ABDPRO #185 - PRINCÍPIO NÃO É NORMA (2ª PARTE)

14/07/2021

Coluna ABDPRO

Parte 1 

Ao Marco Paulo Di Spirito 

I

Em artigo anterior, mostrei que os princípios não são normas. Eles têm mera «normatividade a caminho», «quase normatividade», «normatividade incompleta», «modo privativo de normatividade», sem autossuficiência operativa. Quando muito o princípio serve ao fechamento do sistema de direito positivo e à interpretação das regras desse sistema (que são as normas jurídicas propriamente ditas). Na realidade, o princípio habita a zona fronteiriça entre o axiológico e o deontológico, a moralidade e a juridicidade, o valorativo e o normativo, a ética e o direito (Princípio não é norma - 1ª parte. <https://cutt.ly/nnkO1l7>). Mesmo assim, o princípio é um dado jurídico, não extrajurídico. Pertence unicamente ao direito, posto que esteja muito próximo à moral. No entanto, embora faça parte do direito, o princípio não faz parte do ordenamento jurídico. Ela está fora do ordenamento jurídico, mas dentro do direito. Isso significa que direito e ordenamento jurídico não são sinônimos. O conceito de direito abrange o conceito de ordenamento jurídico. O ordenamento jurídico é só uma parte do direito. Direito = principiologia + ordenamento jurídico = conjunto dos princípios + sistema de regras. Enquanto o princípio de direito se exprime por uma proposição deôntica categórica [«C deve ser»], a regra de direito se exprime por uma proposição deôntica hipotético-condicional [«Se A, então B deve ser»]. Nota-se, assim, que o princípio sofre de uma privação estrutural: não se sabe quando ele incide, tampouco quais são as consequências jurídicas dessa incidência. Essa privação estrutural do princípio leva-o, por conseguinte, a uma privação funcional: ele não pode ser aplicado. A aplicabilidade é um atributo exclusivo das regras. Somente elas «explicam» quando incidem e, uma vez ocorrida essa incidência, que efeitos são produzidos. Exatamente por essa razão, o princípio só pode ser realizado pelo intermédio das regras. As regras são «a» ponte entre a principiologia e a casuística. É preciso que elas se interponham entre uma coisa e outra. Quando se afirma que o juiz «aplica diretamente um princípio», na verdade se está dizendo que o juiz cria a regra de intermediação entre o princípio jurídico e o caso concreto, aplicando-a logo em seguida. Frise-se: cria-a ao seu próprio talante e às escondidas. Atuando como um microlegislador indômito e desparametrizado, o juiz esquematiza de modo solitário tanto a hipótese de incidência quanto a consequência jurídica da regra que densifica o princípio. Dessa maneira, não há rigorosamente a aplicação do princípio, mas a aplicação de uma regra oculta elaborada pelo próprio aplicador. Em vez de uma regra legal expressa de eficácia ex tunc e instituída ante causam [= «demonorma»], tem-se uma regra judicial implícita de eficácia ex nunc e instituída post causam [= «criptonorma»]. O jurisdicional cede passo ao paralegislativo; a vinculativo, ao discricionário; a interpretação, à criação; o técnico-burocrático, ao político-deliberativo; o democrático, ao aristocrático; o parlamentar, ao tribunalício; o omnilateral, ao unilateral; o objetivo, ao subjetivo. Substitui-se o Estado democrático-parlamentar de direito legislado por um inusitado «Estado aristocrático-judiciário de direito jurisprudencial». Por isso, a chamada «teoria dos princípios» não passa de um ativismo judicial envernizado.

 

II

Exemplo de judiciocracia maquilada, que se escora na suposta «normatividade dos princípios», é a teoria brasileira do cooperativismo processual. Segundo os próceres do chamado «modelo cooperativo», o processo é uma parceria público-privada entre o Estado-juiz e as partes: uma comunidade dialogal de trabalho na qual os sujeitos do processo renunciam habermasianamente a estratégias manipulatórias e cooperam entre si, com sinceridade e desimpedimento, «para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva». Nesse sentido, a corrente cooperativista seria uma «terza via» à disputa entre o privatismo e o publicismo, tratando-os com «desprezo» [Überwindung] ou «superação» [Aufhebung] (para uma crítica a essa ideia de «terceira via» no pensamento processual, v. nosso O «fim da história» na ciência processual. <https://cutt.ly/rmIuBdu>). Tudo quanto interesse ao deslinde da causa (fatos, fundamentos jurídicos, provas, pedidos etc.) não é aportado apenas pelas partes ou apenas pelo juiz, porém igualmente por todos os sujeitos do processo, obedecendo-se a uma simetria radical somente rompida quando o juiz precisa decidir. Daí por que não há protagonismos: o processo não é coisa das partes nem coisa do juiz, mas coisa de todos; não é bem privado nem bem público, mas condomínio misto público-privado (sobre essas metáforas, v. nosso Processo como coisa. <https://cutt.ly/kmA1Tk5>). De um lado estão as partes, os bons sauvages de JEAN-JACQUES ROUSSEAU, os «bons litigantes»; de outro, o juiz, o «juiz amigo», o «juiz companheiro», o «juiz camarada», o «juiz good fellow», o «juiz-Gasparzinho». Como se vê, trata-se de um esforço neokantista social-democrata para a «moralização humanizadora» da relação jurídica processual. O próprio Professor MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, pai intelectual da cooperação processual em Portugal, reconhece que o instituto configura um «activismo judiciário» de «orientação democrática e social» (Estudos sobre o novo processo civil. 2. ed. Lisboa: Lex, 1997, p. 58-60. Para uma excelente análise crítica das suas ideias: ANCHIETA, Natascha e RAATZ, Igor. Cooperação processual: um novo rótulo para um velho conhecido. <https://cutt.ly/umYSdYY>). Em outros termos, trata-se de uma microesboço centro-esquerdista de «socialismo ético» projetado sobre o âmbito jurisdicional. Para que seja efetivada a decantada «moralização humanizadora da relação processual», é necessário alçar o juiz à condição superior de «cérebro privilegiado», de «mandarim» soixante-huitard a serviço da flamme collaborationniste. Deve-se-lhe outorgar a capacidade plenipotenciária de «aplicar per saltum» o princípio da cooperação processual com o objetivo «técnico» de coordenar o agir comunitário-fraternal de todos. Dessa maneira, podem conviver entre si: a) deveres cooperativos típicos instituídos ex ante facto por demonormas legislativas [interpositio legislatoris]; b) deveres cooperativos atípicos instituídos ex post facto por criptonormas judiciais [interpositio iudicis]; c) deveres cooperativos atípicos instituídos ex ante facto por demonormas negociais [interpositio negotiorum]. Assim sendo, haveria um bloco triádico, sólido e indivisível de deveres cooperativo-processuais.

 

III

Nesse sentido, de acordo com a démarche cooperativista, a regulação da dinâmica processual obedeceria a uma complexidade técnica triangular horizontalizada. A atuação dos sujeitos processuais seria orientada pela heterogeneidade leis ordinárias federais [omnilateralidade] + negócios jurídicos processuais [bilateralidade] + resoluções estratégicas do juiz [unilateralidade], sem qualquer hierarquia entre essas três fontes do compósito. Logo, escapa-se a um processo exclusivamente legal, fazendo-se dele uma estrutura mais espessaproteica e, consequentemente, complexa. Haveria uma gestão processual tripartite legislador-partes-juiz e, assim, uma coordenação equilibrada entre um «devido processo legal», um «devido processo negocial» e um «devido processo judicial». Enfim, os marcos legais seriam completáveis por marcos extralegais decorrentes tanto da autonomia privada das partes quanto da autonomia pública do juiz. Dentro dessa triarquia mágica de alinhamento, o juiz desempenharia uma «competência tecnocrática discricionária». Ele seria uma espécie de «agente regulador do desenvolvimento e do bem-estar cooperativos». Ele refinaria os marcos regulatórios estabelecendo in casu deveres mais individualizados e, com isso, fortalecendo a colaboração trilateral recíproca entre os sujeitos do processo. Sob o pretexto de «aplicar per saltum» o princípio da cooperação processual a situações não contempladas pelo legislador nem pelas partes, o Estado-juiz arquitetaria criptorregras - regras ocultas e inconfessas - plasmando paralegislativamente todos os elementos constituintes de uma norma jurídica de conduta e de uma norma jurídica de sançãoGrosso modo, a primeira criptonorma teria a seguinte conformação: «Se alguém é sujeito do processo, então deve cooperar de determinado modo». Por sua vez, a segunda criptonorma teoria a seguinte conformação: «Se esse alguém não coopera, então deve receber determinada punição», ou «Se esse alguém coopera, então deve receber determinada premiação». O juiz constituiria sponte sua: 1) em relação à consequência jurídica da primeira criptonorma: 1.1) o elemento subjetivo (quem deve cooperar com quem: o Estado-juiz com o demandante? O demandante com o Estado-juiz? O Estado-juiz com o demandado? O demandado com o Estado-juiz? O demandante com o demandado? O demandado com o demandante?); 1.2) o elemento espacial (onde essa cooperação deve ter lugar); 1.3) o elemento temporal (quando essa cooperação deve acontecer, ou seja, em qual fase do processo ela é exigível); 1.4) o elemento material (qual o conteúdo da cooperação, ou seja, o que significa o verbo cooperar nessa situação específica, uma vez que a palavra é polissêmica); 1.5) o elemento objetivo (qual o objeto da cooperação, ou seja, qual o termo que completa o sentido do verbo cooperar nessa situação específica); 1.6) o elemento formal (de qual formato eventualmente se deve revestir o ato cooperativo); 2) em relação à consequência jurídica da segunda criptonorma: 2.1) a sanção negativa (qual pena deve ser imposta a quem não coopera); ou 2.2) a sanção positiva (qual prêmio deve ser concedido a quem coopera).

 

IV

Como se pode perceber, ao lado de um devido processo legal, da lei, legicêntrico, regulado pela lei [CF/1988, art. 5º, LIV], convive no cooperativismo um indevido processo judicial, do juiz, judiciocêntrico, regulado pelo juiz. O juiz tem o poder demiúrgico de definir deveres extralegais de cooperação tanto para si [= autorregulação] quanto para as partes [= heterorregulação]. Um dos mais abomináveis desses deveres, que de quando em vez os juízes imputam a si mesmos sem nenhuma previsão legal, embora amparados na doutrina mainstream, é o chamado «dever de auxílio». Em geral, defende-se que «o juiz deve ajudar as partes, eliminando obstáculos que lhes dificultem ou impeçam o exercício das faculdades processuais» (TALAMINI, Eduardo. Cooperação no novo CPC (primeira parte): os deveres do juiz. <https://cutt.ly/ImzFv7m>). Na realidade, não se trata de um dever puro e simples, mas de um poder-dever funcional: o juiz teria o poder de auxiliar, devendo fazê-lo no melhor interesse do auxiliado. De qualquer forma, está-se diante de um monstro processual. Como bem assevera DIEGO CREVELIN DE SOUSA, «o dever de auxílio é exatamente o que parece: uma autorização para o Estado-juiz ajudar a parte, como se seu advogado fosse», «uma autorização para o juiz deixar o seu lugar de terceiro e se colocar ao lado da parte a fim de ajudá-la a vencer» (Impartialidade. Belo Horizonte, Casa do Direito, 2021, p. 365-366). A partir do princípio da cooperação processual, o juiz deriva per saltum et rem suam, sem amparo em qualquer regra legal expressa, a função de ajudar a parte; em consequência, o juiz inventa in causa propria um salvo-conduto para quebrar a própria imparcialidade. Quando auxilia a parte com o pretexto de estar concretizando a cooperação processual, o juiz está definindo implicitamente os elementos constituintes de uma regra que ele mesmo cria e aplica (a criptorregra), tendo em vista que ele está escolhendo livremente o beneficiário do auxílio, o momento oportuno para auxiliar, o que significa auxiliar nesse caso e a forma como esse auxílio há se ser prestado. Talvez seja aqui que a social-democraticidade da cooperação processual - e, portanto, a sede por «justiça social» - mais transpareça. O «dever de auxílio» pode servir, por exemplo, para o juiz coadjuvar a parte que prejulgue ter razão, pela qual tenha sido corrompido, com a qual tenha identidade político-ideológica, da qual sinta compaixão, com a qual nutra laços privados de afeição ou de cuja vitória possa tirar proveito para si ou para outrem. Assim, abrem-se as portas para justiceirismos, imoralismos, ativismos políticos, caritativismos, manipulações, apadrinhamentos etc. Tudo isso mostra que o cooperativismo processual, porque se fundamenta na malsinada «teoria dos princípios», é uma perigosa doutrina de empoderamento judicial. Não passa de uma versão rósea e fingida do instrumentalismo processual. É uma «tecnologia da jurisdição» (PEREIRA, Mateus Costa. Processualidade, jurisdicionalidade e procedimentalidade (II): a cooperação como «garantia» avessa ao processo. <https://cutt.ly/bmYD66Z>). Em síntese, é o mais do mesmo: uma teoria muito jurisdicionalista e pouco processualista. Mais: é um jurisdicionalismo socialista, conquanto revisado, reformado, atenuado, fabiano. 

 

V

A hipótese de incidência [= preceito primário] e a consequência jurídica [= preceito secundário] das criptorregras são esquematizadas pelo juiz a partir do seu senso pessoal imotivado de (des)proporção. Esse senso obedece a razões íntimas nunca externadas e, portanto, indevassáveis ab extra. Isso significa, em outras palavras, que as criptorregras judiciais são editadas secundum conscientiam. Por conseguinte, a criptonormatividade sói flutuar aleatoriamente entre o proporcional e desproporcional, sem que essa flutuação possa ser controlada ex ante pelas partes. Seja como for, não existem critérios objetivo-racionais que viabilizem esse controle. A densificação de princípios jurídicos não obedece a uma operação mental cujas etapas sejam intersubjetivamente compartilháveis. Não obedece a uma racionalidade pública, que permita às partes acompanhá-la pari passu para eventualmente impugná-la e dela se defenderem. A marcha do princípio à regra é plenamente livre. É um voo cego rumo a um destino incerto. Sabe-se o ponto de partida, mas não o ponto de chegada. Não se segue um «método densificante» único e unívoco. Em suma, não existe uma linha de evidência que, trilhada com disciplina e sem desvios, nos leve a uma única e exclusiva regra de densificação. O salto entre um princípio e uma regra que o concretize se faz por um ato bruto de vontade imprevisível, não por um raciocínio fino verificável. A realização de um princípio sempre se pode dispersar em múltiplas regras jurídicas, todas elas igualmente optáveis entre si. Daí por que essa realização é marcada pelo signo da discricionariedade. Por esse ângulo, a «aplicação direta de princípio» não é um ato apenas juris-dicional [= ato de aplicação de direito]. É um ato tanto juris-lativo [= ato de criação de direito] quanto juris-dicional [= ato de aplicação de direito]. O juiz aplica a regra que ele próprio cria. Isso mostra que a teoria brasileira do cooperativismo processual, visto que calcada na «aplicação direta» do princípio da cooperação, não passa de uma expressão de voluntarismo judicial. Opera-se no quotidiano forense mais pela vontade emocional do que pelo intelecto metódico dos juízes. Sublinhe-se: o problema não é a ideia de cooperação processual em si. Nada impede que aqui e ali sejam previstos deveres cooperativos mediante regras legais, expressas, claras, pontuais e discretas, com hipóteses de incidência e consequências jurídicas bem delimitadas, instituídas pelo legislador em atenção a imperativos de conveniência, oportunidade e praticabilidade. É o que se tem, por exemplo, nos artigos 9º, 10, 11, 77 §§ 1º e 2º, 80, 81, 317, 321, 489 § 1º I a VI, 493 parágrafo único, 927 § 1º, 932 parágrafo único e 933, todos do CPC de 2015. A propósito, nada há de novo neles, pois todos decorrem de uma releitura forte das garantias constitucionais do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais (cf., v. g., SOUSA, Diego Crevelin O caráter mítico da cooperação processual. <https://cutt.ly/afhSc6X>). Em rigor, eles já seriam exigíveis se a jurisprudência do STF fosse realmente comprometida com as garantias do processo e no processo. O problema surge quando o juiz é transformado em um mágico e o princípio da cooperação processual em uma cartola. Surge quando se entrega ao juiz um «cheque em branco» para que ele se encarregue da utopia da cooperação.

 

VI

Não é possível que o instituto da cooperação seja simplesmente «transplantado» - de modo passivo, acrítico e ingênuo - do plano contratual para o plano processual. Se tanto, a flagrante assimetria entre esses dois ambientes permite uma adaptação desajeitada e imperfeita. Afinal de contas, a relação jurídica contratual é privada, bilateral, simétrica e não litigiosa; nela, a partes se movem por interesses egoísticos e uma tem aquilo que a outra deseja: a prestação obrigacional. Em contrapartida, a relação jurídica processual é pública, trilateral, assimétrica e litigiosa; nela, as partes são interessadas e o juiz é um terceiro desinteressado, que tem aquilo que ambas desejam: a prestação jurisdicional. Como se nota, não existe homologia geométrico-estrutural nem conteudístico-funcional entre um âmbito e outro. A bem da verdade, uma teoria da cooperação processual que se pretenda minimamente adequada deveria reconstruir-se do zero, submeter-se a uma refundação epistemológica e prospectar deveres cooperativos desde a realidade material específica da processualidade. Deveria ter não uma dignidade teórica indireta, mediata, derivada, espelhada, extrínseca, secundária, de segunda mão, mas direta, imediata, originária, própria, intrínseca, primária, de primeira mão. Entre a cooperação contratual e a cooperação processual deveria haver tão exclusivamente um nexo de semelhança ou inspiração, jamais de imitação ou cópia. Fazendo-se isso, é bastante provável que se descubram deveres cooperativos contratuais sem correspondente processual, assim como deveres cooperativos processuais sem correspondente contratual. Não é difícil imaginar que a incidência da boa-fé objetiva sobre o âmbito processual (da qual a cooperação é um mero desdobramento) exija da autoridade judicial uma conduta pública insuspeita. Essa conduta não deve trazer dúvidas à seriedade do Poder Judiciário, nem enfraquecer a confiança da comunidade em suas decisões. Nessa perspectiva, a aparência de seriedade seria um dever processual do juiz sem um equivalente contratual, tanto quanto o auxílio seria um dever obrigacional dos contratantes sem um equivalente processual. É interessante perceber como a imparcialidade do juiz expulsa do âmbito processual o malsinado «dever de auxílio» e, ao mesmo tempo, atrai para si a noção de aparência de seriedade (aliás, outras iniciativas oficiosas do juiz supostamente cooperativas - como a prova de ofício, o iura novit curia e a dinamização do ônus probatório - também são expulsas pela sobregarantia arquifundamental da imparcialidade judicial). Não sem motivo, desde os anos 1980 se fala na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos em uma doutrina objetivista da «imparcialidade judicial como aparência de seriedade» (cf., e. g., Piersack vs. Bélgica, j. 01.10.1982; De Cubber vs. Bélgica, j. 26.10.1984; Pfiefer y Plankl vs. Áustria, j. 25.02.1992; Sainte-Marie vs. França, j. 16.12.1992; Fey vs. Áustria, j. 24.02.1993; Padovani vs. Itália, j. 26.02.1993; Nortier vs. Países Baixos, j. 24.08.1993; Saraiva de Carvalho vs. Portugal, j. 22.04.1994). «À mulher de César não basta ser honesta, deve parecer honesta»; igualmente, «ao juiz não basta ser imparcial, é preciso parecer imparcial».

 

VII

De qualquer forma, nenhum dever cooperativo pode ser instituído à margem de regra legal expressa. É absolutamente indefensável, portanto, a vigência de um «modelo cooperativo» no Brasil. A cooperação se apresenta em nosso país, no máximo, como um conjunto fragmentário de alguns poucos deveres. Nem poderia ser diferente: sendo o processo um direito subjetivo fundamental de liberdade do cidadão [CF/1988, art. 5º, LIV], nele devem prevalecer as razões endógenas comunicativas aportadas dialeticamente pelas próprias partes [raisons privées]. As razões exógenas instrumentais impostas coercitivamente pelo Estado [raisons d’État], das quais a cooperação processual é um exemplo, devem restringir-se a hipóteses legais, expressas e discretas (sobre o tema, v. nosso Processo e razões de Estado. <https://cutt.ly/5mR6wwg>). Essa quantidade acanhada de deveres processuais confina as exigências de boa-fé e cooperação em limites bastante razoáveis e proporcionais. Contudo, descamba-se para um autoritarismo de toga quando se permite ao Estado-jurisdição criar criptonormas sobre deveres cooperativos. A «aplicação direta» do princípio da cooperação processual não passa de uma usurpação judicial de competência legislativa. A teoria-mãe dos princípios e as suas teorias-filhotes (neoconstitucionalismo, cooperativismo, precedentalismo, processo estrutural, eficienticismo, teoria do «estado inconstitucional de coisas», «direito civil constitucional», teoria da insignificância penal etc.) já trouxeram estragos demais à nossa vida republicana. É chegada a hora de sepultá-las. Fora do País, a «aplicabilidade direta» do princípio da cooperação processual é uma doutrina minoritaríssima. Em geral se estuda a cooperação, mas não se faz cooperativismo (que é a cooperação indevidamente excessiva, exagerada, hiperbólica, desmedida, totalizante e, em consequência, totalitária). Isso mostra a vocação brasileira para a falta de autocontenção, que sempre se amacia sob o calor e a umidade tropicais, transmudando-se no cordial, no malandro ou no autoritário. Em estágio pós-doutoral na Universidade de Lisboa, o Professor FREDIE DIDIER JR. estudou o princípio da cooperação processual tal como enunciado no artigo 7º, I, do CPC português («Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio»). Todavia, foi além: refez a teoria da cooperação processual à luz da «teoria dos princípios» de HUMBERTO ÁVILA e disseminou-a, tornando-se o «pai da criança» no Brasil. Entretanto, o próprio processualista baiano admite: «prevalece el entendimiento de que la eficacia de esse principio depende de la concretización legislativa», pois, «para los juristas portugueses, no tiene aplicación directa», já que «no sería, por lo tanto, propriamente una norma jurídica»; logo, «actúa apenas mediante reglas legales, en las que se definen expressamente las posiciones jurídicas de los sujetos procesales» (Fundamentos del principio de cooperación en el derecho procesal civil portugués. Trad. Christian Delgado Suárez. Lima: Comunitas, 2010, p. 58). Como se vê, os portugueses têm muito a nos ensinar.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Worshipful Master's Gavel // Foto de: Bill Bradford // Sem alterações

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