Presidente da Associação Nacional dos Desembargadores defende reforma do Judiciário com regras de mediação pré-processual para conter colapso do sistema

Por Elenilce Bottari (da Agência de Notícias EuroCom)

Marcelo Buhatem defende a mediação pré-processual como alternativa para desafogar os tribunais.

O Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021, divulgado nesta semana pelo Ministério da Economia, prevê um rombo de R$ 233,6 bilhões no próximo ano nas contas da União, mesmo com a manutenção do mecanismo do teto de gastos. Nesta conta, o rombo previsto para o Poder Judiciário na esfera federal é de R$ 6,332 bilhões. Serão R$ 50.521,7 bilhões em despesas correntes para um teto de R$ 44.189 bilhões. Nesta soma, não entram os gastos com a Justiça Estadual, onde hoje governadores e tribunais travam batalhas para definir seus limites no combalido orçamento pós pandemia.

Mas, para além do sacrifício que todas as instituições públicas precisarão fazer para reduzir gastos correntes, os tribunais por todo o país enfrentarão outro grande desafio: o aumento da demanda por processos judiciais. Só em 2019, foram 55 milhões de novos casos nas 27 unidades da federação. Para o presidente da Associação Nacional dos Desembargadores (Andes), desembargador Marcelo Buhatem, a situação está chegando ao limite. Ele defende uma mudança de paradigma na sociedade com uma nova cultura de mediação de conflitos. O magistrado também é taxativo sobre a necessidade de reforma do Sistema Judiciário e garante que a Andes irá buscar no Congresso Nacional apoio para mudanças na legislação atual.

-Não há orçamento que possa segurar este excesso de processos. Se nada for feito, em dez anos vamos explodir.

Por que o Judiciário Brasileiro pesa tanto no orçamento do país e dos estados?

Desembargador Marcelo Buhatem – A Justiça tem a maior capilaridade entre os poderes brasileiros. Ela está diretamente em aproximadamente 4.300 municípios. E, como muitos juízes também acumulam a comarca vizinha, a Justiça está presente nos 5.700 municípios. Um poder com tamanha capilaridade, como, aliás, exige a Constituição Brasileira, não pode ter um orçamento barato. Fala-se muito que o papel do judiciário brasileiro tem sido enxugar o gelo. Pois eu digo que, se nada for feito, vai faltar o pano para enxugar o gelo. Enxugar gelo a gente vai enxugar a vida inteira. Mas se faltar o pano, o dinheiro, como vamos garantir o direito de todos à Justiça?

Como chegamos a este ponto? Faltou previsão?

Desembargador Marcelo Buhatem – Este problema está ligado ao excesso de judicialização que está havendo neste país. Segundo o ministro Luiz Fux (do STF), o Brasil tem a segunda maior litigiosidade do mundo. É como se todos os brasileiros tivessem pelo menos uma ação na justiça. Uma situação inimaginável. Se não houver mudança nesse sistema, em dez anos a gente explode. Mantida a regra atual, a Justiça não irá conseguir suportar, apesar de todo o esforço que vem sendo feito pelos tribunais para manter alta a produtividade e para reduzir o congestionamento de processos. Só para citar um exemplo, no Rio de Janeiro, do início da pandemia até agora, produzimos 36 milhões de movimentações processuais. Com as facilidades que existem hoje em razão da informatização, o advogado sequer sai do escritório dele para peticionar. Ele dá um clique e três minutos depois a petição aparece no gabinete do juiz. Estamos melhorando o acesso à Justiça; isto é positivo, mas não temos dinheiro para suportar toda esta demanda. Outro ponto é a gratuidade. No Brasil ela é uma festa. Está na hora de se pôr o dedo nesta ferida. Gratuidade deve ser dada apenas a quem precisa.

Mas como resolver isto?

Desembargador Marcelo Buhatem – Só tem uma forma de resolver: a mediação.Nós não podemos deixar todas as querelas brasileiras, todos os embates irem ao judiciário antes de, pelo menos, se tentar um canal de conciliação pré-processual. Temos que buscar a mediação. O Código de Defesa do Consumidor trouxe esta necessidade, o consumidor precisa procurar um 0800 (canais de atendimento ao consumidor) antes de entrar com uma ação na Justiça. Depois de tentar esta conciliação e não conseguir, aí sim, ele buscaria a Justiça. Temos que fazer como dogma, toda ação civil que haja reparação de dano, todo crime de ação penal privada, como, por exemplo, calúnia, antes de buscar a justiça, a pessoa deve procurar reparação junto ao seu algoz. Outro ponto importante é limitar o número de recursos cíveis nos tribunais. Não há porque todas as ações irem ao 2º Grau.

Mas qual seria o divisor de águas para quem teria ou não direito ao recurso? Presidente da ANDES defende que a gratuidade do acesso à Justiça deve serapenas para quem precisa

Desembargador Marcelo Buhatem – O custo de um processo judicial está entre R$ 3.000 e R$ 4.700, mas a maioria das ações cíveis que tramitam, em 60% dos casos, são processos que não chegam a R$ 1 mil o valor da indenização. Eu atuo em uma Câmara Cível, e esta semana julguei um processo de R$ 266, em que um consumidor reclamava a compra de uma batedeira com defeito. É razoável que um processo por uma demanda tão barata precise chegar ao órgão mais importante da justiça estadual, ao segundo grau? A ideia que eu dou é quem processos de até 40 salários mínimos, se ingressados na Justiça Comum, não caberia recursos aos tribunais. Seriam resolvidos em primeira e única instância, com direito a um recurso na mesma vara, em embargos infringentes. Esta regra não valeria para o Juizado Especial, onde continuaria cabendo recurso às turmas recursais. Isto estimularia as pessoas a buscarem os juizados especiais e reduziria em 50% o movimento na Justiça comum e agilizaria as ações em pelo menos um ano. Este princípio, de valor mínimo para a ação,já está previsto nas varas de Execução Fiscal, no artigo 35, da Lei de Execução Fiscal. Com base neste princípio, eu e mais dois colegas levamos esta proposta, a PLS 50, ao Congresso Nacional. Assim que se resolver a pandemia, vamos voltar ao Congresso para defender novamente esta mudança.

O ministro Gilmar Mendes defendeu a extinção de Tribunais do Trabalho com forma de diminuir os custos da Justiça. O que o senhor acha da proposta?

Desembargador Marcelo Buhatem — Esta proposta de fundir alguns tribunais do Trabalho nos estados criando, criando tribunais regionais é uma proposta que deve ser estudada com profundidade, estudos estatísticos e tem que passar pelo CNJ e pelas comissões. A Justiça do Trabalho é muito importante e concordo que deve ser reformulada. No governo Michel Temer houve o início da reformulação da Justiça do Trabalho, que já colheu muitos dividendos. Entre as mudanças, a possibilidade de o perdedor da ação pagar a sucumbência foi importante para desestimular as ações temerárias, as repetições de ações e os pedidos tresloucados de alguns advogados, que eram recorrentes na Justiça Trabalhista. Como esta mudança provocou uma diminuição de percentuais de novas ações, é razoável que se pense em fundir tribunais, criando tribunais regionais. Mas esta possibilidade deve ser vista como ponto de partida de uma discussão.

O ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União defende mudanças na gestão no Judiciário para reduzir gastos.

Desembargador Marcelo Buhatem — O ministro Bruno Dantas traz a questão da gestão. Nós temos que ter uma gestão profissional. Não é possível mais ter uma gestão calcada na antiguidade, ser o mais antigo não significa que tem competência administrativa para administrar um tribunal. A regra da antiguidade estava prevista no artigo 102 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional (LOMAN), de 1979, mas o STF há dois meses decidiu que este artigo é inconstitucional. Então, a partir de agora, os tribunais podem decidir não mais pelo mais antigo, e sim escolher, dentre seus membros, o mais afeto à administração. Foi um passo importante, mas o ministro Bruno Dantas defende que a administração seja dada a um administrador profissional, um CEO. Eu concordo em parte. Defendo que a administração possa ser entregue a um gestor, mas toda parte política, de decisões institucionais, esta deve continuar com o presidente do Tribunal.

Há quem defenda também a permanência de parte do Judiciário o sistema de home office, como forma de redução de custos e aumento da produtividade.

Desembargador Marcelo Buhatem — Eu ando batendo muito nisto. O melhor novo normal para a Justiça brasileira é o antigo normal. Pós-pandemia, com a população vacinada contra o coronavírus, eu quero, rogo e rezo para que o novo normal na Justiça brasileira seja o antigo normal, com relação ao atendimento presencial. A justiça é um poder e o poder tem que se fazer presente, altivo, eficaz e respeitado. Não é admissível que numa pequena comarca onde haja duas ou três varas uma de família e uma criminal, estejam presentes o prefeito, o presidente da câmara, o médico, o padre o pastor, a Polícia Militar, o delegado de Polícia, mas o juiz esteja em home office, trabalhando de sua casa, no Leblon. Isto não é possível. A figura do magistrado traz uma respeitabilidade natural ao poder. Nós temos que nos mostrar porque nós somos um dos pilares da democracia brasileira e do republicanismo. Não é possível ficar em casa vendo as pessoas pela tela do computador. Tem um colega meu que diz que daqui a 30 anos, a gente estará rindo de uma audiência presencial. Não é possível isto, a gente trabalha com divórcio, quem passou por um divórcio litigioso sabe como é difícil para as famílias. Como pode um juiz de família tratar uma questão social desta natureza pela tela do computador? O adolescente infrator acabou de ser apreendido. Está na lei,ele precisa ser apresentado ao MP imediatamente, vai apresentar pela tela? Está havendo um grande movimento, nesse sentido, de que após a pandemia, fique parecido com o que está. Eu sou absolutamente contra esta ideia.

Ao falar sobre quotas de sacrifício do Judiciário, o Ministro Gilmar Mendes, defendeu o fim dos dois períodos de férias? O que o senhor pensa a respeito?

Desembargador Marcelo Buhatem — Eu quase nunca usei minhas segundas férias. Assim como eu, a grande maioria dos magistrados usa o segundo período de férias para botar o gabinete em dia. Isto acontece porque quando se tira férias os processos deixam de ser distribuídos para o gabinete, o que permite que o juiz possa colocar em dia os processos que continuam chegando até a véspera do início das férias. Eu tenho u uma distribuição de 150 processos novos por mês. Então, para não acumular uso uma parte das férias para dar andamento a estes processos. Antes tínhamos o recesso de julho para fazer isto, mas há anos isto acabou. Talvez fosse uma solução, retornar com o recesso do judiciário. Assim não seriam necessários os dois meses de férias.

O presidente do STF, ministro Dias Toffolli defende uma quarentena de oito anos para que juízes e membros do Ministério Público possam se candidatar.

Desembargador Marcelo Buhatem — Este prazo é excessivo, desnecessário e desmedido. Os regimes do judiciário e do MP são parecidos. Já existe uma quarentena de três anos para o magistrado poder advogar no Tribunal que trabalhou. Mas quarentena de oito anos é para quem cometeu crime de improbidade. Não tem sentido um membro do MP ou do Judiciário cumprirem de quarentena o mesmo tempo da pena de improbidade. Além disto, diferente de outras carreiras ligadas à Justiça, os juízes sempre tiveram que se aposentar para concorrer a cargo eletivo. O que aconteceu em função desta regra? Estas instituições perderam muito espaço político. O MP e o Judiciário perderam a oportunidade de levar para a sociedade brasileira grandes projetos de lei, uma vez que, como estudiosos sobre a legislação,poderíamos dar uma grande contribuição à sociedade brasileira.