinkra podem ser definidos como símbolos ou ideogramas impressos por meio de desenhos entalhados em pedaços de cabaça, que representam provérbios tradicionais, usualmente empregados na estamparia.

Sankofa identifica precisamente um adinkra, representado por um pássaro que volta a cabeça à cauda. Seu significado remete à ideia filosófica "nunca é tarde para voltar e recolher o que ficou para trás" [3].

O ensinamento dos povos africanos akan nos convida a aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro.

No delicado contexto de pandemia de Covid-19, o povo brasileiro vive um momento duríssimo de sua história recente. Enquanto as análises econômicas indicam que o Brasil caminha para a maior crise econômica já vivida no país, a gestão cambaleante dos impactos da pandemia pelo Executivo federal parece ser um catalisador dos piores efeitos da catástrofe sanitária. Caminhando à beira do abismo das crises institucionais, o país vê a sua imagem se deteriorar no cenário internacional, o que é fortemente impulsionado pelos alertas de devastação ambiental [4].

É nesse delicado cenário que assistimos à alta persistente nos índices de desemprego [5], ao retorno do fantasma da fome [6], à precarização das condições de trabalho dos brasileiros [7], bem como à queda brusca na renda média da população [8].

As Defensorias Públicas brasileiras têm sido confrontadas com a explosão de demandas por direitos relacionados à população em situação de rua, à violência doméstica, às mortes em operações policiais, ao atendimento de saúde, às dificuldades no acesso ao auxílio emergencial e até mesmo aos insumos indispensáveis prevenção do novo coronavírus como a água e o saneamento básico.

A questão prisional merece um capítulo à parte: desde o princípio da pandemia, as Defensorias Públicas litigam em todo o país para fazer valer as normas mais primárias da ordem constitucional — desde a excepcionalidade das prisões cautelares; o direito de ser apresentado imediatamente à presença (física e não virtual) do juiz ou da juíza depois da detenção como forma de prevenir e coibir a tortura; até a garantia de informações sobre a transmissão do coronavírus nas prisões e de atendimento de saúde adequado às pessoas encarceradas.

Mesmo no país que responde por 77% das mortes maternas por coronavírus registradas em todo o mundo [9], o ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Fux encontrou argumentos formais para manter privadas de liberdade as 208 mulheres grávidas presas em todo o país, às quais somam-se 44 puérperas e 12.821 mães de crianças menores de 12 anos (HC 186.185 [10]).

O presente não poderia se mostrar mais distópico e complexo. O ano de 2020 transcorre e nos obriga a sacudir o mofo das antigas certezas. Como profetizou Achile Mbembe, 2020 veio nos dizer definitivamente: a era do humanismo acabou [11].

A ética contida em sankofa oferece uma alternativa e nos convida a olhar para trás, a fim de reconstruir a ideia de futuro. E a única forma de praticar esse ensinamento para uma nova compreensão e enfrentamento dos desafios do acesso à Justiça no momento presente é o autorreconhecimento do povo brasileiro como herdeiro da diáspora africana.

É dizer: a busca por novas perspectivas de construção da cidadania está ligada ao deslocamento do paradigma que definiu as formas político-jurídico-ideológicas que nos conduziram até aqui. Significa o esforço de edificar novos saberes e acessar novas vivências para a projeção da utopia de um outro edifício democrático, que abarque verdadeiramente todos nós.

Essa reflexão está ancorada no porto ladinoamefricano que nos legou Lélia González. Ainda nos anos 1980, a intelectual e política brasileira propôs um olhar novo e criativo à formação histórico-cultural do Brasil que se traduz na ideia de amefricanidade [12].

Ao identificar na diáspora africana vivida sobre o continente americano uma experiência comum, a categoria político-cultural da amefricanidade conecta todos os seus habitantes na descendência dos africanos escravizados durante o período colonial e dos povos originários presentes na região, muito antes de Colombo. Mais do que uma referência histórica e geográfica, a amefricanidade tem o sentido de criar uma unidade específica forjada no interior das diferentes sociedades que compõem a Améfrica. Representa ainda a construção de um comum assentado na partilha de um mesmo sistema de dominação, o racismo, e das dinâmicas de resistência a partir dele construídas.

Somando-se ao trabalho de tantos outros autores africanos e amefricanos, Lélia González apontou a hierarquia racial e cultural constitutiva da sociedade e do Estado brasileiros e, com isso, levantou o véu da democracia racial e da ideologia de branqueamento.

E, por óbvio, o Direito não escapa à denúncia. Também na década de 1980, juristas precursoras como Dora Lúcia Bertúlio [13] e Eunice Prudente [14] se encarregariam de apontar a incompletude da teorização do Direito que se cristalizara por aqui. E caracterizariam, assim, as lacunas no pensamento jurídico — sobretudo na vertente que se pretende crítica —, que não apenas "esqueceu-se" do racismo como dimensão estruturante do campo jurídico como também nos despojou do legado político, filosófico e científico construído na resistência negra ao racismo.

Minha aposta ao leitor que acompanhou-me até este ponto: você nunca tinha ouvido falar da obra de Lélia, Dora ou Eunice, tampouco de intelectuais de escol como Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Maria Beatriz Nascimento.

O alheamento dos profissionais do Direito em relação ao conhecimento produzido por pensadores negros é um sinal do colonialismo jurídico que marca nossa formação em toda a América Latina. O estranhamento evidencia ainda, mais amplamente, os obstáculos epistemológicos impostos pela racionalidade jurídica eurocêntrica que ainda nos é imposta [15].

A deslegitimação e o silenciamento dos saberes exteriores ao modelo eurocêntrico nos negam acesso às contribuições negras e indígenas sobre a formação social brasileira, assim como para a Teoria do Estado, a Teoria do Direito e os mais diversos ramos das ciências jurídicas.

Não por acaso, essa violência epistêmica produziria na América Latina um vocabulário sobre os direitos que oferece às grandes massas da população apenas uma proteção ilusória, que adere tão somente uma parcela dos corpos e dos espaços geográficos [16], enquanto entrega à maior parte deles uma condição de subcidadania, o status de vida às margens da moldura do Estado democrático de Direito.

Afinal, o colonialismo jurídico não se resume a um modo de construção de saber, mas se traduz numa determinada forma de produção normativa (teórica, legislativa e jurisprudencial) que está circunscrita à experiência e às formas de vida brancas, da cisheteronormatividade compulsória, proprietárias, cristãs e de origem norte atlântica [17].

Um modelo de cidadania e de acesso à Justiça que preserva o referencial branco eurocêntrico como parâmetro universalizável não faz mais do que desempenhar fielmente o papel de escamotear a violência constitutiva do aparato normativo e de despolitizá-lo.

A organização do acesso à Justiça e dos serviços jurídicos estatais no Brasil está, assim, ideológica e politicamente comprometida com a naturalização da experiência de violação de direitos que define a vida da maior parte dos brasileiros.

E, embora soe espantoso, as Defensorias Públicas têm também um lugar definido no funcionamento do sistema jurídico que borra a linha racial distintiva daqueles que experimentam a normatividade como regra e em relação aos que estão sujeitos à exceção como normalidade [18].

Sob a premência deste distópico 2020, portanto, é crucial que a assistência jurídica estatal posicione-se na encruzilhada [19], isto é, reconheça-se como peça-chave de um Estado cuja racionalidade fundamental é a produção e reprodução de um sistema de dominação racista. E, ao mesmo tempo, mostre-se capaz de denunciar o elemento racista-colonial que estrutura o aparato jurídico no Brasil e oferecer-se como instrumento de resistência.

Para tanto, é insuficiente o esforço comparativo com outros modelos de assistência jurídica, linha que até aqui tem dominado a literatura sobre a Defensoria Pública. Está, mais do que nunca, colocada em xeque a fé na "modernização" do Estado brasileiro, que permitiria a evolução linear rumo a um patamar igualitário e universal de cidadania, em que as "ondas renovatórias" vão gradativamente absorvendo as barreiras ao acesso à Justiça [20].

É também insuficiente a aposta na ampliação do investimento e na eficiência da gestão dos serviços jurídicos. Se o Sistema Único de Saúde, maior patrimônio construído pela população brasileira na Constituição de 1988, foi conduzido ao colapso, soa pueril a crença na universalização da cobertura da assistência jurídica no Brasil.

Não nos bastará, tampouco, adaptar os serviços das Defensorias às novas tecnologias, muito menos adscrever "novas vulnerabilidades" ao referencial da assistência jurídica [21].

Não há saída senão olhar pra trás: mirar o passado para reconstruir os modos de saber e fazer das Defensorias Públicas brasileiras. Encontrar em Luiz Gama, Esperança Garcia, no referencial político de resistência das mães de Acari, de Maio e de Manguinhos, dos povos indígenas, dos povos de terreiro da comunidade transexual e travesti, a sua encruzilhada ladinoamefricana [22].

 


[1] LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. 4a ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 32-33.

[2] IPEAFRO, Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros. Adinkra, disponível em: https://ipeafro.org.br/acoes/pesquisa/adinkra/, último acesso aos 29/07/2020, às 10h6min.

[3] LOPES, Nei. Op. cit., p. 620.

[7] O aumento das inscrições de trabalhadores nos aplicativos de entrega durante a pandemia do coronavírus trouxe à tona a fragilidade dos trabalhadores informais, impossibilitados de adotar um regime de trabalho remoto, desprovidos de maiores proteções legais e cuja renda está diretamente atrelada ao número de vendas e prestações de serviço. Confira-se em: https://www.terra.com.br/noticias/tecnologia/numero-de-entregadores-de-aplicativo-cresce-apos-covid-19,a260720f923439424d686333ed8d32ee9arc7ofd.html; https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/03/15/Informalidade-e-coronav%C3%ADrus-as-medidas-dos-apps-e-a-renda-em-xeque

[8] Levantamento do IPEA aponta uma queda da renda média dos brasileiros a 82% do habitual e mostra que algumas categorias foram ainda mais afetadas pela crise econômica, como quem trabalha por conta própria, que viu a renda média cair para apenas 60% da normal. Fonte: https://valorinveste.globo.com/mercados/brasil-e-politica/noticia/2020/07/03/renda-media-de-brasileiros-cai-a-82percent-do-habitual-em-maio-devido-a-covid-19.ghtml

[11]MBEMBE, Achille. Achille Mbembe: “a era do humanismo está terminando”. Tradução de André Langer, publicado em 24/01/2017. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/eventos/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando

[12] GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade, in: Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. º 92/93 (jan/jun), 1988b, p. 69-82.

[13] BERTULIO, Dora Lucia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[14] PRUDENTE, Eunice Aparecida de Jesus. Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação do Departamento de Direito da USP. São Paulo, USP/Faculdade de Direito, 1980.

[15] FERRAZO, Débora e DUARTE, Francisco Carlos. Colonização jurídica na América Latina. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=f376b8ae6217d18c

[16] PIRES, Thula. Direitos humanos e Améfrica Ladina: Por uma crítica amefricana ao colonialismo jurídico. LASA FORUM, 50:3, Dossier el pensamiento de Lélia Gonzalez, un legado y un horizonte, 2019, pp. 69-74. Disponível em: https://forum.lasaweb.org/files/vol50-issue3/Dossier-Lelia-Gonzalez-7.pdf

[17] PIRES, Thula. op. cit.

[18] CASSERES, Lívia e PIRES, Thula. Necropoder no território de favelas do Rio de Janeiro. Anais do I Congresso de Pesquisas em Ciências Criminais, de 30 de agosto a 1 de setembro de 2017, São Paulo, SP [recurso eletrônico] / Organizado por Alexis Couto de Brito, Marco Aurélio Florêncio e Allyne Andrade. – São Paulo: IBCCRIM, 2017, pp. 1428-1465.

[19] “A perspectiva da encruzilhada como potência de mundo está diretamente ligada ao que podemos chamar de culturas de síncope. Elas só são possíveis onde a vida seja percebida a partir da ideia dos cruzamentos de caminhos. A base rítmica do samba urbano carioca é africana e o seu fundamento é a síncope. Sem cair nos meandros da teoria musical, basta dizer que a síncope é uma alteração inesperada no ritmo, causada pelo prolongamento de uma nota emitida em tempo fraco sobre um tempo forte. Na prática, a síncope rompe com a constância, quebra a sequencia previsível e proporciona uma sensação de vazio que logo é preenchida de forma inesperada.” (SIMAS, L. A. e RUFINO, L. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018, p. 18).

[20] Veja-se, por todos: ROGER, F. e ESTEVES, D. Princípios institucionais da Defensoria Pública, 2a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017.

[22] As reflexões brevemente explicitadas aqui baseiam-se na pesquisa empreendida pela autora durante sua dissertação de mestrado sobre o processo de constitucionalização da Defensoria Pública brasileira, as quais encontram-se minudenciadas no trabalho Kizomba: a Constituição-potência da Defensoria Pública brasileira. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/46529/46529.PDF

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    é defensora pública no Estado do Rio de Janeiro, onde exerce o cargo de coordenadora do Núcleo contra a Desigualdade Racial, mestra em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, coordenadora da Comissão de Igualdade Étnico-Racial da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos e integrante da Coletiva de Mulheres Defensoras Públicas do Brasil.

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