Academia.eduAcademia.edu
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS Programa de Pós Graduação em Comunicação Social “Agora é a vez do pixo”: cenas de dissenso e subjetivação política nas relações entre pixação e arte. Ana Karina de Carvalho Oliveira Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas 2015 Ana Karina de Carvalho Oliveira “Agora é a vez do pixo”: cenas de dissenso e subjetivação política nas relações entre pixação e arte. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Comunicação Social. Área de Concentração: Comunicação e Sociabilidade Contemporânea Linha de pesquisa: Processos Comunicativos e Práticas Sociais Orientadora: Profa. Dra. Ângela Cristina Salgueiro Marques Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais 2015 301.16 O48a 2015 Oliveira, Ana Karina de Carvalho “Agora é a vez do pixo” [manuscrito] : cenas de dissenso e subjetivação política nas relações entre pixação e arte. / Ana Karina de Carvalho Oliveira. - 2015. 184 f. Orientadora: Ângela Cristina Salgueiro Marques. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Inclui bibliografia 1.Comunicação – Teses. 2. Arte de rua - Teses. I. Marques, Ângela Cristina. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título. AGRADECIMENTOS Concluo essa etapa com muito mais perguntas que quando comecei, o que considero o melhor resultado possível para um longo, difícil, mas, ao mesmo tempo, prazeroso processo de aprendizado, que não chega a um final, mas aponta para novos começos. A única certeza que encontro, neste momento, é a de que eu jamais teria conseguido alcançar essa conquista sem a ajuda e o apoio de muitas pessoas queridas, às quais eu espero ter mostrado sempre minha gratidão, que expresso aqui. Ao meu amor Alexandre, que começou essa jornada como meu namorado e termina como meu marido. Mormeu, muito obrigada pelo apoio, pelo carinho, pela parceria, por me fazer querer ser sempre melhor, e, mais do que tudo, por estar sempre comigo. Amo muito você! Aos meus pais, Helena e Ivan, por terem, desde muito cedo, me ensinado a importância e o valor da educação, e por terem respeitado e apoiado minhas escolhas. Aos meus irmãos e cunhados por torcerem sempre por mim. Às minhas sobrinhas, pedacinhos de amor, que tornam mais bonitos até os dias mais difíceis. E aos familiares e amigos, que entenderam minhas ausências. Agora eu posso, gente, pode chamar! À querida Ângela Marques, por ser mais que uma orientadora. Obrigada por sempre respeitar meu trabalho e incentivar minha autonomia, com uma paciência de Jó em relação à minha insegurança, e por me ajudar a transformar meu projeto em uma pesquisa, sempre com um sorriso incentivador. Você é uma pessoa rara que espero ter sempre por perto. Aos “Xs mais do PPGCOM”: Clara, Laura, Raquel e Van, dividir esses dois anos com vocês fez tudo se tornar mais leve e alegre. Boa sorte a vocês e aos demais colegas que também chegam ao fim dessa etapa. A todos do PPGCOM – coordenação, secretaria, professores – pela oportunidade, pelo aprendizado e pelo apoio. Agradeço, especialmente, à Vera França e, novamente, à Ângela Marques, por me receberem como monitora e me darem a oportunidade de aprender muito e vivenciar o outro lado da sala de aula, onde espero estar em breve. A Regina Helena, pelos importantes apontamentos feitos na banca de qualificação. A Laura Guimarães, pelas contribuições durante a fase de projeto e por aceitar compor a banca da minha defesa. A Fernando Gonçalves, da UERJ, pelas preciosas contribuições na qualificação e pelo retorno para a banca de defesa. A Djan Ivson, pela entrevista concedida com muita disponibilidade e gentileza e por me dar a oportunidade de ver os eventos que constituem meu objeto pelos olhos de alguém que protagonizou cada um deles. Isso fez toda a diferença, muito obrigada. E agradeço, especialmente, a Deus, por ter me considerado merecedora dessa oportunidade e por ter me dado força para seguir e chegar até aqui. A todas e todos, o meu muito obrigada! RESUMO Este estudo busca analisar a abertura, pelos pixadores de São Paulo, de espaços de relação com o mundo da arte, produzindo cenas de dissenso e processos de subjetivação política que guardam potências para a reconfiguração dos nomes, lugares e funções que lhe são comumente destinados. O trabalho foi desenvolvido, entre outros autores e conceitos, a partir do pensamento político de Jacques Rancière, para quem a política é o questionamento dos lugares conferidos hierarquicamente por uma ordem social que impõe um modo de partilha do sensível: a ordem policial. A análise é feita a partir de seis eventos ocorridos entre 2008 e 2012 – três invasões e três convites – que entrelaçaram de forma tensa e conflituosa os universos da pixação e da arte, embaralhando as relações e expectativas até então tidas como dadas para cada um deles. A partir de tal contexto e fundamentação, o objetivo da pesquisa é analisar a criação de cenas de dissenso e os processos de subjetivação política construídos a partir da desidentificação dos pixadores com os nomes a eles atribuídos por instâncias institucionais, jurídicas e artísticas, evidenciando uma polêmica e conflituosa inserção no campo da arte. Para tanto, a construção da análise se dá no sentido de reconstituir as cenas de cada evento a partir dos elementos configuradores de uma cena de dissenso, destacando os atores envolvidos, sua nomeação, a distribuição de lugares, as ordenações das funções e relações, a presença da pixação, a atuação dos pixadores e os desdobramentos. A partir de então, cada evento é analisado em três categorias: as tensões entre consenso e dissenso; as formas de inscrição e visibilidade; e a subjetivação política. São observados os modos como os pixadores nomeiam e encenam um dano, se desidentificam dos nomes e lugares que lhes são dados e demonstram pela argumentação sua experiência e situação, além das formas em que contestam ou negociam com as cenas estabelecidas. Ao final, os eventos são analisados em suas interseções e entrelaçamentos como um processo complexo, a fim de perceber, a partir da trajetória completa, se as formas de visibilidade e tratamento da pixação são transformadas. Os resultados apontam que, embora haja aspectos que demonstrem algumas mudanças na forma de relação, apreensão e apresentação da pixação, elas são muito específicas daquele contexto de aproximação com o campo da arte, não se estendo para outras esferas, especialmente a rua, ambiente comum e cotidiano da pixação. Palavras-chave: pixação; cenas de dissenso; subjetivação política; potência política; visibilidade; reconfiguração do comum. ABSTRACT This study seeks to analyze the opening, by the pixadores of São Paulo, of spaces of relation with the art world, producing scenes of dissensus and processes of political subjectification that keeps a potential for the reconfigurations of the names, places and functions that are commonly given to them. The work was developed, among other authors, from the political though of Jacques Rancière, for whom the politics is the questioning about the places given by the hierarchy of a social order that imposes a mode of partition of the sensible: the police order. The analysis is made from six events occurred between 2008 and 2012 – three invasions and three invitations – that interlaced in a tense and conflicted way the universes of pixação and art, mixing up the relations and the expectations given to each other until so. From that context and grounding, the aim of the research is to analyze the creation of scenes of dissensus and the processes of political subjectification built from the disidentification of the pixadores with the names assigned to them by the institutional, juridical and artistic levels, evidencing a polemical and conflictual insertion in the field of art. Therefore, the construction of the analysis is given in order to reconstitute the scenes of each event from the elements that configure a scene of dissensus, emphasizing the actors involved, their designation, the distribution of places, the ordinations of functions and relations, the presence of the pixação, the acting of the pixadores and the consequences. From then, each event is analyzed in three categories: the tensions between consensus and dissensus; the forms of entry and visibility; and the political subjectification. The modes as the pixadores name and enact a wrong, disidentify themselves from the names and places that are given to them e demonstrate by argument their experience and situation, beyond the ways in which they contest or negotiate with the established scenes. At the end, the events are analyzed in their intersections and entanglements as a complex process, in order to perceive, from the complete trajectory, if the forms of visibility and treatment of the pixação are transformed. The results indicate that, although there aspects that demonstrate some changes in the forms of relation, seizure and presentation of the pixação, they are very specific of that context of approach with the field of art, not extending to other spheres, specially the street, the common and everyday environment of the pixação. Keywords: pixação; scenes of dissensus; political subjectification; political potential; visibility, reconfiguration of the common. LISTA DE IMAGENS Imagem 1: Cartaz produzido durante as manifestações de maio de 1968, em Paris (A beleza está nas ruas). ....................................................................................................................... 18 Imagem 2: pichações de contestação à ditadura militar brasileira. ....................................... 19 Imagem 3: Metrô em Nova York, quando do surgimento do grafite, no início da década de 1970. .................................................................................................................................... 22 Imagem 4: Alex Vallauri produzindo seu grafite a partir de uma de suas matrizes. .............. 28 Imagem 5: a famosa botinha de Vallauri, primeiro desenho espalhado pela cidade pelo artista. ............................................................................................................................................ 28 Imagem 6: Grafite de Marcos Vilaça em homenagem a Alex Vallauri. ................................ 30 Imagem 7: “Celacanto provoca maremoto”: pichação anterior à pixação. ............................ 33 Imagem 8: apropriações das inscrições “Celacanto provoca maremoto” e “Lerfá Mú” pela publicidade, na década de 1980. ........................................................................................... 33 Imagem 9: panfleto de convocação para a invasão ao Centro Universitário Belas Artes. ..... 79 Imagens 10, 11 e 12: invasão ao Centro Universitário Belas Artes. ..................................... 80 Imagem 13: panfleto de convocação para a invasão à Galeria Choque Cultural. .................. 91 Imagens 14, 15 e 16: invasão à Galeria Choque Cultural. .................................................... 92 Imagem 17: panfleto de convocação para a invasão à 28ª Bienal de São Paulo. ................... 99 Imagem 18, 19 e 20: invasão à 28ª Bienal de São Paulo. ................................................... 101 Imagens 21, 22 e 23: participação de Djan Ivson no mostra Né dans la rue - Grafitti. ....... 112 Imagem 24: Djan Ivson exibe coleção de “folhinhas”. ....................................................... 123 Imagem 25: obra de Nuno Ramos é pixada na 29ª Bienal de São Paulo. ............................ 127 Imagem 26: o conflito entre Djan Ivson e Artur Zmijewski. .............................................. 140 Imagem 27: Pixadores escalam e pixam as paredes da igreja alemã. .................................. 141 Imagens 28, 29 e 30: assinaturas “Cripta” pixadas por Djan Ivson na rua (no momento de produção); na fachada da Fundação Cartier, em Paris; e dentro da igreja, na 7ª Bienal de Berlim, respectivamente. .................................................................................................... 158 SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO........................................................................................................... 10 2. CIDADE INTERFERIDA: ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DAS INTERVENÇÕES URBANAS .......................................................................................... 16 2.1. Grafite: surge uma nova forma de se expressar na cidade................................. 20 2.2. Grafite no Brasil .................................................................................................. 26 2.3. Celacanto Provoca Maremoto: origem e desenvolvimento da pixação brasileira .......... .......................................................................................................................32 3. CAPTURAS E RESISTÊNCIAS: RELAÇÕES ENTRE GRAFITE, PIXAÇÃO E ARTE .................................................................................................................................. 42 3.1. Formas de dominar e modos de resistir .............................................................. 43 3.2. Na rua, no museu, no mercado: a estreita relação entre o grafite e o sistema das artes... .............................................................................................................................. 46 3.3. Confrontação, assimilação, subversão: a pixação abre espaço no mundo da arte..... ............................................................................................................................. 49 3.4. 4. A pixação como imagem e processo políticos e de resistência ............................ 54 A POÉTICA DA POLÍTICA: CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA ...................... 62 4.1. Dissenso, literaridade e subjetivação: conceitos-chave ....................................... 62 4.2. “A política não aparece do nada”: entre a irrupção e o processo ...................... 68 4.3. Metodologia .......................................................................................................... 72 4.3.1. Corpus ............................................................................................................ 72 4.3.2. Procedimentos de análise ............................................................................... 73 4.3.3. Categorias analíticas ...................................................................................... 75 5. A POLÍTICA COMO IRRUPÇÃO: RECONSTITUIÇÃO E ANÁLISE DOS EVENTOS .......................................................................................................................... 77 5.1. Reconstituição da invasão ao Centro Universitário Belas Artes ........................ 77 5.1.1. Tensões entre consenso e dissenso ................................................................. 84 5.1.2. Formas de inscrição e visibilidade ................................................................. 86 5.1.3. Subjetivação política ...................................................................................... 88 5.2. Reconstituição da invasão à Galeria Choque Cultural ....................................... 90 5.2.1. Tensões entre consenso e dissenso ................................................................. 94 5.2.2. Formas de inscrição e visibilidade ................................................................. 95 5.2.3. Subjetivação política ...................................................................................... 97 5.3. Reconstituição da invasão à 28ª Bienal de São Paulo ......................................... 98 5.3.1. Tensões entre consenso e dissenso ............................................................... 104 5.3.2. Formas de inscrição e visibilidade ............................................................... 106 5.3.3. Subjetivação política .................................................................................... 108 5.4. Reconstituição da participação na mostra Né dans la rue - Grafitti ................. 109 5.4.1. Tensões entre consenso e dissenso ............................................................... 114 5.4.2. Formas de inscrição e visibilidade ............................................................... 115 5.4.3. Subjetivação política .................................................................................... 117 5.5. Reconstituição da participação na 29ª Bienal de São Paulo ............................. 119 5.5.1. Tensões entre consenso e dissenso ............................................................... 131 5.5.2. Formas de inscrição e visibilidade ............................................................... 133 5.5.3. Subjetivação política .................................................................................... 135 5.6. Reconstituição da participação na 7ª Bienal de Berlim .................................... 136 5.6.1. Tensões entre consenso e dissenso ............................................................... 144 5.6.2. Formas de inscrição e visibilidade ............................................................... 145 5.6.3. Subjetivação política .................................................................................... 147 6. A POLÍTICA COMO UM PROCESSO ESTÉTICO-COMUNICATIVO: UMA ANÁLISE CONCLUSIVA .............................................................................................. 149 6.1. “É tudo nosso”: as invasões de 2008 .................................................................. 150 6.2. Convites, capturas e resistências: “agora é a vez do pixo”? ............................. 156 6.3. Considerações finais ........................................................................................... 165 REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 168 APÊNDICE: TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA COM DJAN IVSON .................... 176 1. INTRODUÇÃO Apropriar-se de espaços públicos e privados sem consentimento prévio configura, ao mesmo tempo, um ato criminoso e um dos fundamentos das intervenções gráficas urbanas. Essa pequena observação abre todo um cenário perpassado pelas tensões entre o permitido e o proibido, o percebido e o ignorado, o desejado e o descartado, o institucional e o marginal. Essas intervenções estão presentes de forma tão intensa e massiva nas cidades que podem ser vistas como parte do contexto urbano contemporâneo. Olhar para elas é, então, olhar para formas de expressão, interação e representação que dizem de indivíduos, comunidades e contextos. Para compreendê-los, entretanto, é preciso descortinar os conflitos e tensões que perpassam esse cenário. Para isso, se faz necessário observar intervenções e interventores a partir das relações tensas, conflituosas e controversas que estabelecem com a cidade, as instituições, o mercado, a mídia e o público. E é a isso que este trabalho se propõe, a partir do particular e conflituoso processo de aproximação entre os universos da pixação 1 e da arte. A pixação é eleita como objeto por ocupar uma posição à margem da margem: entre as diversas formas de intervenção urbana – grafite, sticker, estêncil, etc. – ela é, possivelmente, a mais condenada. Um dos motivos parece ser a ilegibilidade dos traços para a maioria das pessoas que não compartilham daquele código de escrita; outro, conforme Lassala (2010), associa-se ao fato de que pixadores, ao contrário de autores de outras formas de intervenção, não têm um histórico de envolvimento em ações comerciais e educativas, públicas ou privadas. Se, por um lado, o envolvimento com projetos desse tipo pode aumentar a visibilidade das práticas, por outro, pode significar sua conformação a determinados padrões e expectativas. Dessa forma, pixadores continuam a ser vistos como vândalos criminosos, enquanto adeptos de outras formas de intervenção (especialmente o grafite) ganham status de artistas. Contudo, a partir de 2008, o cenário da pixação tem se modificado na medida em que uma série de eventos, por seu porte e visibilidade, começou a despertar a atenção da mídia, do público, do mercado e até do poder público. São os casos das invasões coletivas ao Centro Universitário Belas Artes, à Galeria Choque Cultural, e à 28ª Bienal de Arte, todas em São Paulo, em 2008; da participação do pixador Djan Ivson na mostra Né dans la rue – Grafitti (Nascido nas ruas: Grafite), realizada pela Fundação Cartier, em Paris; da participação de 1 Neste trabalho, fez-se a opção pelo emprego da grafia da palavra “pixação” e suas derivações com “x”, como é adotada por seus praticantes. Essa grafia particular será tratada ao longo do texto. 10 alguns dos pixadores de 2008 na 29ª Bienal de Arte de São Paulo, em 2010; e na 7ª Bienal de Berlim, em 2012. Essa sequência de inserções da pixação e dos pixadores no âmbito artístico, permeada por tensões entre invasões, propostas, imposições e transgressões sobre modos de participação, irrompe quando Rafael Augustaitiz, um pixador e formando do curso de Artes Visuais do Centro Universitário Belas Artes, decide que a obra que deveria apresentar como seu trabalho de conclusão de curso iria questionar o conceito e os limites da arte, e que o faria pela confrontação daquele universo com o universo da pixação. É a partir daí que Augustaitiz convoca os pixadores pela primeira vez para uma intervenção coletiva, tendo como resultado sua reprovação no curso e sua expulsão da faculdade. No entanto, o questionamento e as ações de enfrentamento às instituições de arte permaneceram em mais duas invasões, também promovidas por Augustaitiz, no mesmo ano, e todas elas foram tratadas como casos de polícia, sendo apreendidas e apresentadas, principalmente, como atos injustificados de vandalismo. Já a partir de 2009, esse cenário da relação entre pixação e arte começa a mostrar algumas mudanças a partir do convite feito ao pixador Djan Ivson, que havia participado das invasões no ano anterior, para participar de uma mostra promovida pela Fundação Cartier, em Paris, sobre a história do grafite. Nesse evento, Ivson recebeu cachê e foi aplaudido ao realizar seu pixo no prédio da Fundação, contrariando as relações previstas para aquela forma de expressão. Em 2010, a curadoria da 29ª Bienal de São Paulo – evento que havia sido o mais simbólico alvo das invasões, em sua edição anterior – aceitou a proposta que teria partido dos próprios pixadores para a criação conjunta de uma forma de representação da pixação no evento. Apesar do discurso da curadoria tentar apresentar um cenário de total entendimento entre as partes, durante o evento, duas obras de outros artistas foram pixadas, uma delas por Djan Ivson, que disse querer mostrar que os pixadores permaneciam autônomos mesmo quando presentes como convidados. Em 2012, a curadoria da 7ª Bienal de Berlim, que havia convidado os pixadores a participarem do evento desde o ano anterior, impôs que a participação se desse pelo oferecimento de um workshop de pixação, que foi recusado pelos convidados. Com o conflito entre a recusa dos pixadores e a exigência dos curadores, a demandada “demonstração prática” da pixação brasileira foi dada de um modo completamente inesperado e indesejado, com os pixadores escalando as paredes da igreja que 11 servia como local para o pretendido workshop e pixando as paredes da mesma, o que não era permitido. O processo gerado por essa sequência de eventos aponta mudanças, nas instituições de arte e na imprensa, na forma de apresentação dos pixadores e da própria pixação, e, em alguns momentos, os pixadores surgem como interlocutores nas cenas que ajudaram a criar. A análise proposta aqui pretende, assim, observar de que forma, em que condições e em que medida os lugares dados aos pixadores pela ordem consensual da arte institucional são desestabilizados por essas ações. A relevância da pesquisa se revela, então, na busca por esse olhar amplo para a pixação enquanto forma de expressão e representação que guarda uma potência de sentido e ação para além de sua materialidade (e também nela). Uma potência política, que pode se realizar na transformação das formas de participação na vida social, nos modos de ver e ser visto, nas possibilidades de falar e ser ouvido, na configuração de um mundo comum; ou não se realizar, uma vez que o status dos pixadores e de suas formas de intervenção nem sempre resultam em maior participação, tomada de palavra ou reconhecimento como parte de um comum. Dessa forma, a política é aqui tomada em sua dimensão comunicacional, entendendo que ela é construída a partir da interação entre os sujeitos e suas possibilidades enunciativas e expressivas na construção de nomes, lugares e funções sociais que não coincidem ou extrapolam aqueles que são conferidos por uma ordem vigente. Tal compreensão da política está ancorada no pensamento de Jacques Rancière (1996; 2009a; 2009b; 2010; 2011), e seus conceitos de partilha do sensível, cenas de dissenso, polícia e política, e literaridade iluminam a compreensão de cada evento analisado e de sua importância em um processo contínuo e conflituoso de relações entre a pixação e a arte. O modo como a pixação se configura como ação e como cena na qual processos de subjetivação política ocorrem remetem aos estudos do próprio Rancière, mas também às abordagens de Etienne Tassin e Foucault sobre o sujeito e o poder, traduzindo a subjetivação como processo de produção de uma disjuntura, de uma desidentificação, de uma encenação criativa capaz de revelar a natureza poética da política. No processo de subjetivação política, os indivíduos “descobrem-se, ao modo da transgressão, como seres falantes, dotados de uma palavra que não exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligência.” (RANCIÈRE, 1996, p.38). 12 O objetivo da pesquisa é, assim, analisar a criação de cenas de dissenso e os processos de subjetivação política construídos a partir da desidentificação dos pixadores com a parte conferida à pixação pelo campo da arte e de sua polêmica e conflituosa inserção nesse âmbito. O percurso proposto para responder a tal objetivo é construído da seguinte forma: no Capítulo 2, é feita uma retrospectiva da pixação e do grafite – intervenção afim e que está em constante interação com a pixação, seja por meio dos praticantes que transitam entre as duas expressões, ou das constantes tentativas de distinção formal e legal entre as duas –, apontando para o início e desenvolvimento das expressões no mundo e, particularmente, no Brasil. Autores como Baudrillard (1979), Franco (2009), Gitahy (2012), Knauss (2001), Lassala (2010) e Pereira (2005) auxiliam a reconstruir essa trajetória, enquanto Harvey (2013) e Certeau (2013) ajudam a refletir sobre a relação dessas formas de intervenção e a própria constituição das cidades contemporâneas. No Capítulo 3, é feita uma articulação teórica sobre formas de resistência construídas pelos sujeitos dentro do próprio campo de dominação, e dos esforços de cooptação dessas resistências para o restabelecimento da ordem. Além dos conceitos de polícia e política de Rancière, outros autores ajudam a observar essas diferentes formas de partilha do comum, como Michel de Certeau (1998) e os conceitos de táticas de resistência desenvolvidas a partir das estratégias de poder; Georges Didi-Huberman (2011) e a metáfora das fracas e intermitentes luzes dos vaga-lumes como resistências às grandes luzes dos projetores do poder; e James C. Scott (1990) e a potência de resistência encontrada nas transcrições ocultas dos subordinados desenvolvidas no âmbito da transcrição pública dos dominantes. A partir daí, são observadas como se dão as relações do grafite e da pixação com o mundo da arte e com o mercado, realizando a apresentação dos eventos acima citados e, a partir dos regimes da arte classificados por Rancière (2010; 2011) e das considerações de Mouffe (2007) sobre a potência contra-hegemônica da arte, observando as possibilidades para a configuração da pixação como uma imagem política. No Capítulo 4, é apresentada a construção metodológica para a análise proposta. Primeiro, é realizada uma abordagem mais detida e cuidadosa dos três conceitos-chave para a análise: cenas de dissenso, subjetivação política, e literaridade, tratados principalmente a partir de Rancière, mas sempre recorrendo a outros autores que ajudam a compreender e tensionar sua abordagem. Então, a partir das críticas feitas a Rancière sobre um privilégio da compreensão da política como momento de irrupção, dificultando o entendimento de como 13 ela evoluiria para um processo contínuo e de mudanças efetivas (HALLWARD, 2009; TAMBAKAKI, 2009), a política é apresentada em suas dimensões pontual e processual, que, para Rancière (2009b), são de maio de 2014. Todo o material foi classificado entre os elementos configuradores de uma cena de dissenso, inspiradas em um quadro criado por Marques e Mafra (2013) para a observação de complementares, apontando para a importância da consideração dos dois momentos, sem deslegitimar a potência política da irrupção perturbadora. Ao final, é apresentada a metodologia, construída a partir dos conceitos de “cena de dissenso”, “literaridade” e “subjetivação política”, com o objetivo de analisar que tipo de ordem e partilha é comumente efetuada naqueles espaços oficiais da arte, e como ela é alterada pela incursão dos pixadores, com foco nas tensões entre tentativas de captura e esforços de resistência. O corpus da pesquisa é composto pelos seis eventos apresentados, abordados a partir de dois grupos de materiais: as matérias publicadas sobre os mesmos no site do jornal Folha de S. Paulo, entre 13 de agosto de 2008 e 15 de junho de 2012; e entrevistas concedidas pelo pixador Djan Ivson (às vezes acompanhado por outros pixadores) aos programas Altas Horas (Rede Globo, 2009), Palavra Ética (TV Comunitária de Belo Horizonte, 2012), Desculpe a Nossa Falha (PosTV, 2012); aos sites Catraca Livre, em 2014, e da revista Caros Amigos, em 2012; e à pesquisadora, em 16 de maio de 2014. Tal material foi organizado a partir de seis categorias desenvolvidas para a observação de cenas de dissenso em fenômenos empíricos. São elas: cena consensual prévia; modos de aparência dos atores; enunciação e dramatização do dano; contexto da argumentação; interações; e desdobramentos imediatos. A partir dessa classificação, foi feita a reconstituição linear de cada evento mapeando e analisando os atores envolvidos, sua nomeação, a distribuição de lugares, as ordenações das funções e relações, a presença da pixação, a atuação dos pixadores e os desdobramentos. Com a cena de cada evento reconstituída, eles foram analisados individualmente, a partir de três categorias análiticas: tensões entre consenso e dissenso; formas de inscrição e visibilidade; e subjetivação política. Posteriormente, os eventos foram analisados enquanto um processo mais amplo e articulado de inscrição da pixação e dos pixadores no campo da arte. O Capítulo 5 apresenta, então, a reconstituição e análise individual dos eventos, enquanto o Capítulo 6 é dedicado à análise geral, que já abrange as conclusões do trabalho, que apontaram que, ainda que a pixação tenha alcançado novos modos de visibilidade na imprensa e dentro do circuito da arte, isso não se traduz, necessariamente, em um 14 reconhecimento dos pixadores enquanto interlocutores, ou seja, enquanto sujeitos capazes de se organizarem, se nomearem e argumentarem – por meio de seu discurso e de suas ações – sobre seu mundo e sua realidade, de forma autônoma e emancipada. Espera-se, assim, que o percurso de estudo construído ao longo dessa pesquisa tenha conseguido se fazer suficientemente consistente para abarcar de forma responsável essa parte específica da complexa teia de relações e possibilidades acionada quando se trata de um objeto rico como a pixação. 15 2. CIDADE INTERFERIDA: ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DAS INTERVENÇÕES URBANAS Percorrer a cidade: atraso ao chegar, pressa ao sair, trânsito congestionado, transporte público lotado, passos rápidos, medo da violência. O cotidiano da vida urbana faz com que passar pela cidade não signifique, necessariamente, ver a cidade. De ônibus, de carro, de moto, ou a pé, vê-se, muitas vezes, apenas aquilo que está ao alcance dos olhos. E, ao se acostumar à paisagem de todos os dias, o olhar pode acabar por criar certa insensibilidade aos detalhes e às sutilezas presentes nas ruas. A configuração do espaço urbano pode contribuir para tal apatia, com sua multiplicidade de estímulos visuais e sonoros. “Estou ficando cego de tanto enxergar. Estou ficando surdo de tanto escutar”2. Somos convocados por tantas vias diferentes e de tantas diversas formas que a percepção, inundada, pode tornar-se indiferente. Junto com essa indiferença sensível, pode caminhar, ainda, um embaralhado senso de pertencimento à cidade. A rua, sendo pública, pertence a quem? A todos, a ninguém, ao poder público? Dessa dúvida, seja ela consciente ou inconsciente, acabam por surgir diferentes modos de interação com esse espaço: para alguns, uma via de passagem; para outros, espaço de posse e para uso de quem nele circula, propício à invenção de inúmeras formas de intervenção e interação com o lugar e as pessoas. Essas atuações criativas podem assumir formatos diversos, como grafismos, instalações artísticas, eventos, ocupações, performances do corpo, projeções midiáticas, entre tantas outras. Aqui, serão destacadas as intervenções gráficas não-comerciais encontradas no espaço urbano, especificamente a pixação e o grafite. Grafites e pixações, assim como stickers, lambe-lambes, estênceis, bombs e grapixos, entre outros; portando mensagens, desenhos, assinaturas; de caráter poético, panfletário ou irreverente, transformam muros, portões e mobiliário urbano em meios de comunicação que servem à reivindicação de espaços para a expressão das mais diversas causas, crenças e afetividades. Dessa forma, essas intervenções gráficas se apropriam dos espaços urbanos e criam ali espaços marginais de trocas simbólicas, transformando os lugares que comumente servem à circulação e ao fluxo em “espaços públicos de sociabilidade” (FONSECA e SILVA, 2005, p.8). Estas expressões coexistem e resistem ao excesso da cidade. Dialogam com as formas estabelecidas e tiram sua força destes confrontos. São formas 2 Trecho da música “Aa Uu”, de Sérgio Brito e Marcelo Fromer, dos Titãs. 16 comunicativas que aparecem e desaparecem na cidade, que expressam opiniões e marcações de seus habitantes e que processam uma apropriação do espaço urbano. São processos que não estão apenas à margem das formas institucionalizadas de comunicação, mas também à margem da cidade, isto é, dos processos de decisão da vida da cidade. Eles abrem uma brecha no tecido urbano para a expressão de posicionamentos que não tem espaço legitimado para ocorrer. (FONSECA e SILVA, 2005, p. 7) De acordo com Gonçalves (2011; 2012), nas diversas configurações que assumem, essas intervenções sensibilizam o olhar para a cidade e para seus usos, guardando aí uma potência de transformação das relações e interações com seus espaços a partir dos modos em que elas nos atravessam. Para o autor, certa precariedade que parece caracterizar essas práticas – e que pode ser percebida nas formas, nos materiais, na durabilidade, etc. – não aparece apenas como contingência, mas como uma característica absorvida e assumida em seu fazer, tornando-se uma via para uma maior fusão com a vida e o cotidiano (GONÇALVES, 2011). Na literatura sobre o assunto, particularmente naquela dedicada ao grafite e/ou à pixação, vários autores apontam para o Maio de 1968, em Paris, como o marco do surgimento (ou da consolidação) desse modo de intervenção na cidade (BAUDRILLARD, 1979; FRANCO, 2009; GITAHY, 2012). Naquele momento, os jovens estudantes parisienses registravam nos muros as reivindicações e protestos que expressavam em suas manifestações, chamando o povo à luta com seus cartazes e pichações 3. Knauss (2001), contudo, apresenta uma referência anterior, contando que, em 1967, um jovem foi detido na cidade de Brighton, na Inglaterra, após realizar uma performance artística em que recitava um poema e pintava um colorido mural “de caráter hedonista” (KNAUSS, 2001, p.334), em que retratava casais cercados por flores. Segundo o autor, esse evento teria inspirado vários outros, que culminariam em uma tendência da pintura mural na Inglaterra, tendo sido utilizada em toda a Grã-Bretanha como ferramenta de organização e fortalecimento comunitários. Na mesma época, nos Estados Unidos, a produção de murais também era usada como forma de representar e fortalecer comunidades em busca de direitos civis, como os negros (com o movimento Black Power) e os latinos, que marcavam nas ruas algumas representações de suas lutas por dignidade, respeito e orgulho (KNAUSS, 2001). 3 O termo “pixação”, com x, será usado sempre que se referir à pixação brasileira contemporânea, que corresponde a alguns critérios, como será visto ao longo deste trabalho. Inscrições em spray que não correspondam a tais critérios serão identificadas como “pichação”, com ch. O termo também poderá aparecer com a grafia com ch em citações de autores e matérias que assim o utilizam. 17 O autor também aponta o Maio de 1968 como um marco na história das intervenções que antecederam ao grafite. Knauss (2001) destaca a importância do oferecimento, naquele contexto, de oficinas abertas de serigrafia para a criação e disseminação dos cartazes que reforçavam os slogans das manifestações. De acordo com o autor, mesmo após a febre dos cartazes, a vontade de inscrever na cidade permaneceu, o que resultou na pintura de frases emblemáticas nos muros. Depois, começaram a ser produzidos moldes vazados que, cobertos com tinta spray, permitiam a reprodução de figuras e frases diversas pela cidade. Enquanto isso, no Brasil, os gritos repreendidos nas ruas também ecoavam nos muros, por meio das inscrições que contestavam a ditadura militar. Para Knauss (2001), é difícil determinar o nível de influência dessas formas de expressão urbana para a criação do grafite. Contudo, não é possível ignorá-las enquanto partes importantes da história da intervenção gráfica urbana como um todo. Imagem 1: Cartaz produzido durante as manifestações de maio de 1968, em Paris (A beleza está nas ruas).4 4 Fonte: Blog Clique 2008. Disponível em: <http://clique2008.blogspot.com.br/2014/04/by.html>. Acesso em 28/04/2014. 18 Imagem 2: pichações de contestação à ditadura militar brasileira.5 Celso Gitahy (2012) e Gustavo Lassala (2010) vão ainda mais longe e apresentam essas formas de intervenções gráficas urbanas como uma evolução natural da necessidade humana de representar graficamente a vida, já que a humanidade sempre fez uso dos recursos que possuía para registrar e relatar suas experiências. Como exemplos, os autores resgatam as pinturas realizadas pelos homens pré-históricos e pelas civilizações antigas. Se o registro das experiências vividas, através dos recursos e técnicas disponíveis em cada época, é reflexo de uma necessidade humana, é possível perceber os formatos, técnicas e conteúdos das intervenções gráficas urbanas contemporâneas como reflexos do ritmo, dos anseios e dos sintomas da vida nas grandes cidades: agilidade, efemeridade, adrenalina, vaidade, busca por espaço, atenção e reconhecimento. Contudo, é interessante observar que, ao mesmo tempo em precisam ser feitas de forma ágil, porque legalmente (esteticamente, comportamentalmente - questões que serão tratadas com atenção mais adiante) transgressoras, essas intervenções proporcionam um deslocamento tanto espacial quanto temporal: olhar para outros lugares (ou para os mesmos lugares de outro modo), deter-se um pouco mais diante das escrituras que se espalham sobre a superfície urbana. Nesse paradoxo, a rapidez da produção, que corresponde ao ritmo urbano acelerado e aos entraves colocados à prática, é capaz de, ainda que efêmera e pontualmente, gerar uma desaceleração dentro do caos. Gonçalves e 5 Fonte: Blog Ousar Lutar. Disponível em: <http://ousarlutar.blogspot.com.br/2011/05/dep-giannazi-propoe-queo-entulho.html>. Acesso em 28/04/2014. 19 Estrella (2007), concordam com essa noção, e afirmam que a arte levada aos espaços urbanos abre um intervalo no tempo comum daqueles lugares: Em lugares onde se corre contra o tempo [...], de repente gera-se um contratempo, um retardo. Inocula-se um tempo lento, espécie de sabotagem no tempo acelerado da grande cidade. O tempo imbui-se aí de uma outra qualidade e os espaços passam a ser vividos de forma mais intensiva, por causa mesmo dessa variação temporal, desse break. É dessa inoculação do tempo lento, que faz-nos estranhar e rever nossos modos de circulação pela cidade [...]. (GONÇALVES E ESTRELLA, 2007, p.102) No entanto, esse deslocamento não gera, como já pôde ser observado em pesquisa anterior6, uma recepção necessariamente positiva. Frequentemente, a reação frente a uma intervenção no espaço urbano é o desagrado, e tal julgamento pode estar ligado à forma, ao conteúdo, ao local ocupado pela intervenção, ao contexto, entre outros critérios mais ou menos rígidos, conscientes ou compartilhados. A história do grafite, desde o seu surgimento até os dias de hoje, oferece um bom exemplo de como esses critérios atuam na aceitação ou condenação das práticas de intervenção gráfica urbana. Além disso, sua inserção aqui é importante para que se possa observar como a distinção especificamente brasileira entre grafite e pixação configura todo um panorama que diz quem pode fazer o que, onde e em que momentos. 2.1. Grafite: surge uma nova forma de se expressar na cidade Ainda que as inscrições surgidas durante as insurgências populares da segunda metade da década de 1960 tenham grande importância na história das intervenções gráficas urbanas, é na Nova York do início dos anos 1970 que surgem as primeiras inscrições designadas especificamente como grafites (BAUDRILLARD, 1979; FRANCO, 2009; KNAUSS, 2001). 6 A pesquisa mapeou e analisou os stickers encontrados na Rua da Bahia, no Centro de Belo Horizonte, e entrevistou pessoas na mesma rua a fim de verificar o quanto, em seu trajeto diário por aquele local, elas destinavam sua atenção àquelas intervenções, como as percebiam, se os temas ali abordados lhes afetavam de alguma forma, e se estes eram levados por elas à discussão em outros ambientes (em casa, no trabalho, etc.). O objetivo era colher algumas impressões e apresentar um panorama da presença dos stickers na cidade de Belo Horizonte, entendendo-os como uma via de participação política na vida pública, e não o de quantificar essas posições. Contudo, foi possível observar que uma expressiva maioria das pessoas entrevistadas se mostrou contra a presença dos stickers, considerando-os como um uso inadequado do espaço público, feito por pessoas mal-educadas, e gerando poluição visual na cidade. (OLIVEIRA, 2008) 20 Para Knauss (2001), a comercialização de tintas em spray portátil foi fundamental para o desenvolvimento do grafite. Ele conta que os primeiros relatos da imprensa novaiorquina sobre o fenômeno datam de 1971 e apresentam a recorrência da inscrição “TAKI 138” pintada em spray pela cidade (“TAKI” era o codinome de um rapaz de 17 anos, e “138” era o número da sua casa). Embora essa tenha sido a primeira marca a ganhar visibilidade na imprensa e, assim, contribuir para que o grafite se tornasse um fenômeno mais conhecido, a primeira marca de que se tem notícia, segundo Knauss, foi “JULIO 204”, em 1967. A partir daí, várias outras marcas semelhantes começaram a surgir: Frank 207; Cay 161; Snake 131; entre outras. Essa era a configuração recorrente dos grafites nova-iorquinos feitos àquela época: formatos simples e nenhuma mensagem, apenas codinomes, acompanhados, muitas vezes, pelos nomes das ruas e/ou números das quadras onde os grafiteiros residiam. As letras tanto podiam ser legíveis como podiam apresentar algum nível de rebuscamento e estilização, mas sem a pretensão de desenvolver um alfabeto próprio, tanto que inscrições diversas de um mesmo grafiteiro podiam apresentar estilos de letras variados. Alguns anos depois, começaram a surgir siglas de grupos, como TKA (The Kool Artists) e 3YB (Three Yard Boys). (KNAUSS, 2001) Após a disseminação das marcas em spray pelos muros e fachadas de Nova York, o formato do grafite evolui para a criação das tags, “soluções logotípicas das letras emboladas, quase criptogramas, por vezes, adornados com detalhes figurativos complementares ou pela tridimensionalidade” (KNAUSS, 2001, p.335). Além dessa evolução formal e estilística, Knauss (2001) apresenta, ainda, a evolução do suporte do grafite, quando a parte externa dos metrôs passa a ser o alvo preferido dos grafiteiros mais ousados e habilidosos. Para Gonçalves e Estrella (2007), os grafites nos metrôs de Nova York eram potentes por atribuírem sentido a uma superfície anônima, causando “terror, nojo, revolta” na população: “sua obscenidade explodia em suas impertinência e agressividade visuais” (GONÇALVES e ESTRELLA, 2007, p.106). Isso também contribuiu para a evolução formal do grafite, pois o tamanho e o movimento do metrô exigiam inscrições maiores e mais coloridas para que pudessem ser vistas, o que teria estimulado a criatividade dos grafiteiros para conseguirem traços e tons diversos a partir de diferentes formar de manejar o spray. O resultado, segundo Knauss (2001), começa a aproximar o grafite nova-iorquino da década de 1970 da indústria cultural por sua estética semelhante aos quadrinhos e desenhos animados. 21 Imagem 3: Metrô em Nova York, quando do surgimento do grafite, no início da década de 19707. Para Baudrillard (1979), que narra o surgimento e a expansão do grafite em Nova York como espectador contemporâneo daquele fenômeno, o contexto sócio-histórico da cidade, do seu planejamento como espaço funcional de atendimento a necessidades, cria condições para o surgimento do grafite como modo de expressão. Segundo o autor, o que configura a cidade contemporânea não é mais uma base industrial e política, onde as fábricas, as classes e os guetos serviam como esferas de socialização. Agora, a cidade se torna lugar para codificação e decodificação pela mídia e pela lógica do consumo – com a criação e a comercialização incessantes de tendências voláteis para modos “adequados” de se vestir, se comportar, comer, etc. – e a socialização passa a se dar predominantemente pelo compartilhamento desse código. É o seu monopólio que define os centros de poder, e cria, por exclusão, guetos físicos e simbólicos. O grafite teria surgido aí, para o autor, como um ataque a esse código e ao seu monopólio, e como um modo dos jovens negros e latinos extrapolarem os limites desses guetos e estarem presentes, também, no centro da metrópole: “eles exportam o gueto para todas as artérias da cidade, eles invadem a cidade branca e revelam que ela é o verdadeiro gueto do mundo ocidental” (BAUDRILLARD, 1979). A ideia de um planejamento urbano funcional que visa a homogeneizar os espaços da cidade e os modos como os cidadãos deveriam utilizá-los vai ao encontro da reflexão de Michel de Certeau (1998), para quem o conceito de cidade surge do esforço de tratar racionalmente o acúmulo urbano. 7 Fonte: site Rad Collector. Disponível em <http://radcollector.com/news/2010/06/29/shut-skates-presents-stayhigh-149/>. Acesso em 24/04/2014. 22 Nesse lugar organizado por operações “especulativas” e classificatórias, combinam-se gestão e eliminação. De um lado, existem uma diferenciação e uma redistribuição das partes em função da cidade, graças a inversões, deslocamentos, acúmulos, etc.; de outro lado, rejeita-se tudo aquilo que não é tratável e constitui portanto os “detritos” de uma administração funcionalista (anormalidade, desvio, doença, morte etc.). (CERTEAU, 1998, p.173) Contudo, esse esforço, empreendido por aqueles que planejam e governam as cidades, seria feito de um lugar particular, de onde muito se vê, mas pouco se vive do cotidiano urbano. Enquanto isso, aqueles que vivenciam a cidade diariamente se apropriam de seus espaços e os utilizam de modos, muitas vezes, independentes daqueles planejados. Nesse contexto, para Certeau (1998), planejamento e experiência estão constantemente em desencontro, pois, se de um lado estão as “estratégias” daqueles que governam a cidade e buscam mantê-la sob seu controle, do outro se desenvolvem as “táticas” dos sujeitos que inventam, a partir da experiência, novos modos de vivê-la. É importante, aqui, ponderar que as oposições binárias são constantemente simplificadoras e escondem uma multiplicidade de tensões e interseções. É preciso considerar a perigosa redução implicada na oposição radical entre aqueles que governam e aqueles que vivem a cidade, já que os primeiros também residem nela. O mais apropriado é apontar para diferentes vias de experimentação da cidade a partir dos diferentes lugares de ação, reconhecendo os atravessamentos mais do que buscando oposições. Os conceitos de estratégias e táticas de Certeau (1998) são trazidos, assim, para mostrar que há um desencontro entre o que se planeja e o que se vive em uma cidade, mas não se pretende, com isso, criar a ideia de dois âmbitos que não se tocam. Pode-se dizer, então, que o surgimento do grafite no contexto nova-iorquino da década de 1970 representa a invenção de um novo código que contesta aquele oficialmente compartilhado a partir dele mesmo, estabelecendo-se em suas brechas, passando por outros caminhos de compartilhamento, embaralhando o código vigente. Aí residiria, para Baudrillard (1979), a potência política do grafite. Não uma política ligada à organização ativista sob uma doutrina utópica, mas à manipulação, subversão e transgressão dos códigos, dos suportes e da linguagem: não há conteúdo ou mensagem explícitos, apenas a busca pela saída do anonimato dos guetos a partir da criação de uma identidade feita de controvérsias. Isso se relaciona com a reflexão desenvolvida ao longo do histórico em que se inscreve esta pesquisa e que encontra ressonância no pensamento político de Rancière (1996; 2001; 2002; 2009a; 2009b; 2010; 23 2011; 2014), que será trazido mais adiante: a ideia de que a política das intervenções gráficas urbanas não reside nas mensagens que elas possam carregar ou nos movimentos ou grupos aos quais elas possam se vincular, mas em sua capacidade, tanto a partir da ação de quem as produziu como a partir de sua materialidade, de questionar e desestabilizar lugares, funções e, assim, formas consensuais de partilhar o sensível. Aqui, é possível convocar as ideias de David Harvey (2013), para quem o direito à cidade não pode se reduzir ao acesso e uso (controlados) de seus espaços, mas ampliar-se para o direito de imaginar, fazer e viver a cidade continuamente – algo que, para o autor, só pode ser conquistado a partir da luta, pois não vem de graça. É abertura, à força, de espaços de participação e criação coletivas: O direito inalienável à cidade repousa sobre a capacidade de forçar a abertura de modo que o caldeirão da vida urbana possa se tornar o lugar catalítico de onde novas concepções e configurações da vida urbana podem ser pensadas e da qual novas e menos danosas concepções de direitos possam ser construídas. O direito à cidade não é um presente. Ele tem que ser tomado pelo movimento político. (HARVEY, 2013, p.34) Tal compreensão sobre o que constitui uma cidade dialoga com a ideia de Rancière sobre a política como uma cena criada a partir da abertura à força, pelos sujeitos, de espaços para que suas falas passem a ser consideradas na contagem das partes de uma sociedade. Essa ação, para Rancière (1996; 2001; 2002; 2009a; 2009b; 2010; 2011; 2014), é que torna possível uma nova partilha do sensível, ou seja, de modo geral, uma redisposição nas definições do que pode ser dito e visto, e por quem. Para Harvey (2013), a cidade é construída a partir do desejo daqueles que a habitam e daqueles que a governam. Portanto, se ela é feita pelos sujeitos de acordo com suas vontades, ela é sempre passível de ser refeita a partir do que eles almejam se tornar, toda vez que sentirem que chegaram a um ponto em que suas vidas e suas cidades não mais se atendem mutuamente. E esse “atender” não deve ser entendido como estritamente funcional, a partir de uma relação de demandas práticas a serem respondidas, mas também em um sentido sensível, que visa à qualidade da vida na cidade. Segundo o autor, “a cidade sempre foi um lugar de encontro, de diferença e de interação criativa, um lugar onde a desordem tem seus usos e onde visões, formas culturais e desejos individuais concorrentes se chocam” (HARVEY, 2013, p.30), desencadeando resultados que podem ser construtivos, destrutivos ou que, mais comumente, se configuram simultaneamente como ambos: destruições criativas/criatividades destrutivas. Essas 24 diferenças, assim como os embates que desencadeiam e as fusões que promovem, é que, para Harvey (2013), formam, nas ações cotidianas, uma cidade. A partir daí, pode-se dizer que, quando jovens saem às ruas para deixarem nelas suas marcas, sobretudo através da prática do grafite e da pixação, eles são movidos por seus conflitos e tensões cotidianas a colocarem em prática a cidade que imaginam. Se ela não oferece espaços para a expressão de suas identidades, origens e anseios, eles os abrem à força. Para alguns, um ato de vandalismo que destrói propriedades e patrimônios; para aqueles que intervém, atribuição de sentido a espaços que antes não (lhes) diziam nada. Cabe aqui a consideração de Baudrillard (1979), que compara a cidade a um corpo, que, quando é tatuado, deixa de ser uma superfície nua e sem significação. Quando as superfícies da cidade são grafitadas, elas são profanadas8, ressignificadas, reinseridas na experiência, tornadas espaços de trocas simbólicas. Uma metáfora interessante e utilizada também por Pontes (2007), que compara a superfície da cidade ao tecido epitelial do corpo humano. A pele transporta as marcas do corpo - do tempo, dos traumas, das escolhas, dos ornamentos - e cria limites para esse corpo, separando o dentro e o fora, ao mesmo tempo em que serve como superfície de toque e encontro desses dois extremos. Da mesma forma, a superfície da cidade carrega as marcas da vida urbana e se oferece, ao mesmo tempo, como limite que instaura a separação e o encontro entre o dentro e o fora, o privado e o público, o institucional e o marginal. Quando transformam a superfície da cidade, os grafiteiros e os pixadores (assim como os produtores de outros tipos de intervenções urbanas gráficas, performáticas, midiáticas, etc.) também transformam – coletiva e constantemente – algo de sua história e dos personagens que dela fazem parte, realizando, de alguma forma, aquilo que Harvey (2013) defende como o processo de construção de uma cidade. Uma construção que se dá a partir da margem, de forma silenciosa, transgredindo – nos sentidos de burlar e de ultrapassar – as propostas formais e oficiais da configuração urbana. Para Certeau (1998), é justamente a observação dessas apropriações e práticas efetivas do espaço, empreendidas pelos “praticantes ordinários da cidade” (CERTEAU, 1998, p.171) – e não da produção disciplinar desse espaço –, que permite a formulação de uma teoria do cotidiano, da vivência da cidade (aqui, no entanto, como já foi apontado, o esforço se dá no intuito de apresentar a importância da observação dessas duas esferas e das tensões e interseções que são criadas 8 A ideia da pixação como profanação de espaços institucionalizados e consagrados será retomada no capítulo 3, a partir dos conceitos de profanação e consagração de Agamben (2007). 25 entre elas para que seja possível avançar na compreensão do universo da pixação e de sua relação com a arte a partir dos objetivos aqui traçados). Assim, se na Nova York da década de 1970, o grafite nasce como meio de expressão dos jovens excluídos advindos dos guetos, tornando possível sua inserção no cenário da metrópole, no Brasil ele tem uma origem e uma estética bastante distintas, embora inspiradas nas insurgências nova-iorquinas. 2.2. Grafite no Brasil Knauss (2001) observa que a primeira vez em que se ouviu falar de grafite no Brasil foi a partir do que a imprensa brasileira noticiou sobre a batalha empreendida pelo prefeito de Nova York contra o fenômeno 9, em matéria publicada pelo Jornal do Brasil, em 17 de janeiro de 1973, em que a ação foi chamada de “arriscada arte de pichar paredes” (KNAUSS, 2001). Mas foi apenas na virada dos anos 1980 que, segundo Sérgio Franco (2009), começaram a surgir, no Brasil, intervenções gráficas urbanas que se assemelhavam mais ou menos àquelas surgidas em Nova York, na década anterior. O auge da ditadura militar havia constrangido a atuação dos artistas brasileiros, e essa seria, para o autor, uma causa do relativo “atraso” no aparecimento mais massivo do grafite no país. Para Gitahy (2012), a pop art e o muralismo formam a base de influências do grafite brasileiro. Ele, assim como Baudrillard (1979), observa, contudo, a importância de os grafites não serem confundidos com meras pinturas em muros. O muralismo, tendência artística observada em vários países na primeira metade do século XX, surgiu com a realização de grandes pinturas feitas sob encomenda por artistas renomados, proclamadas como formas de levar a arte para o povo. Baudrillard (1979) também cita tais pinturas em murais novaiorquinos, que eram apoiadas e financiadas por instituições públicas e privadas. O filme Frida10 mostra a contratação de Diego Rivera pela Fundação Rockfeller, na década de 1930, para pintar um desses grandes murais (evento permeado por conflitos, porque Rivera não 9 Knauss (2001) diz que se, por um lado, a atenção da imprensa nova-iorquina é que fez o fenômeno do grafite se tornar amplamente conhecido, por outro, ela sempre o denunciou como um problema político urbano. Já a partir de 1972, o poder público de Nova York começa a criar ações diversas para o combate ao grafite e a punição aos grafiteiros. Ações de limpeza, proibição da venda de tintas em spray para menores de idade, cadastro dos compradores, e penas de multa e prisão aos grafiteiros foram algumas das medidas tomadas, envolvendo diversos setores da sociedade (inclusive da indústria, que se empenhou em desenvolver tintas especiais e produtos de limpeza específicos) e implicando o investimento de dezenas de milhões de dólares. (KNAUSS, 2001) 10 TAYNOR, Julie. Frida. EUA: Miramax International, 2002. 26 aceitava submeter seu processo criativo e crítico às restrições da instituição). No Brasil, Gitahy apresenta como exemplo dessa tendência a fachada do Teatro de Cultura Artística, em São Paulo, pintado por Di Cavalcanti na década de 1950. Para evitar o equívoco da confusão entre esse tipo de pintura e o grafite, Gitahy (2012) elenca dois grupos de características que identificariam este último e o tornariam peculiar. No grupo das características estéticas, estão: “expressão plástica figurativa e abstrata; utilização do traço e/ou da massa para definição de formas; natureza gráfica e pictórica; utilização, basicamente, de imagens do inconsciente coletivo, produzindo releituras de imagens já editadas e/ou criações do próprio artista; repetição de um mesmo original por meio de uma matriz (máscara), característica herdada da pop art; repetição de um mesmo estilo quando feito à mão livre” (GITAHY, 2012, p.17). As características conceituais, por sua vez, dizem que o grafite é/faz: “subversivo, espontâneo, gratuito, efêmero; discute e denuncia valores sociais, políticos e econômicos com muito humor e ironia; apropria-se do espaço urbano a fim de discutir, recriar e imprimir a interferência humana na arquitetura da metrópole; democratiza e desburocratiza a arte, aproximando-a do homem, sem distinção de raça ou de credo; produz em espaço aberto sua galeria urbana, pois os espaços fechados dos museus e afins são quase sempre inacessíveis” (GITAHY, 2012, p.18). Para Gitahy, ainda, o grafite constitui um “convite ao encontro e ao diálogo” (2012, p.16), sempre com bom humor. Tal caracterização permite perceber que o autor mantém uma visão romântica da expressão como uma arte democrática no fazer e no fruir, livre de preconceitos e burocracias, pertencente à rua, engajada politicamente, bem-humorada. Além disso, o autor deixa as características estéticas tão abertas e cheias de possibilidades que elas mais misturam do que tornam peculiar o grafite em meio a outros tipos de pintura. Talvez isso mostre que um esforço exacerbado para encontrar peculiaridades acabe por focar em aspectos que não são, de fato e na prática, aqueles que realmente, para os grafiteiros, determinam se uma pintura é ou não um grafite. Sobre os primeiros grafiteiros brasileiros – a quem Franco (2009) chama de “pioneiros”, enquanto Gitahy (2012) designa como “fase marginal” – é curioso observar que tratam-se de pessoas com formação acadêmica e artística, vindas da classe média, em um extremo oposto do cenário observado em Nova York. Por outro lado, é algo compreensível, já que eram esses artistas que tinham maior acesso ao que estava acontecendo no mundo, 27 inclusive com a possibilidade de circularem por outros países, conhecendo outras culturas e observando tendências estéticas e comportamentais. Alex Vallauri, por exemplo, que é considerado o grande precursor do grafite no Brasil, formou-se em Comunicação e Artes Plásticas na FAAP, em São Paulo, e já fazia parte do circuito artístico institucional antes de levar suas intervenções para a rua. Tanto Franco (2009) como Gitahy (2012) atestam o pioneirismo de Vallauri nas intervenções urbanas brasileiras. Porém, enquanto Gitahy se refere ao artista como a um ídolo, Franco parece questionar o seu reconhecimento como grafiteiro. De acordo com ele, a condição socioeconômica do artista lhe permitiu ir à Nova York para conhecer as inscrições que surgiam por lá e voltar ao Brasil com autoridade para dizer o que era ou não grafite. Faltava-lhe, no entanto, uma das principais características da expressão, segundo o autor: a transgressão. Imagem 4: Alex Vallauri produzindo seu grafite a partir de uma de suas matrizes.11 Imagem 5: a famosa botinha de Vallauri, primeiro desenho espalhado pela cidade pelo artista.12 11 Fonte: site Editora Olhares. Disponível em: <http:// editoraolhares.tanlup.com/product/726784/alex-vallauri-da-gravura-ao-grafite>. Acesso em 28/04/2014. 28 Além dela, os demais critérios que, para Franco (2009), compõem o grafite são: estar na rua, de forma autorizada ou não (grafite na galeria não seria, assim, grafite); e ser feito espontaneamente, e não sob encomenda (ainda que conte com autorização). Além dessas, o autor ainda aponta para o uso do spray, que colabora para a agilidade exigida pela prática da intervenção. Essa última não estabelece uma rigidez, o que pode ser verificado nas diversas técnicas utilizadas pelos grafiteiros e até pelos pixadores. De qualquer forma, a caracterização feita por Franco distingue-se bastante daquela proposta por Gitahy, se aproximando mais de uma forma de expressão próprias das ruas, ao passo que a lista de Gitahy aponta para uma conformação excessiva da prática. Segundo Franco (2009), vários outros grafiteiros daquela primeira geração, assim como Vallauri, possuíam formação artística formal e faziam experimentações com a estética e as técnicas do grafite, misturando-as a outras. Naquela época, por exemplo, utilizava-se bastante uma matriz (também chamada de máscara ou estêncil) para permitir a reprodução dos desenhos com fidelidade e agilidade, uma técnica que, atualmente, já não é uma característica frequente dos modos de fazer dos grafiteiros (embora ainda seja muito usada em outro tipo de intervenção gráfica urbana, conhecida como estêncil). Por tudo isso, não há, de acordo com Franco, uma unanimidade na identificação desses artistas como grafiteiros. No entanto, para além dos julgamentos sobre seus procedimentos, técnicas e estilos, é necessário reconhecer a importância de Vallauri e seus contemporâneos para despertar os jovens brasileiros para as possibilidades de intervir na cidade através dos grafismos. Esse reconhecimento tornou-se oficial com a declaração do dia 27 de março, data do falecimento de Alex Vallauri, em 1987, como o Dia Nacional do Grafite, sendo a data regulamentada legalmente em alguns municípios13. 12 Fonte: site Idea Fixa. Disponível em: <http://www.ideafixa.com/dialogos-pop-alex-vallauri-e-warhol-nomam/>. Acesso em 28/04/2014. 13 Em São Paulo, o Dia do Grafite foi instituído pela Lei nº 13.903/ 2004, sendo posteriormente substituída pela Lei nº14485/ 2007. Disponível em <https://www.leismunicipais.com.br/>. Acesso em 23/04/2014. Em Belo Horizonte, a lei que institucionaliza o Dia do Grafite é a nº1595/2011. Disponível em <http://www.cmbh.mg.gov.br/chapeu/projetos-apresentados>. Acesso em 23/04/2014. 29 Imagem 6: Grafite de Marcos Vilaça em homenagem a Alex Vallauri.14 A geração de grafiteiros posterior aos “pioneiros” – designada por Franco (2009) como “Old School” – se desenvolveu de maneira mais próxima das motivações originais do grafite nova-iorquino, ainda que seu contato com aquela estética tenha se dado de forma mediada e à distância (por livros e mídias diversas), e não de maneira quase direta, como na geração anterior. Essa geração vinha predominantemente da periferia e não possuía conhecimentos acadêmicos sobre arte, mas misturou as referências do que via com as que vivenciava, especialmente aquelas ligadas à cultura hip hop, para criar seu grafite. Essa geração recupera a atitude e a estética transgressoras que caracterizavam o grafite novaiorquino da década de 1970, enquanto a geração anterior apresentou uma apropriação daquela estética a partir de um amplo conhecimento artístico e do sistema das artes. Os Gêmeos (dupla formada pelos irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo) e Speto são alguns dos grandes expoentes dessa geração que alcançaram reconhecimento mundial através de seu trabalho com o grafite. Apesar de apresentar uma caracterização bem mais próxima à prática das ruas, Franco (2009) ainda é, às vezes, bastante formalista com o que pode ser considerado grafite. Um exemplo é quando se refere ao domínio do uso do spray: “deve-se conquistar a minúcia de controlar a pressão da lata e a abertura do jato de tinta sem nenhum regulador acoplado ao objeto” (FRANCO, 2009, p.48). Gitahy (2012) lembra que, na década de 1980, havia apenas um tipo de lata de spray, que permitia o mesmo traço grosso. Os grafiteiros da época (Os Gêmeos, Speto, Binho, Tinho, entre outros) começaram, então, a adaptar bicos de outros 14 Fonte: blog Cinco Cinco Zero. Disponível em: <http://blog.cincocincozero.com/2013/04/alex-vallauri-pioneiro-do-graffiti-no-brasil/>. Acesso em 28/04/2014. 30 aerossóis, como desodorantes e inseticidas, e a fazer alterações nas latas para permitir variações de traços. No filme Cidade Cinza (2013), o grafiteiro Nunca lembra que os Gêmeos vendiam esses bicos adaptados aos colegas, numa forma de arrecadar verba para a compra de mais materiais. É preciso, assim, observar que, durante certo período, a ausência de bicos reguladores era um fato, não uma escolha. Isso não deveria querer dizer que, agora que há uma diversidade de implementos disponíveis, o seu uso descaracterize um trabalho como grafite. Isso abre uma contestação sobre se o grafite deve mesmo ser definido como tal a partir dos materiais e técnicas utilizados em sua produção. Contudo, embora a abordagem do grafite seja de extrema relevância para a compreensão do objeto deste trabalho – a pixação –, não é possível, neste momento, realizar um investimento mais profundo nessas questões, o que não impede que elas sejam oferecidas à reflexão. A geração posterior a essa, a que Franco (2009) chama de “New School”, passou por um processo de formação e desenvolvimento bem diferente, já em um contexto em que governo e instituições públicas e privadas voltavam seus esforços para criar novos modos de lidar/controlar as intervenções urbanas. Como polo desse movimento em São Paulo, Franco destaca a Instituição Cidade Escola Aprendiz 15, formada em 1997, pelo jornalista Gilberto Dimenstein, com a proposta de oferecer meios para o desenvolvimento sustentável, autônomo e cooperativo da comunidade. Entre as frentes de ação da escola, que se mantém com financiamento privado, está o oferecimento de oficinas de mídia e grafite para alunos de escolas públicas. Ali, os jovens tinham acesso gratuitamente a aulas, materiais didáticos e matéria-prima aos quais, possivelmente, não teriam em outros espaços. Com espaço, tempo e apoio, os grafiteiros começaram a desenvolver novas técnicas, estéticas, modos de fazer e promover seu trabalho. Aparece um novo conflito: os que estavam dentro da Aprendiz eram vistos como realizadores do “bom grafite”, enquanto os que estavam fora, não. Contudo, segundo Franco (2009), os grafiteiros geralmente mantinham alguns questionamentos sobre as intenções da instituição, os benefícios do sucesso para cada parte envolvida e a forma como os projetos eram frequentemente tratados de modo que a arte esteve, em grande parte do tempo, subordinada ao apelo da inclusão social. De toda forma, o trabalho da instituição, que funcionou em grande medida parte como um agenciamento (no sentido de agenciar o trabalho dos alunos, intermediando o contato entre contratantes e alunos para a realização de grafites), colaborou para a abertura de espaços e para o aumento da visibilidade do grafite nos meios 15 Disponivel em: <http://cidadeescolaaprendiz.org.br/>. Acesso em 30/04/2014. 31 institucionais e mercadológicos, levando vários grafiteiros ao reconhecimento público e tornando possível que o grafite se transformasse em um meio (e não só uma forma) de vida para alguns jovens. Contudo, o preço a pagar era (e continua sendo) a submissão do processo criativo a cada demanda, o que sempre foi um foco de tensão entre os grafiteiros. O ponto central da questão está no constante embate entre o reconhecimento do grafite como arte pelos praticantes, e como via para a inclusão social pelas instituições que o tomam como uma forma de salvar jovens de periferia, mantendo-os longe de atividades transgressoras, especialmente da pixação: o ponto diametralmente oposto ao grafite na linha de aceitação traçada pelas instituições de poder. 2.3. Celacanto Provoca Maremoto: origem e desenvolvimento da pixação brasileira Gitahy (2012) resgata a origem do termo “pichação” na Idade Média, quando padres escreviam com piche nas paredes de conventos “rivais”, durante a Idade Média. De lá para cá, as inscrições nos muros passaram por várias modificações e, no formato que assumiram atualmente no Brasil, tornaram-se “pixação”, com “x”, contrariando a ortografia formal e se relacionando diretamente com a experiência da prática na rua. Pereira (2005) observa que o uso da palavra com “x” não reflete o desconhecimento da grafia correta por parte dos pixadores, mas indica um ato consciente para diferenciar aquilo que fazem do sentido que é atribuído ao termo “pichar” no dicionário 16. Além disso, busca-se diferenciar suas inscrições de outras realizadas na cidade, de cunho político, comercial, etc. No Brasil, algumas das primeiras inscrições em spray que provocaram a curiosidade das pessoas, de acordo com Gitahy (2012) e Knauss (2001), foram Celacanto Provoca Maremoto, Lerfá Mú, Cão Fila Km26, entre outras, nas décadas de 1970 e 1980. As duas primeiras ficaram tão conhecidas e causaram tanto alvoroço na imprensa que chegaram a ser apropriadas por agências de publicidade da época, sendo usadas em anúncios de produtos diversos. 16 Pichar, v.t.d. 1. Pintar ou untar com piche; 2. Escrever em muros, paredes, postes, etc.; 3. Criticar asperamente. (OLINTO, 2001, p.405) 32 Imagem 7: “Celacanto provoca maremoto”: pichação anterior à pixação.17 Imagem 8: apropriações das inscrições “Celacanto provoca maremoto” e “Lerfá Mú” pela publicidade, na década de 1980.18 17 Fonte: blog Bar do Bulga. Disponível em: <http://bardobulga.blogspot.com.br/2011/09/quando-celacantoprovocava-maremoto.html>. Acesso em 31/03/2014. 33 Gitahy faz uma análise questionável, dizendo que a pixação e o grafite têm em comum a transgressão e que são, dessa forma, frutos de sociedades abertas e livres; para ele, essas práticas “não combinam com ditadura” (GITAHY, 2012, p.23). Uma conclusão controversa. Se tais práticas são essencialmente transgressoras, não faz sentido que elas só apareçam onde são permitidas ou toleradas; inclusive, já foi visto que elas surgiram de contextos de repressão. A permanência das intervenções e as formas de reprimir seus produtores podem ser determinadas pelo regime político de um país, mas ele pode não ser capaz de suprimi-las. No Brasil, por exemplo, durante a ditadura militar, pichações de repúdio ao regime e às suas práticas eram frequentemente vistas nas ruas. Agora em regime democrático, o país criminaliza as práticas de intervenção gráfica urbana feitas sem autorização e penaliza com multa e prisão aqueles que são enquadrados na lei, o que continua não impedindo que as intervenções se disseminem cada vez mais. Em Zurique, na Suíça, também uma república democrática, grafites são proibidos e sua produção clandestina é extremamente vigiada, sendo que os que são feitos são apagados poucas horas depois. A certeza de seu apagamento, contudo, também não impede que eles continuem sendo feitos; pelo contrário, incentivam o seu registro para que se produza uma memória dessas intervenções na cidade 19. Outro exemplo expressivo que contradiz a fala de Gitahy é o fato de que há mulheres grafiteiras no Afeganistão20, um país que simboliza a restrição em todas as áreas e onde seria difícil imaginar possibilidades para intervenções urbanas de qualquer tipo que não as produzidas pelo próprio governo, especialmente feita por mulheres 21. Não há, portanto, uma correlação 18 Idem anterior. MENZ, Juliana. Só por algumas horas. Revista TPM. Edição 120. Trip Editora: São Paulo, maio de 2012. Bazar. P.35. 20 KONRATH, Camila. As grafiteiras revolucionárias do Afeganistão. In: Blog Escola de Criação. ESPM: São Paulo, 05 de setembro de 2013. Disponível em: <http://escoladecriacao.espm.br/2013/as-grafiteirasrevolucionarias-do-afeganistao/>. Acesso em 07/05/2014. 21 Uma matéria publicada pelo site da revista Exame, em fevereiro de 2014, mostra que relatórios da ONU apontam o Afeganistão como o segundo país do mundo com maior desigualdade de gênero, herança do período em que o Talibã governava o país. Lá, apenas 15,7% das mulheres trabalham e apenas 5% possuem o diploma secundário. A expectativa de vida é de apenas 45 anos e elas ainda são, frequentemente, forçadas a se casar antes dos 16 anos, com maridos escolhidos pelos pais. DEARO, Guilherme. Lei no Afeganistão protege homens que violentaram mulheres. In: Exame.com, São Paulo, 05 de fevereiro de 2014. Mundo. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/lei-no-afeganistaoprotege-homens-que-violentaram-mulheres>. Acesso em 09/05/2014. E ainda, de acordo com matéria da revista Veja, o “chamado estupro marital” é defendido por lei e determina que o marido tem o direito de obrigar sua esposa a fazer sexo sempre que ele desejar, sujeitando-a a punição em caso de recusa. 19 34 clara entre um regime político e a presença de pixações e grafites, como propõe Gitahy. Há, ao invés disso, diversos graus de tensão que formam uma complexa teia de relações. Gitahy (2012) divide a pixação em quatro fases, que correspondem não a períodos de tempo, mas sim a modos de fazer. Na primeira, a saída do anonimato seria a principal motivação, e o pixo consistia na inscrição dos próprios nomes por toda e qualquer superfície. A segunda se caracterizaria pela criação de pseudônimos, letras rebuscadas e símbolos que identificavam grupos, e pela competição por espaços. A terceira fase seria a da verticalização, em que os pixadores criam táticas para alcançar os prédios mais altos, desempenhando posições extremamente perigosas para alcançar os espaços mais difíceis, que resultariam em maior valorização simbólica. Já a quarta fase se caracterizaria pelo apelo midiático a partir da tática de pixar lugares que sabidamente são explorados pela mídia. O status é concedido àqueles que conseguirem fazer suas marcas aparecerem na imprensa. Para o autor, atualmente, o que se vê é um misto dessas quatro fases. Paralelamente, Pereira (2005) apresenta três fases da pixação, identificadas, segundo ele, pelos próprios pixadores: a primeira, com a pixação nos muros, feitas do chão; a segunda, com a pixação feita nos topos dos prédios e outros lugares altos; e a terceira, com a pixação feita acima das janelas dos prédios, nas fachadas, acessadas a partir de sua escalada, sendo que, quanto mais alto o ponto alcançado, mais “ibope”22 aquele pixador irá obter para si e para seu grupo. Gitahy (2012) e Lassala (2010) apresentam, ainda, o “grapixo” como uma técnica intermediária entre a pixação e o grafite: não seria um “simples” pixo, mas também não teria a elaboração do grafite. Para Gitahy, o grapixo seria resultado do interesse de alguns pixadores em aprimorar seu trabalho. O autor parece se esforçar por não demonstrar juízos de valor, dizendo que a pixação e o grafite são ambos manifestações artísticas de um povo oprimido e desrespeitado e, como tal, deve-se tentar compreendê-las ao invés de julgá-las. No entanto, a forma como ele apresenta as duas práticas deixa perceber um pouco da visão do grafite como a evolução técnica e comportamental da pixação. O próprio modo de escrever a palavra “pichação” permite inferir algo do lugar de fala de Gitahy, especialmente por ter sido um grafiteiro, pois reconhecer a OYAMA, Thaís. Afeganistão: um inferno para as mulheres. In: Veja.com, São Paulo, 19 de maio de 2010. Especial. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/190510/afeganistao-inferno-para-mulheres-p-140.shtml>. Acesso em 09/05/2014. Em um país em que as mulheres não têm liberdade sequer para circular nas ruas, mostrar seus rostos, trabalhar, estudar ou escolher se e com quem querem se casar, qualquer forma expressão artística não é uma possibilidade. 22 “Ibope” é o termo utilizado pelos pixadores para se referirem à fama e ao reconhecimento gerado entre os próprios grupos a partir da quantidade de pixações de um mesmo grupo ou pixador encontradas pela cidade e pelo grau de dificuldade enfrentado para pixar cada lugar (LASSALA, 2010; PEREIRA, 2005). 35 grafia com “x” significa, ao menos, reconhecer que os pixadores podem, melhor do que ninguém, nomear a sua atividade. Sobre essa distinção de valores entre as duas práticas, Pereira (2005) observa que o grafite também não era bem aceito em seu início, e que esse quadro só teria começado a mudar com a disseminação da pixação. Para o autor, o julgamento estético colocou as duas expressões em comparação e fez uma escolha: decidiu-se que o grafite era uma intervenção boa, ao contrário da pixação. É preciso considerar, também, contudo, que há aí uma forte questão de classes. Enquanto o grafite chega ao Brasil pelas mãos de artistas plásticos com formação superior (jovens brancos, instruídos, de classe média), a pixação se dissemina como um meio de expressão próprio das periferias (de jovens negros, pobres, com baixa escolaridade), e essa diferença sobre quem produz cada intervenção tem forte implicação na diferença da visibilidade de uns como artistas e outros como marginais. O jornalista Xico Sá, no livro organizado pelo pixador e grafiteiro Boleta (2006), critica o que ele chama de pensamento burguês, que não digere a estética agressiva das pixações e, assim, aciona as autoridades: “polícia para tudo aquilo que não compreendo, grita a mocinha da brava elite” (SÁ, 2006, página não numerada 23). Para Franco (2009), a distinção entre grafite e pixação foi reforçada especialmente a partir de 1981, quando a Bienal de São Paulo trouxe o grafite de Keith Haring para a cidade com o status de arte. O autor também percebe as diversas tentativas de, além de diferenciar, colocar o grafite – uma arte – como o polo oposto e positivo à pixação – vandalismo. Inclusive, como já foi visto, o grafite é adotado em ONGs, escolas e programas governamentais como um meio para retirar os jovens do pixo. Segundo Pereira (2005): As representações que envolvem as relações entre grafite e pixação na cidade de São Paulo afirmaram-se por meio de pares de oposições dicotômicas. Assim, enquanto a pixação se enquadra na transgressão, no feio e no vandalismo, o grafite situa-se do lado da ordem, do belo e da política pública. Esta oposição rígida, no entanto, não reflete o cotidiano das relações entre essas duas formas de expressão, pois estas não estão separadas, mas em uma interação complexa e nuançada. (PEREIRA, 2005, p.28) O autor aponta, ainda, que a distinção entre grafite e pixação é algo específico do Brasil. No resto do mundo, o que aqui é chamado de pixação é visto como um estilo dentro do 23 O livro Ttsss... A grande arte da pixação em São Paulo, Brasil, organizado por Boleta (2006) e no qual se insere o texto de Xico Sá, não possui as páginas numeradas. 36 grafite. A partir daí, é possível perceber que a distinção feita aqui é que fundamenta o tratamento diferente dado a cada tipo de intervenção. Contudo, no filme Cidade Cinza (2013), vê-se que a distinção não está clara sequer para os funcionários das empresas contratadas para apagar as intervenções indesejadas em São Paulo, e o julgamento é feito de forma pessoal e arbitrária, diante de cada intervenção: o que o funcionário responsável pela equipe acha bonito permanece, o restante é pintado de cinza. E quando essas empresas e as prefeituras são confrontadas com o protesto pelo apagamento de algum grafite específico (geralmente realizado por grafiteiros já consagrados), o argumento é: os funcionários acharam que era pixação, em uma prova de que os critérios de distinção não estão bem traçados. E poderiam ser? Com a multiplicidade de formatos e modos de fazer que a intervenção gráfica urbana assume – pixação, grafite, bomb, grapixo, sticker, estêncil, etc. –, quanto mais se tenta classificá-las para distinguí-las, mais se esbarra nos pontos que elas têm em comum. Parte-se, então, novamente, para o julgamento estético (aliado a questões de classe), que será sempre arbitrário e parcial. Franco (2009) critica o modo como essa distinção é feita de modo rígido, chamando atenção para as nuances que uma e outra forma de intervenção podem apresentar e para o modo como é possível transitar entre elas, já que ambas têm muitos pontos em comum: a matéria-prima, o suporte e a transgressão como força motivadora. A relação entre grafiteiros e pixadores parece ser mais delicada e tão cheia de aproximações e distanciamentos quanto as duas formas de intervenção a que se dedicam. Alguns transitam entre elas continuamente, o que permite perceber que a visão do grafite como uma evolução positiva da pixação é equivocada. Nem todo grafiteiro foi pixador (embora em duas das três gerações apresentadas por Franco (2009), esse tenha sido um caminho percorrido pela maioria dos grafiteiros apresentados), nem todo pixador quer se tornar grafiteiro. E aqueles que se tornam nem sempre abandonam a pixação. Segundo Franco (2009) e Pereira (2005), o respeito entre eles depende da trajetória de cada um. Em uma participação no programa Desculpe a Nossa Falha 24, o pixador paulista Djan Ivson cita um caso em que o grafiteiro Nunca criou uma escrita inspirada na pixação para um uniforme da seleção brasileira de futebol, produzido pela Nike. Para o pixador, esse seria um exemplo de “charlatanismo”, já que se trata de um artista que nunca teria sido pixador, o que 24 ENTREVISTA COM DJAN IVSON, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 20/01/2015. 37 faz com que sua apropriação da forma não seja respeitada no meio. Em entrevista ao site Catraca Livre, Ivson declarou que “o grande erro dos grafiteiros não foi quando o grafite entrou para o circuito das galerias, foi quando eles fizeram o contrário, transformaram a rua em galeria. Foi quando eles começaram a ganhar para pintar na rua. Aí você tá abrindo mão do que legitima seu trabalho, que é pintar na rua de forma ilegal, transgressora” (DEPOIMENTO)25. Não se trata, então, de estar ou não atuando comercialmente, mas de ter ou não uma história dentro da prática. Se um pixador ou grafiteiro que atua na rua, que passou por tudo o que a rotina da pixação e do grafite não autorizado significa de bom e ruim para seus praticantes, desenvolve trabalhos comerciais e ganha dinheiro com sua arte, ele é respeitado, pois é visto com um legítimo representante de seu grupo. Mas, se um grafiteiro nega um passado na pixação, a trata como forma de expressão inferior ao grafite, se apropria indevidamente de sua estética ou só produz seus trabalhos na rua com autorização e patrocínio, é provável que seus grafites sejam atropelados 26. Djan Ivson, por exemplo, vive do pixo. Já antes da repercussão obtida a partir dos eventos de 2008, que serão apresentados no próximo capítulo (invasões ao Centro Universitário Belas Artes, à Galeria Choque Cultural, e à 28ª Bienal de Arte, todos em São Paulo), ele ganhava dinheiro produzindo e comercializando vídeos em que registra a ação dos pixadores, em dois selos: 100 Comédia e Escrita Urbana. No programa referido acima e em entrevista concedida à autora deste trabalho, ele conta que começou a ganhar dinheiro com a pixação em 1997, em Barueri, São Paulo, quando a prefeitura fez um acordo com os pixadores, convidando-os para fazerem pinturas decorativas em prédios públicos, visando a que aqueles lugares não fossem mais pixados – uma prática vista até hoje como forma de barrar a pixação. Segundo Ivson, os pixadores eram pagos para realizar essas pinturas, o que financiava os rolês para pixar em outras cidades próximas. Esse acordo entre pixadores e prefeitura durou oito anos e, com o intuito de combater a pixação, contribuiu, na verdade, para sua expansão. Essa situação vai ao encontro da observação de Pereira (2005), para quem as tentativas, tanto da mídia quanto do poder público, de reafirmar o caráter negativo da pixação 25 BLUMEN, Felipe. “O pixo é o que tem de mais conceitual na arte contemporânea hoje”. Catraca Livre, São Paulo, 22 de agosto de 2014. Arte e Design. Disponível em: https://catracalivre.com.br/sp/designurbanidade/indicacao/o-pixo-e-o-que-tem-de-mais-conceitual-na-arte-contemporanea-hoje/#. Último acesso em: 21/01/2015. 26 No vocabulário dos pixadores, o termo “atropelo” significa pixar por cima do trabalho de outra pessoa (LASSALA, 2010), o que é feito deliberadamente quando se deseja ofender aquele a quem se atropela, por não considerá-lo um representante legítimo da pixação ou do grafite. 38 e combatê-la acabam por fortalecê-la, fazendo com que ela se dissemine ainda mais, como se se apresentassem como um desafio aos pixadores. Para a maioria deles, contudo, os ganhos com a pixação restringem-se à esfera simbólica. Biscoito, pixador que também participa da entrevista ao Desculpe a Nossa Falha, diz que, para ele, os eventos de 2008, seus desdobramentos, e o lançamento do documentário Pixo (2009) não mudaram muita coisa em sua vida. A única coisa que mudou, segundo ele, foi um aumento em sua satisfação pessoal por ver a repercussão que o pixo tomou. É comum, em todas as entrevistas assistidas e lidas para a realização deste trabalho, o depoimento de diversos pixadores citando que eles não têm lucro algum com a pixação. Pelo contrário, eles investem nela – tanto financeiramente, pela compra de tintas, quanto física e juricamente, pelos riscos aos quais se expõem quando saem para pixar – e esperam como retorno apenas a satisfação da adrenalina, da superação de obstáculos cada vez maiores e mais arriscados, e de ver seus nomes e de seus grupos e grifes 27 estampados pela cidade. Pixação é, para eles, um hobby um meio de expressão e afirmação, mas não uma fonte de renda. Djan Ivson, no filme Pixo (2009), declara que a pixação é o “esporte da periferia”, e, entrevista à revista Caros Amigos, declarou: “com a pixação, você não está em busca de nada material ou financeiro, é só um valor simbólico” (DEPOIMENTO)28. Para seus praticantes, a rua é o lugar do movimento, da adrenalina que os liberta do tédio de ficar em casa (PEREIRA, 2005). Certeau (1998) e Yi-Fu Tuan (1983) defendem que a cidade é feita na própria experiência de seus habitantes, que configuram e transformam continuamente o espaço urbano. Ainda que os dois autores apresentem diferenças na forma como conceituam “lugar” e “espaço”29, há semelhanças no modo como desenvolvem que um âmbito dimensional é transformado em um âmbito experiencial e simbólico a partir da vivência, da prática dos sujeitos. Os pixadores, com suas ações na cidade, transformam lugares que lhes eram impessoais em espaços de interação, convívio e lazer. Essa transformação, contudo, é muito 27 Uma grife, também chamada de união, é um conjunto de vários grupos de pixadores. (BOLETA, 2006; LASSALA, 2010; PEREIRA, 2005) Dja Ivson, por exemplo, faz parte do grupo “Cripta”, que integra a união “Os + Fortes”. 28 Fala extraída entrevista: MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cujaproposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 29 Para Certeau (1998), “lugar” é uma ordem de disposição de elementos inertes, enquanto “espaço” é o lugar atravessado pelas práticas dos sujeitos. Já para Tuan (1983), “espaço” está ligado à ideia de território, demarcações, orientação; enquanto “lugar” está ligado à ideia do valor atribuído a um espaço. 39 própria e pode entrar em choque com as formas com que outras pessoas veem e usam aqueles mesmos espaços. De acordo com o que é mostrado por Pereira (2005), é possível perceber que um dos pontos mais atacados na pixação é o fato de que ela não transmite uma mensagem (justamente o que Baudrillard (1979) via como a grande potência do grafite nova-iorquino da década de 1970) e de que não é possível entender sua escrita. Contudo, se a ilegibilidade é um dos principais motivos pelos quais a população geral estranha e desaprova a pixação, ela seria um aspecto admirado e buscado entre os pixadores. O rebuscamento das letras, assim como a firmeza no traço, determinam o que eles consideram a beleza de um pixo. Na pixação paulistana, o tipo de letra utilizado deve ser desenvolvido pelos grupos e aprendido por quem é aceito neles. O destaque é dado ao nome e/ou ao emblema do grupo, enquanto os nomes, iniciais ou apelidos dos pixadores que participaram da ação aparecem menores. Podem acompanhar, ainda, a zona e o bairro de origem dos pixadores, além do ano da realização do pixo (PEREIRA,2005; FRANCO, 2009; LASSALA, 2010). O objetivo comum é espalhar o nome do grupo pela maior quantidade de lugares possível, e pelos lugares mais difíceis, conferindo a esses, como já foi visto, mais ibope. Outro ponto interessante observado por Pereira (2005) trata da questão da efemeridade: embora ela seja frequentemente tratada como uma característica intrínseca às intervenções gráficas urbanas e, assim, assimilada pelos interventores, ela é extremamente indesejada pelos pixadores. É como se a pintura de um muro pixado apagasse um pedaço da história e da memória daqueles que deixaram ali suas marcas. Segundo o autor, os pixadores andam pela cidade guiados pelas pixações (literalmente, orientando-se a partir de determinadas pixações em determinados lugares e usando-as como pontos de referência) e pela possibilidade de pixar. Para eles, cada inscrição tem algo da história e da geografia da cidade, além da história da própria pixação. Para preservar sua memória, então, os pixadores trocam “folhinhas”, que são folhas de papel em que os pixadores reproduzem a caneta as inscrições que realizam nos muros (PEREIRA, 2005). Cada pixador possui um acervo dessas folhinhas, que é tanto mais valorizado quanto mais acumula exemplares de pixadores antigos, que já não estão mais em atividade ou que já faleceram. Outro acervo feito pelos pixadores para manter sua história é o das reportagens sobre pixação, especialmente as que trazem fotografias, nas quais os pixadores tentam identificar as suas inscrições e as de seu grupo. 40 Em entrevista dada no programa Altas Horas, em 2009, Djan Ivson comenta que a pixação é um modo encontrado pelo jovem da periferia para ser respeitado e admirado. Perguntado pelo apresentador do programa de onde viria esse respeito e admiração, ele responde que, por se sentirem excluídos da sociedade, esses jovens buscam um espaço de valorização entre eles mesmos. O point é a realização desse lugar. É nos points que os pixadores se encontram para trocar experiências, assinaturas e materiais de coleção, além de marcar rolês, festas, etc. Enfim, o point é o local de encontro e sociabilidade entre os pixadores. Ali, como em todos os lugares onde estiverem juntos, eles têm um código a seguir, resumido pela sigla LHP: Lealdade, Humildade, Procedimento. Lealdade às pessoas que compõem o grupo, mas não obrigações. Humildade como comedimento e não como subserviência. E procedimento como operação inteligente do código, usando-o de acordo com o contexto. Nesse sentido, deve-se ser humilde desde que não se sofra uma humilhação, devese ser leal desde que não haja traições. (FRANCO, 2009, p. 82) Fica claro, então, que os pixadores estabelecem entre si uma forte rede de relacionamento e pertencimento, que parece realizar aquilo que Bourdieu (1986) designa como “capital social”, que são os recursos possuídos por um indivíduo a partir de seu pertencimento a um grupo e que o dotam de um determinado “crédito” social. O capital social é acumulável, sendo tanto maior quanto maior for a rede de relações que esse indivíduo consegue estabelecer. Putnam (1995) observa, no entanto, que não se trata apenas da propriedade de um indivíduo ou de sua capacidade para estabelecer essas conexões sociais, mas, também, do estabelecimento de vínculos de confiança, respeito e reciprocidade a partir das interações cotidianas, fazendo com que as ações desse indivíduo se direcionem cooperativamente para o alcance de objetivos comuns ao grupo (ainda que não correspondam ao interesse geral da comunidade). Além do reconhecimento pessoal, busca-se pelo reconhecimento do grupo. Por isso, atualmente, os pixadores paulistanos colocam seus próprios nomes, apelidos ou iniciais subalternos ao nome do grupo, sempre em evidência. Fazer parte de um grupo com “ibope” credencia o pixador dentro daquele universo, investindo-o com diversas qualidades que são admiradas ali, tornando-o digno de respeito. É com base nessas relações que os primeiros eventos que vêm embaralhando e colocando em tensão os mundos da pixação e da arte desde 2008 se formaram. É o que será visto a seguir. 41 3. CAPTURAS E RESISTÊNCIAS: RELAÇÕES ENTRE GRAFITE, PIXAÇÃO E ARTE Como foi visto no capítulo anterior, há um desencontro e uma tensão constantes entre as ações de planejamento urbano, que visam a minimizar aquilo que não corresponde a um determinado ideal de cidade, e as formas cotidianas diversas de uso, apropriação e ressignificação dos seus espaços. Assim, as práticas de intervenção gráfica urbana (entre outras tantas práticas desenvolvidas nesses espaços), por se desenvolverem de forma astuta e furtiva pela cidade, burlando as leis que as proíbem e conseguindo escapar continuamente ao cerceamento que estas buscam lhes impor, criam uma demanda por outras ações que possam controla-las. Quando a proibição, a marginalização ou a negligência não se mostram capazes de conter o avanço de tais práticas, a neutralização aparece como uma solução interessante. “Se não pode com eles, junte-se a eles” é a máxima que parece se adequar perfeitamente aos esforços para tentar levar ao âmbito consensual das instituições as expressões que se desenvolvem em sua contracorrente. Nesse percurso da margem ao centro, manifestações até então contra-hegemônicas correm o risco de perder muito desse caráter, o que, para Mouffe (2007), gera uma descrença em sua potência contestadora, já que “qualquer forma de crítica é automaticamente recuperada e neutralizada pelo capitalismo 30” (MOUFFE, 2007, p.1). Uma dessas ações é a criação de espaços e projetos que visam a conformar as intervenções a determinados lugares e situações que implicam em determinados modos de fazer, como parece ser o caso de alguns projetos que buscam organizar os grafiteiros e sua produção, visando a torná-la produtiva e/ou rentável31. Outro exemplo, que também procura capitalizar essas formas de expressão tipicamente urbanas, são as tentativas de cooptá-la para 30 Tradução livre do original: “any form of critique is automatically recuperated and neutralized by capitalism”. Além da instituição Cidade Escola Aprendiz, em São Paulo, apresentada no capítulo anterior, também é possível destacar como exemplo desse caso o Projeto Guernica, lançado em 2010, em Belo Horizonte, pelo então prefeito Célio de Castro, e que tinha como objetivo inibir a ação não-autorizada dos pixadores e grafiteiros na cidade encontrando alternativas para sua atuação no espaço urbano. Em seu projeto inicial, o Guernica previa uma ampliação do debate com os próprios autores das intervenções, junto a profissionais das mais diversas áreas, a fim de que as motivações pudessem ser explicitadas e que eles pudessem refletir sobre elas, em um trabalho sistemático e contínuo. Previa, ainda, a formação de parcerias com diversos órgãos públicos e privados, inclusive os clubes de futebol da cidade (a pixação belo-horizontina sempre teve estreita relação com as torcidas organizadas de futebol), e, ainda, a realização de oficinas de cultura, arte e história. Mais informações sobre o projeto original em: <http://www.pt-pr.org.br/pt_pag/PAG%202004/CULTURA/Projeto%20Guernica%20%20Belo%20Horizonte.PDF>. Acesso em 28/08/2014. Informações atuais sobre o Projeto no site da PBH: <portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/contents.do?evento=conteudo&idConteudo=19324&chPlc=19324&viewbusca=. Acesso em 28/08/2014. 31 42 o universo da arte institucionalizada, configurando estratégias despotencializantes de poder. Contudo, nem sempre essas tentativas de cooptação para neutralização encontram alvos passivos, e as relações que aí se estabelecem se tornam muito mais tensas e complexas. Neste capítulo, é feita uma construção teórica que ajuda a compreender de forma mais ampla e profunda alguns dos aspectos que podem caracterizar tais relações, e que, assim, vai embasar o olhar para o universo da pixação e, particularmente, para a sua relação com a arte a partir dos seis eventos abordados. 3.1. Formas de dominar e modos de resistir Certeau (1998), ao falar da criação de locais apropriados para determinadas práticas e de como tanto as estratégias que os produzem e determinam, como as táticas que os utilizam e alteram habitam esses mesmos lugares, diz de duas formas de partilhar o comum, aproximando-se do pensamento de Rancière sobre a partilha do sensível. Rancière (1996) descreve duas formas de estar-junto em sociedade: a primeira, de acordo com os lugares e funções que foram atribuídos aos corpos em sua divisão na sociedade a partir de suas propriedades e capacidades – a “partilha policial do sensível”; e a segunda, que atualiza a igualdade entre todo e qualquer ser falante, suspendendo o consenso e a pretensa harmonia constituída na ordem policial – a “partilha política do sensível”. A diferença entre estratégias e táticas está, também, no tipo de operação de partilha que realizam: as estratégias são definidas pela lei do lugar, assim como a partilha policial do sensível, dizendo quem pode fazer o que, em que momento e de que forma; enquanto as táticas não obedecem a essas definições, criando novas formas de habitar o mundo, jogando com as imposições estratégicas, transformando espaços, assim como a partilha política do sensível, possibilitada pelo dissenso32. Assim como, para Certeau (1998), as táticas não possuem um terreno próprio e se desenvolvem no âmbito das estratégias, para Rancière (1996; 2011), a política também precisa construir sua cena a partir da ordem policial. “Não há lugar fora da polícia, mas há modos conflitantes de fazer coisas com os lugares que esses modos alocam: reordenando-os, reformando-os ou desdobrando-os” (RANCIÈRE, 2011, p.6). A polícia e a política 32 Para Rancière (1996; 2009a; 2009b; 2010), o dissenso é aquilo que se produz a partir do questionamento de uma ordem vigente e da abertura de espaços para expressão e visibilidade por aqueles que não eram contados como partes de um comum. A instauração de uma cena de dissenso é, assim, fundamental à realização da política. Isso será retomado mais detalhadamente no próximo capítulo. 43 expressariam, assim, a coexistência conflituosa de “dois mundos”: um que impõe, pelo consenso, uma lógica da invisibilidade e da concordância, e outro que aparece para tornar visível o que antes não era para ampliar o horizonte de possíveis e para reordenar e renomear espaços, assim como aquilo que neles se dá a ver, a fazer e a escutar (MARQUES, 2013). É necessário apenas fazer uma ressalva sobre a aproximação das ideias de táticas e partilha política do sensível: no conceito de Certeau, as táticas não se fundamentam, necessariamente, em uma postura que se opõe ou contesta as estratégias, mas que não as obedecem por responderem ao fluxo próprio e não regulado do cotidiano. Já em Rancière, a política nasce sempre de uma contestação da ordem policial e da contagem social que ela efetua, ainda que tal contestação se manifeste em ações cotidianas, pequenas, silenciosas. Essas formas cotidianas e silenciosas de contestação de uma ordem dominante remetem ao conceito de “infrapolítica” de James C. Scott (1990). Para o autor, para que a ordem e a hierarquia dominantes se mantenham, é preciso que haja continuamente reforços e reajustes do poder, muitas vezes baseados em sua encenação pública. Fazer com que as hierarquias sejam constantemente visíveis é, assim, uma das grandes ocupações das elites, que o fazem através de rituais de celebração, de julgamento, de punição, etc., o que constitui, para Scott (1990), uma dimensão dramatúrgica fundamental ao exercício do poder. Para o autor, tanto quanto o poder e a força, importam a aparência do poder e da força, que serve não apenas para manter os subordinados nessa condição, mas para alimentar a própria elite. Outra ação de reforço que ocorre paralelamente a esses rituais de encenação pública do poder, segundo Scott (1990) é a inferiorização e a estigmatização das ações e movimentos sociais surgidos das classes subordinadas e a negação de sua capacidade para empreender tais ações autonomamente. Nesses casos, “rebeldes ou revolucionários são rotulados como bandidos, criminosos, arruaceiros, de modo a desviar a atenção da sociedade de suas verdadeiras demandas políticas” (SCOTT, 1990, p.55) e manter, assim, a aparência de unanimidade e coesão sociais. Dessa forma, há um esforço para manter a cena pública – que Scott denomina como “transcrição pública” (public transcript) – restrita à encenação e manutenção da ordem dominante. Nessa cena, cabem aos subordinados a concordância e a obediência, e aqueles que não correspondem a tal ordem são publicamente punidos para que sirvam como exemplo. O que ocorre, então, segundo o autor, é o desenvolvimento, pelos subordinados, de uma “cultura dupla”: uma oficial, pública, em que reinam os eufemismos, a dissimulação da obediência e da concordância, a monotonia e os silêncios; e outra não oficial, 44 oculta, que se desenvolve sob a primeira, mas com linguagem, história, e conhecimento próprios das carências e falhas que não se tornam públicas em função daquela. No âmbito da “transcrição oculta”, os subordinados podem empreender suas modestas, silenciosas e cotidianas ações de contestação e desrespeito à ordem vigente, que constituem um código próprio e oculto que permite pequenos avanços e resistências no território das elites. Segundo Scott (1990), é importante que os questionamentos privados e as pequenas ações ocultas não sejam vistos como algo abstrato e inofensivo, sendo preciso reconhecê-los como táticas empreendidas dentro das possibilidades dos subordinados para minimizarem os efeitos das apropriações e explorações materiais e/ou simbólicas feitas pelos dominantes. São, assim, ações concretas que se caracterizam como “infrapolíticas”, um “âmbito discreto da luta política” (SCOTT, 1990, p.183) que ocorre cotidianamente aquém da esfera dos grandes conflitos e protestos, mas que serve como base a ações políticas maiores, provendo “grande parte do alicerce cultural e estrutural da ação política mais visível em que a nossa atenção tem sido geralmente focada” (SCOTT, 1990, p.184). Assim como as táticas se desenvolvem no terreno das estratégias sem escapar delas e a política irrompe dentro da ordem policial, as transcrições ocultas também se dão de maneira furtiva no seio da transcrição pública e, ainda que não consigam destruir ou reverter a ordem da dominação, elas conseguem causar pequenas desordens, minimizando seus efeitos simbólicos e materiais sobre os subalternos e caracterizando-se, assim, como ações e discursos de resistência. Os conceitos de táticas, política e infrapolíticas podem ser relacionados, ainda, aos vaga-lumes de Didi-Huberman (2011). O autor, para falar da sobrevivência dos vaga-lumes como metáfora para os gestos fugazes de resistência aos holofotes da grande mídia e dos regimes ditatoriais, parte de cartas de Pier Paolo Pasolini, em que o cineasta narra suas experiências juvenis e, posteriormente, adultas durante a evolução da sociedade italiana nos períodos durante e pós 2ª Guerra Mundial. Nos primeiros escritos, em 1941, Pasolini narra poeticamente a contemplação de uma nuvem de vaga-lumes movendo-se de forma atrativa pela noite – uma “beleza inesperada, no entanto, tão modesta” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.45) – ao mesmo tempo em que canhões de luzes dos holofotes fascistas cortam a escuridão do céu, “muito distantes, muito ferozes, olhos mecânicos aos quais era impossível escapar” (PASOLINI apud DIDI-HUBERMAN, p.21). É criada, então, uma figura de linguagem com essas luzes de origens e intensidades tão diferentes, como se as fracas e intermitentes luzes dos vaga-lumes representassem uma resistência, um contraponto às intensas e opressoras 45 luzes dos holofotes. Se as práticas do grafite e da pixação, assim como de outras formas de intervir nos espaços da cidade, podem ser relacionadas ao conceito de táticas, também o podem ser às luzes dos vaga-lumes, que piscam pequenas, fracas, mas constantes, apesar das grandes luzes institucionais. Pois o que são as intervenções gráficas urbanas senão formas encontradas pelos sujeitos comuns para se movimentarem, jogarem e se expressarem na cidade a partir e apesar dos limites que lhe são impostos por um projeto urbanístico que se esforça por construir e manter uma “cidade-conceito” (CERTEAU, 1998), que parece tentar remeter a um cartão-postal? Retomando os escritos de Pasolini, Didi-Huberman (2011) mostra, então, que em 1975 (ano em que foi assassinado), o cineasta se apresenta desmotivado e negativista em relação ao novo contexto sociopolítico desencadeado pelo capitalismo. Para ele, o fascismo do período da guerra foi substituído por um novo e pior fascismo: o poder do consumo. Enquanto o “fascismo fascista” se impunha sobre os comportamentos do povo, mas não sobre sua mente, o neofascismo teria capturado até mesmo as identidades, causas e motivações que resistiram àquele primeiro período. Nessa carta, Pasolini decreta o desaparecimento dos vaga-lumes, ou seja, da resistência. Didi-Huberman (2011), nesse sentido, aponta para o fato de que os vagalumes são tanto mais visíveis quanto mais escura for a noite em que vagueiam. Se uma luz forte é lançada sobre eles, seu fraco brilho se torna imperceptível: Não foi na noite que os vaga-lumes desapareceram, com efeito. Quando a noite é mais profunda, somos capazes de captar o mínimo clarão, e é a própria expiração da luz que nos é ainda mais visível em seu rastro, ainda que tênue. Não, os vaga-lumes desapareceram na ofuscante claridade dos “ferozes” projetores: projetores dos mirantes, dos shows políticos, dos estádios de futebol, dos palcos de televisão. (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.30) Essa é, então, a via encontrada pelo poder institucional para retirar das intervenções gráficas urbanas a sua potência de contestação, transgressão e afirmação de diferença: lançar sobre elas a grande luz do consentimento e da aprovação, capturando-as. 3.2. Na rua, no museu, no mercado: a estreita relação entre o grafite e o sistema das artes 46 Esse movimento de captura pode ser percebido, especialmente, em relação ao grafite, que teve sua história, desde o surgimento, marcada pelas tentativas de absorção pelo mundo artístico. De acordo com Franco (2009), já em 1972, foi criado o AGA - American Graffiti Artist, um clube fundado pelo sociólogo Hugo Martinez, que pretendia organizar a produção dos grafiteiros que selecionava a fim de tornar possível sua passagem das margens urbanas ao mundo da arte. Quando o AGA se dissolveu, em 1974, surgiu o NOGA - Nation Graffiti Artist, que teve autorização da prefeitura de Nova York para ocupar um galpão que receberia qualquer grafiteiro com interesse em passar seu trabalho das ruas para as telas. Assim, podese perceber que o anseio de levar o grafite às galerias de arte como forma de legitimá-lo vinha principalmente de fora, e não dos grafiteiros. Alguns deles, contudo, acolheram o convite do mundo artístico e foram por ele legitimados como artistas, o que sempre gerou conflitos entre os grafiteiros. Dois dos principais exemplos são Jean-Michel Basquiat (que, ao ganhar reconhecimento artístico, se afastou muito do grafite, aproximando-se mais da arte contemporânea, através de Andy Warhol, com quem trabalhou) e Keith Haring. No Brasil, aonde o grafite já chegou pelas vias da arte, com Alex Vallauri, a Bienal de São Paulo desempenhou um papel fundamental para a consolidação da expressão como manifestação artística. Na 17ª edição, em 1983, o evento apresentou obras de Kenny Scharf e Keith Haring e, a partir daí, como já foi visto, a distinção entre grafite e pixação foi essencial para a demarcação de que tipo de expressão seria aceita e assimilada pela arte e pelo público. Na edição seguinte, em 1985, a curadoria da Bienal levou para a galeria a obra “Festa na Casa da Rainha do Frango Assado”, de Alex Vallauri, que já tinha exposto obras em três outras edições do evento, em outras plataformas e linguagens, sem relação com seu trabalho nas ruas. De lá para cá, o grafite brasileiro têm alcançado cada vez mais sucesso no mercado artístico, sendo que vários artistas, como Os Gêmeos, Speto e Nunca, por exemplo, são representados por galerias de renome, que os inserem em uma rede de contatos e relações que permite que seus trabalhos sejam levados para fora e reconhecidos no mundo todo, alcançando valores de mercado bastante altos. Além do mercado artístico, a linguagem urbana, colorida e moderna do grafite faz com que ele seja muito demandado comercialmente, especialmente por marcas que buscam atingir o público jovem. Os Gêmeos, por exemplo, já criaram ilustrações que se tornaram estampas para marcas como Nike e Louis Vuitton, 47 enquanto Speto criou uma série de ilustrações para a campanha da Coca-Cola para a Copa do Mundo Fifa 2014. Em entrevista a Franco (2009), Baixo Ribeiro, proprietário da galeria Choque Cultural, em São Paulo (um dos alvos das invasões dos pixadores, em 2008, entre os eventos analisados à frente),se mostra indiferente à manutenção de um trabalho na rua pelos grafiteiros que representa e diz que os incentiva a produzir tendo em mente quem pode adquirir a obra. Nessa lógica, quanto maior o quadro, maior tem que ser a sala que vai abrigá-lo, ou seja, maior será o poder aquisitivo daquele comprador. Já os grafiteiros esperam que seus colegas que alcançaram o mercado da arte permaneçam atuantes na cidade e assumam uma postura crítica em relação ao sistema mercantil da arte e àqueles que são absorvidos por ele. Essa postura permite que a rua continue a ser o ambiente por excelência para o desenvolvimento do grafite, além de fazer com que ele continue aberto a todos, não se ocultando do público que não frequenta museus e galerias. Dessa forma, observa-se que o reconhecimento no circuito artístico nem sempre corresponde ao reconhecimento na rua, entre os próprios grafiteiros; e que também não se trata de rechaçar àqueles que obtiveram espaço no sistema das artes, mas de buscar garantir que o trânsito do grafite entre esses dois mundos – rua e galeria – se dê a partir de uma lógica própria. Mas o que se percebe, a partir do que é mostrado por Franco (2009), é que a presença do grafite no âmbito legitimado da arte se dá por uma via predominantemente comercial: é feito um investimento que visa ao lucro e que, muitas vezes, ignora a trajetória daqueles artistas na cidade. Por sua vez, os grafiteiros veem nas galerias uma possibilidade de se sustentarem através de sua arte, não precisando mais manter a atividade do grafite relegada ao tempo livre deixado pelo trabalho convencional. É, assim, também para eles, uma oportunidade econômica. Para Amado (2005), no entanto, tudo se altera quando uma pintura é feita sob encomenda: o tempo para produção, o humor que coloca os grafiteiros em ação, a disposição da sociedade para com a obra, a restrição da liberdade criativa e de expressão. Seria, então, uma pintura feita por grafiteiros, com técnicas do grafite, mas não um grafite. [...] o mainstream vê numa expressão relativamente marginalizada uma qualidade latente para a promoção de seu leque de interesses – como o próprio apelo de uma transgressão potencialmente manipulável – e desenvolve mecanismos para a absorver e explorar – despindo-a neste processo de sua essência. Se o procedimento não chega a ser de todo novo, a dimensão simbólica agora envolvida pontua tragicamente a lógica inexorável 48 do capital, que tudo engole. Que venha, pois, o griffiti – a “subversão com grife”. (AMADO, 200533) Eis a grande luz do poder lançada sobre os pequenos lampejos da intervenção gráfica urbana, condenada enquanto não autorizada, elevada ao status de arte quando consentida institucionalmente. Aí pode ser identificado um movimento que Agamben (2007) chama de consagração, que significa o ato de separar alguma coisa da esfera da experiência. Quando um grafite se torna uma obra a ser adquirida em uma galeria, a possibilidade de profanação – que, para Agamben, é o movimento contrário, que retira algo da esfera do sagrado (aqui, as galerias de arte e a própria cidade institucionalizada) e o traz de volta, restabelecendo suas possibilidades de uso – é diminuída, já que aquilo que era tido como um encontro entre a subversão, a arte e a vida urbana se torna algo museificado e separado, portanto, da experiência cotidiana. Se com o grafite essa relação com a arte e o mercado se dá de forma mais natural e assimilada, com a pixação o processo ocorre de modo diverso e mostra que, ainda que haja esforços para a cooptação, as brechas nos movimentos engendrados pelas instituições de poder acabam por aparecer e se tornar terreno fértil para a negociação por parte dos pixadores. 3.3. Confrontação, assimilação, subversão: a pixação abre espaço no mundo da arte Na pixação, a relação com o universo da arte tem se dado de modo bem distinto, o que pode ser explicado pela naturalização da visão da expressão como crime de vandalismo. A pixação nunca havia sido vista como algo a ser assimilado ou absorvido pela arte e a breve apropriação pela publicidade na época das primeiras inscrições, como aconteceu com “Celacanto provoca maremoto” e “Lerfá Mú”, como mostrado no capítulo anterior, cessou assim que a curiosidade foi substituída pelo repúdio com a intensa disseminação das inscrições. Por muito tempo, parece não ter havido, tampouco, uma demanda dos pixadores por uma entrada nesses ambientes consensuais da arte ou da publicidade. Dessa forma, o pixo vinha ocupando um lugar e uma função diferentes nesse processo, como aquilo que deveria ser combatido a partir da arte. Ensinar crianças a grafitarem seria, assim, um modo de afastálas da pixação. Grafitar um muro seria um meio de impedir que ele seja pixado. Incentivar 33 Arquivo eletrônico sem numeração de página. 49 jovens a grafitarem e promover meios para que eles possam viver desse trabalho seria uma forma de manter sua atuação sob controle. Em 2008, contudo, iniciou-se um processo que desencadeou importantes mudanças nesse cenário. Em junho daquele ano, dezenas de jovens munidos de latas de spray invadiram e pixaram o Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo 34. A invasão foi coordenada por Rafael Augustaitiz, pixador e estudante do Centro, que propunha a ação como a apresentação do seu trabalho de conclusão de curso, que teria como objetivo questionar e discutir o conceito de arte e seus limites. Ainda em 2008, invasões semelhantes foram promovidas: em setembro, na Galeria Choque Cultural, que mantém a proposta de abrigar obras de artistas urbanos e do underground35; e em outubro, na 28ª Bienal de São Paulo, que mantinha o 2º andar do prédio do evento completamente em branco propositalmente 36. Nos três eventos, três espaços destinados à arte, seja ao seu estudo, apreciação ou comercialização. Em todas as vezes, o discurso dos pixadores foi o de questionamento daqueles espaços e de suas funções. “É tudo nosso37”, brada Augustaitiz, para quem a pixação é uma forma vanguardista de arte para a qual o próprio sistema das artes ainda não está preparado. De fato, nos três casos, as ações foram entendidas, pelas instituições que foram alvos delas, como “vandalismo”, “terrorismo”, “crime” 38. Imprensa e polícia foram acionadas. Os vestígios das intervenções foram apagados nos dias seguintes, o funcionamento dos locais normalizado, a segurança reforçada. Contudo, as marcas simbólicas dessas ações não puderam ser tão facilmente extintas, e elas deram início a uma série de eventos que entrelaçaram de modo polêmico e controverso a pixação ao mundo da arte. Esses três eventos configuram, assim, o início de um processo importante de mudança na visão da pixação e dos pixadores por parte das instituições artísticas, da imprensa e do público. Tenham eles servido para aumentar o repúdio à pixação, para uns, ou para efetivamente transformar os modos de apreensão da prática, para outros, é importante perceber que nenhuma dessas esferas pôde ficar indiferente ao que acontecia. Pela primeira 34 CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 35 MERCIER, Daniela. Cerca de 30 pichadores invadem galeria de arte danificam obras expostas. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 09 de setembro de 2008. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0909200835.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 36 FOLHA ONLINE. Grupo invade a Bienal e picha o segundo andar. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 26 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/460634grupo-invade-a-bienal-e-picha-o-segundo-andar.shtml>. Último acesso em 21/01/2015. 37 Fala de Rafael Augustaitiz extraída de matéria indicada na nota anterior. 38 Termos extraídos das matérias da Folha de São Paulo sobre os eventos, indicadas nas quatro notas anteriores. 50 vez, talvez, os pixadores se expunham coletivamente, atuando na frente de todos, e não mais na madrugada. As pessoas foram confrontadas com o testemunho da produção daquilo que elas viam aparecer e desaparecer das ruas como mágica, da noite para o dia, e a intensidade daquelas ações performáticas não pode mais ser deixada no escuro. Samuel Chambers (2013) destaca como a dimensão do dizível não pode ser desvinculada da dimensão do visível no pensamento político de Rancière, algo que também remete à importância do conceito de aparência em Hannah Arendt (2007; 2000). A autora afirma que o espaço da aparência existe quando (e somente enquanto) os indivíduos se reúnem discursiva e ativamente (duas dimensões inseparáveis), algo que precede qualquer organização formal da esfera pública. Para Arendt, ainda que um indivíduo tenha, isoladamente, grande força, é nesse espaço de aparência, na união com outros indivíduos, que ele pode, junto com seus pares, possuir poder. Isolando-se, esse indivíduo renuncia a esse poder e passa a ser submetido a ele. Como já foi visto, a noção da aparência na relação com o poder também é importante para Scott (1990). Se, de um lado, a criação da imagem de um tecido social coeso e forte ajuda a manter o poder das elites dominantes, de outro, a apresentação de certa organização dos subordinados pode desestabilizar essa ordem. Uma aglomeração de pessoas sem o consentimento ou o controle dos seus superiores tem importância simbólica não só por aquilo que elas dizem, mas por seu próprio apelo visual. Uma multidão que se une e se organiza por si só, sem a liderança reconhecida de seus dominantes, é uma ameaça ao poder não só por aquilo que ela é, mas, primeiramente, por aquilo que ela aparenta ser. No mundo da pixação, o que aparece é o próprio pixo, a marca, ilegível para muitos. Os autores não aparecem, e, quando aparecem, são mostrados isoladamente ou em pequenos grupos e identificados como criminosos, vagabundos, enfim, não são sujeitos que mereçam ter suas falas consideradas como discurso, o que é um requisito para que um sujeito seja contado como parte da sociedade (RANCIÈRE, 1996; CHAMBERS, 2013). Contudo, quando a imagem do pixo ganha corpos, rostos, gestos – e são muitos – a aglomeração em si ameaça a ordem daqueles espaços, pois agrega aqueles que eram vistos como desagregados39. Para 39 Scott (1990) observa que relações de dominação são geralmente descritas como unicamente verticais, ou seja, relações diretas entre dominante e dominado, ignorando as possibilidades de relações horizontais entre dominados, ou seja, as relações sociais só podem ser entendidas hierarquicamente. Onde não há hierarquia ou autoridade (reconhecida pelos dominantes – pode-se adicionar, pois entre os dominados há níveis hierárquicos que não são compreendidos ou reconhecidos pelos dominantes), não há ordenação de relações. Ainda que haja um reconhecimento tácito dessas relações, elas não têm lugar na partilha oficial dos lugares e funções sociais. 51 Scott (1990), essas aglomerações promovidas sem o consentimento ou a supervisão de representantes da ordem dominante são vistas como mostras públicas de insubordinação e, como tal, são desaprovadas (e, muitas vezes, proibidas e criminalizadas), pois representam uma potencial perda do controle desses sobre aqueles. Nos três primeiros eventos citados, isso é visto claramente: aglomerações de pixadores invadindo espaços oficiais da arte, totalmente fora do controle de qualquer instituição ou estrutura de poder. Nos três eventos seguintes, parece haver a tentativa de inserir a pixação no ritual desses espaços e, assim, mantê-los sob controle. Em julho de 2009, o pixador Djan Ivson, do grupo Cripta, de São Paulo, foi convidado pela Fundação Cartier, em Paris, para participar da exposição Né dans la rue - Graffiti (Nascido nas Ruas - Grafite), que propunha realizar uma retrospectiva mundial sobre a expressão40. Lá, Ivson foi recebido como artista, recebeu cachê e teve liberdade para fazer seu pixo na fachada e nas paredes do prédio que recebeu o evento. Para ele, o convite representou uma mudança no olhar do mundo artístico para a pixação. Já Hervé Chandès, diretor da Fundação Cartier, em entrevista à Folha de S. Paulo, declarou que “é difícil dizer se é arte ou não. O que é arte nos dias de hoje?41”. A pergunta de Chandès se encontra com aquilo que motivou as invasões regidas por Rafael Augustaitiz em 2008: o questionamento sobre os limites da arte. Para o diretor da Fundação, importava incluir aquela expressão “única” e “selvagem” no contexto do grafite. De qualquer forma, foi a primeira vez que um pixador foi convidado a participar de um evento como esse, e é possível que a ebulição das invasões do ano anterior tenha cumprido sua parte para promover tal relação. Mas, ainda que Djan Ivson tenha chegado a Paris como artista, ele saiu do Brasil como pixador. Teve, inclusive, dificuldades para conseguir o visto para viajar, pois tinha pendências com a justiça brasileira em função de processos por suas pixações. Essa é uma das muitas controvérsias presentes neste caso, em que uma mesma forma de expressão leva um indivíduo a ser reconhecido como artista e a ser convidado para uma mostra internacional, ao mesmo tempo em que o leva a ser visto como contraventor e vândalo em dívida judicial com sua cidade. 40 EZABELLA, Fernanda. Pichadores paulistanos são destaque em retrospectiva na França. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 04 de julho de 2009. Ilustrada. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u590688.shtml>. Último acesso em 21/01/2014. 41 Fala extraída da matéria indicada na nota anterior. 52 No ano seguinte, a história da relação entre pixação e arte ganha um novo capítulo e, dessa vez, o processo se deu de maneira bastante diferente. Em abril de 2010, Djan Ivson e Rafael Augustaitiz (que haviam protagonizado as invasões de 2008), juntamente como o fotógrafo Adriano Choque, foram convidados a participar da 29ª Bienal de São Paulo. Desde que a participação dos pixadores foi anunciada, houve polêmica: alguns acharam que o espaço deveria ser cedido a outros artistas; outros, que o convite significaria o início da domesticação do pixo; outros, ainda, disseram que os pixadores não deveriam aceitar um convite daqueles que os rechaçaram em 2008 42. Moacir dos Anjos, curador da Bienal de 2010, em entrevista à Folha de S. Paulo, disse que o convite não se tratava de um pedido de desculpas, nem de uma tentativa de cooptação, mas de uma (pretensa) abertura ao diálogo para a construção de um formato de participação que mantivesse a integridade tanto da pixação, quanto da Bienal 43. A participação dos pixadores previa, assim, a exibição de materiais fotográficos e audiovisuais, e das “folhinhas” com as assinaturas de pixadores e que são colecionadas por eles. No entanto, durante a Bienal, duas obras de outros artistas foram pixadas e a polêmica discussão sobre os limites entre arte, política e vandalismo foi novamente trazida à cena, ainda mais intensa. As tensões se ampliam e ganham contornos internacionais quando, em 2012, convidados pelos curadores da Bienal de Berlim, os pixadores Djan Ivson, Biscoito, William e R.C. foram à Alemanha para o que deveria ser um workshop de pixação. Contudo, desejando mostrar que a pixação só pode ser pixação em seu contexto de transgressão (de limites espaciais, físicos, legais, etc.), os pixadores escalaram as paredes da igreja histórica destinada à realização do evento, subindo acima da área preparada para o mesmo, e pixaram as paredes internas da igreja, entrando em conflito com os curadores do evento44. Para Djan, uma demonstração real da pixação paulista. Para os curadores, uma “irresponsabilidade” 45. 42 MENA, Fernanda. “Pixo” na Bienal de São Paulo provoca racha nas artes. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/721033pixo-na-bienal-de-sao-paulo-provoca-racha-nas-artes.shtml>. Último acesso em 21/01/2015. 43 MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questiona-limites-que-separam-arte-e-politicadiz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 21/01/2015. 44 WAINER, João. Paulista “picha” curador da Bienal de Berlim. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/48530-paulista-pichacurador-da-bienal-de-berlim.shtml>. Último acesso em 21/01/2015. 45 LUZ, Amanda. Para curador alemão, ato de pichadores brasileiros foi irresponsabilidade. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1105215-para-curador-alemao-ato-de-pichadores-brasileirosfoi-irresponsabilidade.shtml>. Último acesso em 21/01/2015. 53 A breve apresentação desses eventos, que será feita de forma mais detalhada na análise, já deixa ver um pouco das tensões e conflitos que marcam todo o processo de entrelaçamento dos universos da pixação e da arte, assim como a transformação de alguns dos elementos envolvidos naqueles contextos. Do lado dos pixadores, as ações vão da articulação de ataques à subversão de espaços concedidos. Por parte das instituições, seu papel vai se transformando: de “vítimas” dos ataques, à espaços abertos ao diálogo, e retornando ao alvo das subversões. A mídia, por sua vez, concede cada vez mais espaço para cobrir tais eventos, investindo em matérias cada vez maiores e mais detalhadas, realizando entrevistas, fazendo retrospectivas dos eventos para situar o leitor, enfim, buscando mostrar um panorama mais amplo daqueles contextos. Mas a grande virada nesse cenário enunciativo se dá no modo como os próprios pixadores começam a abrir mais espaço para se expressarem, nomeando suas ações, apresentando suas motivações e articulando, portanto, seu próprio discurso. Essa mudança pode ser vista, especialmente, a partir da participação de Djan Ivson, como convidado, no evento promovido pela Fundação Cartier, em 2009. Esse convite parece embaralhar a percepção sobre os pixadores e os lugares a serem ocupados por suas intervenções. É a partir desse cenário marcado por desentendimentos, transgressões e tensões que a pixação é aqui apresentada como uma intervenção investida de potência para transformar sujeitos e contextos. 3.4. A pixação como imagem e processo políticos e de resistência Os convites aos pixadores que invadiram a Bienal de 2008 para participarem oficialmente da de 2010, e para o oferecimento de um workshop na Bienal de Berlim, em 2012, parecem refletir um desconhecimento ou ignorância do que vinha acontecendo com o movimento, e que formava o contexto da invasão na edição de 2008 (assim como dos eventos que a precederam). Os curadores portaram-se como o mestre que, de acordo com Rancière (2010), acredita que transmite seu conhecimento a um aluno ignorante e dependente, sempre estando um passo a frente dele. Acreditaram estar concedendo aos pixadores aquilo que lhes faltava e pelo que eles ansiavam, tornando-os aptos e dando-lhes as condições necessárias para que estivessem ali. Não entenderam, contudo, que havia um outro processo em questão: antes da reivindicação do reconhecimento oficial da pixação como arte estava o 54 questionamento dos espaços oficiais da arte e dos seus modos de funcionamento, além da reafirmação de uma independência desses modos de fazer e aparecer institucionalizados. Ao tentarem suprimir uma distância, as instituições de arte e seus curadores a colocaram em evidência. Por buscarem incluir a pixação nas lógicas artísticas consensuais, esses convites aparecem como uma tentativa de obscurecê-la, extraindo dela seu caráter de conflito, luta e esforço antagônico, como vêm ocorrendo, em parte, com o grafite. Como a luz lançada sobre os vaga-lumes para ofuscá-los. Mas, quando os pixadores não se reconhecem naquele espaço, eles o subvertem e retornam à escuridão, pois é nela que suas luzes são mais vistas e mais capazes de iluminar – ainda que precariamente e por pouco tempo – os pontos onde se acendem. Dentro ou fora dos espaços institucionais, parece que os pixadores continuam a mover-se de forma emancipada daqueles lugares que lhe são impostos na partilha policial do sensível. E, aí, é possível perceber a inserção da pixação no que Rancière (2009; 2011) designa como “regime estético da arte”. São três os regimes da arte (ou da imagem) identificados pelo autor: ético, representativo (ou poético) e estético. Tal distinção não se dá a partir dos meios técnicos de produção da obra, nem de períodos históricos determinados, mas sim da tentativa de compreender a imagem a partir das complexas redes de relações e articulações que a perpassam. Segundo Ramos (2012), para que seja possível compreender o pensamento de Rancière sobre a arte e seus regimes, é preciso atentar para dois pontos fundamentais: primeiro, que há uma alteridade da imagem que precisa ser levada em conta, ou seja, aquilo que lhe é exterior, que excede à sua visualidade (o visível e o não visível; o dito, o não dito e o indizível); e, segundo, que há um paradoxo inerente às imagens, que é o fato de que elas são, ao mesmo tempo, autônomas e partes de um fluxo imagético. Com tais apontamentos em mente, podem-se caracterizar brevemente os três regimes. No regime ético, estão as imagens que têm como objetivo instruir sobre certo modo de vida, como hábitos, moralidades e comportamentos, ou seja, que atuam na produção e fortalecimento de determinada partilha dos lugares sociais. No regime representativo ou poético, estão as imagens que operam em analogia com o sistema hierárquico da comunidade, seja no que se refere a quem produz a arte, para quem ela é produzida, ou a que temas são nela representados. Nesse regime, é a qualidade da representação que define o julgamento da qualidade da obra, ou seja, há uma relação importante com as técnicas e os modos de fazer. A passagem para o regime estético se dá com a quebra de tais hierarquias – de temas, de modos 55 de fazer, de quem produz, e para quem se produz. Nesse regime, o que define a obra de arte não são seus modos de fazer, ou os temas tratados, mas aquilo que nela há de sensível. Não se trata, assim, de uma recusa à figuração, mas sim dessa subversão das hierarquias, que coloca no centro temas cotidianos, ordinários, banais. É o regime onde a arte encontra seu paradoxo enquanto forma, ao mesmo tempo, autônoma e parte do que constitui o mundo: aí ela realiza as operações que a singularizam enquanto arte, mas, também, destrói essas barreiras para se fundir com as demais formas de vida (RANCIÈRE, 2009 e 2011; RAMOS, 2012). Para Rancière (2011), a imagem deve ser vista como uma interrupção que, ao ser apresentada, coloca em jogo as intenções e expectativas do artista junto com as do espectador, que realiza, também, um trabalho de produção de sentido sobre a imagem, não se limitando a desvendar ali um sentido que já estaria dado. Segundo Ramos (2012), “a imagem é um terceiro entre aquele que produziu a imagem e aquele que a olha. As interpretações e intenções que surgirem de ambas as partes são igualmente válidas” (RAMOS, 2012, p.106). O que caracteriza a grande diferença do regime estético para o representativo, então, é essa desvinculação entre uma intenção do artista e uma recepção do espectador, que abre todo um novo horizonte de relações entre o dizível e o visível. A partir daí, é possível identificar a pixação ao regime estético das artes. Ela não se dedica à representações figurativas da realidade, apresentando inscrições muitas vezes ilegíveis aos olhos menos acostumados (ou mais indispostos), e, dessa forma, não apresenta nenhuma relação de continuidade entre a produção e a recepção, ou seja, não há um direcionamento do pixador para o olhar do espectador a fim de que ele compreenda um sentido dado de antemão. Pelo contrário, pois a ruptura dessa relação começa na própria compreensão do pixador como um artista e daqueles que são com ela confrontados nas ruas como espectadores dessas imagens. É preciso lembrar que a recepção do pixo é constantemente atravessada pela questão legal que a conforma como crime de vandalismo, o que torna especialmente difícil o desvencilhamento da imagem daquilo que ela significa socialmente. Isso, também, é algo que situa o pixo no regime estético, pois, ainda que a imagem tenha sua força enquanto forma autônoma, ela está profundamente ligada aos modos de sua circulação social. Além da ausência de hierarquia de temas, formas e públicos, a pixação ainda cumpre o princípio básico do pensamento estético e político de Rancière ao suspender qualquer hierarquia sobre quem pode produzir as imagens, atestando, assim, a igualdade das 56 inteligências e das capacidades. Os pixadores são, em sua maioria, jovens vindos da periferia e dificilmente conseguem ter uma formação artística. O “ofício” do pixo é aprendido na prática, com quem começou antes. Tal origem do pixador influencia no próprio formato do pixo, explicando, por exemplo, o fato de a inscrição ser monocromática, já que, muitas vezes, não é possível dispor de recursos para comprar mais de uma lata de spray, que custa cerca de R$ 13,00. Além disso, os materiais precisam ser simples e fáceis de carregar – e até de descartar, caso haja o risco do flagrante. A inscrição é, na maioria das vezes, a mesma: o nome do grupo, as iniciais dos pixadores presentes, a região ou o bairro onde eles moram, escritos em um estilo desenvolvido pelo grupo e aprendido por quem entra nele. Uma intervenção proibida por lei e rechaçada pela maioria das pessoas precisa ser feita de maneira furtiva, com agilidade e ousadia, e os traços contêm tudo isso. A partir do que foi visto até aqui, é possível distinguir ao menos três momentos diferentes do pixo: na rua; na instituição, feito sem consentimento; e na instituição, feito com consentimento. Em todos eles, as imagens apresentam formas semelhantes, mas, pelas peculiaridades do contexto em que se dá cada evento, elas acionam um sem número de outras relações que não se restringem à sua visualidade. Uma imagem de uma pixação sendo feita na rua, ainda que a prática seja tida como criminosa, corresponde às expectativas do lugar ocupado pelo pixo (não que deveria, oficialmente, ser ocupado, mas no qual já há certo hábito em encontrá-lo). Mas uma imagem de uma pixação na fachada de um prédio francês, em uma mostra de arte, justamente por a prática ser um crime, é algo que rompe com qualquer expectativa e, por si só, já aponta para uma cena dissensual. Quando são acionadas as relações e operações que atravessam aquelas imagens, pode-se ver, ainda com mais clareza, como elas são singulares e como, de diferentes formas, elas guardam uma potência para reconfigurar modos de fazer, de dizer, e de visibilidade, ou seja, uma potência política. Segundo Rancière (2010), a politicidade da arte não está no estabelecimento de uma continuidade entre produção e recepção, mas, ao contrário, no dissenso, ou seja, na sua potência para desestabilizar os lugares e funções dados, provocando mudanças. Mouffe (2007) também considera que a dimensão política da arte estaria na sua capacidade de se opor ao consenso hegemônico, revelando aquilo que ele esconde, criando novas identidades e subjetividades. Para a autora, contra esse cenário de incorporação das práticas da contracultura pela lógica mercantil seria necessário criar novas formas de vivência, consumo e apropriação dos espaços, de forma coletiva e crítica, para além do campo das ideias. Segundo 57 ela, “toda ordem hegemônica é suscetível de ser contestada por práticas contra-hegemônicas, ou seja, práticas que tentam desarticular a ordem existente 46” (MOUFFE, 2007, p.3). Para tanto, seria necessário “alargar o campo de intervenção artística, intervindo diretamente em uma multiplicidade de espaços sociais, a fim de se opor ao programa de mobilização social total do capitalismo. O objetivo deve ser minar o ambiente imaginário necessário para sua reprodução47” (MOUFFE, 2007, p.1). É preciso ponderar, no entanto, que o dissenso radical pode representar o risco de extinguir qualquer via de afetação sensível, não sendo capaz de gerar o questionamento dos lugares propostos. Dessa forma, o que a imagem política deve ser capaz de fazer é colocar em tensão os consensos pré-estabelecidos com novas possibilidades. Nesse movimento – que é histórico e pontual, como Rancière defende que são a estética e a política –, uma nova partilha do sensível se desenha e as definições sobre quem pode dizer ou fazer o quê, como, quando e em que lugar são questionadas, se tornam embaralhadas, e do dissenso surge a possibilidade de um novo horizonte comum, ainda que aberto à força, a partir da exposição de um dano. Rancière (1996) explica a origem do dano a partir da contagem das partes e da distribuição dos corpos em uma sociedade, tal como seus lugares, competências e capacidades. Ser contado enquanto parte está diretamente ligado à capacidade da palavra e da linguagem, em oposição ao ruído que apenas emite prazer ou dor, pois “entre a linguagem daqueles que têm um nome e o mugido dos seres sem nome, não há situação de troca lingüística (sic) que possa ser constituída, não há regras ou código para a discussão” (RANCIÈRE, 1996, p.37). Nesse sentido, a própria nomeação dos atos de pixação enquanto arte, protesto, vandalismo, crime, etc., é o que vai diferenciar se eles serão ouvidos como palavra ou apenas como ruído naqueles contextos e em outros onde a prática se insere. Isso se dá porque a ordem policial é o lugar em que quase tudo é nomeado, ordenado, com o intuito de que não haja espaço para irrupções dissensuais. Há uma economia das palavras, já que a um nome ligam-se uma capacidade, uma função e um lugar, o que possibilita a gestão e o controle. Já a política opera pelo “excesso de palavras” (CHAMBERS, 2013; ROSS, 2010). Quando um sujeito se desidentifica com o nome que lhe é dado e com tudo o que está ligado a ele, ou quando soma a esse nome outros tantos, ele transborda do 46 Tradução livre do original: “Every hegemonic order is susceptible of being challenged by counter-hegemonic practices, i.e. practices which will attempt to disarticulate the existing order”. 47 Tradução livre do original: “widening the field of artistic intervention, by intervening directly in a multiplicity of social spaces in order to oppose the program of total social mobilization of capitalism. The objective should be to undermine the imaginary environment necessary for its reproduction”. 58 lugar que lhe foi dado e se torna um sujeito entre nomes e entre lugares. É este o sujeito político, que, ao se situar entre duas ou mais identidades, traz à cena, por uma via litigiosa, algo de cada uma delas, embaralhando as noções de adequação de um lugar para um nome (RANCIÈRE, 2014). A política se faz, assim, do conflito entre nomes contraditórios de um mesmo sujeito. Nesse afastar-se dos nomes, lugares, funções e rótulos impostos pela ordem policial pelo ato de assumir outros nomes tantos, os indivíduos “descobrem-se, ao modo da transgressão, como seres falantes, dotados de uma palavra que não exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligência” (RANCIÈRE, 1996, p.38). Esse “excesso de palavras” marca o que Rancière chama de “literaridade” (CHAMBERS, 2013; ROSS, 2010), que pode ser entendida como os esforços para desestabilizar uma relação direta entre uma palavra ou nome e um corpo e sua função. Segundo Ross (2010), as palavras: têm uma potência política para alterar as relações entre a ordem dos corpos e a ordem das palavras: é quando aqueles que tinham sido tornados inaudíveis pela distribuição socialmente autorizada de papéis comunicam de forma eficaz as suas reivindicações que a hierarquia social é alterada e novas formas de fazer, ser e dizer entram em vista. (ROSS, 2010, p.135) Enquanto o grafite foi visto como atividade ilegítima, foi tratado como crime. Seu consentimento48 legal e sua denominação como arte transformaram suas condições de visibilidade. Ao não seguirem as programações propostas pelas curadorias dos eventos para os quais foram convidados, os pixadores não são vistos da mesma forma que os artistas naqueles espaços e, assim, sua linguagem não é reconhecida como tal, mas apenas como barulho indesejado. O reconhecimento como uma parte a ser contada é fundamental ao tipo de visibilidade que cada prática é capaz de alcançar. No entanto, há uma desidentificação dos pixadores em relação à identidade, ao lugar e aos modos de fazer aos quais aqueles convites parecem tentar lhes encaixar. Eles recusam um nome e um lugar e criam, assim, uma “cena de dissenso” (RANCIÈRE, 1996) a partir da (re)articulação de um tipo de discurso que, por mais que os esforços das curadorias tentassem apontar para o contrário, vinha sendo excluído dos 48 Por muito tempo, as intervenções urbanas foram indistintamente consideradas criminosas pelo artigo 65, Seção IV, da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1984 (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Acesso em 02/08/2013). Em 25 de maio de 2011, contudo, a Presidenta da República Dilma Rousseff sancionou a lei n°12.408, que altera o artigo supracitado, descriminalizando o grafite, agora aceito como manifestação artística, e tornando clara sua distinção em relação à pixação, ainda considerada crime (Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12408.htm>. Acesso em 01/08/2013). 59 propósitos desses eventos: o caráter intrinsecamente urbano, improvisado, contestador e incontrolável da atividade. Aí, fazem política: A política é primeiramente o conflito em torno da existência de uma cena comum, em torno da existência e a qualidade daqueles que estão ali presentes. [...] Não há política porque os homens, pelo privilégio da palavra, põem seus interesses em comum. Existe política porque aqueles que não têm direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só: o mundo em que estão e aquele em que não estão, o mundo onde há algo "entre" eles e aqueles que não os conhecem como seres falantes e contáveis e o mundo onde não há nada. (RANCIÈRE, 1996, p.40) A potência política da pixação não está em suas técnicas de produção ou reprodução, pois, conforme observa Rancière (2011), não são elas que configuram os modos de afetação de uma imagem, mas sim as formas com que são colocados em relação os elementos que a constituem. Uma relação que é operada pela arte e que diz de como, em uma imagem, os elementos e suas funções são dispostos a fim de tornar sensíveis o visível e o não-visível, o dizível e o indizível, ou seja, o modo como cada imagem evidencia uma forma de partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009a). Por isso, a pixação, ainda que afastada de seu ambiente comum, inserida em uma galeria, pode ser uma imagem investida de potência política (que pode ser acionada de diferentes formas, nos diferentes contextos que a subjazem). Não por trazer uma mensagem ou conteúdo que vise a algum fim social ou político, mas porque ela pode realizar aquilo que propõe Rancière (2011) para uma arte política: o rompimento de uma relação direta entre as intenções do artista e a recepção do público. Em sua configuração formal, a pixação carrega tudo aquilo que a formou e que a fortalece cotidianamente, dando a ver, de acordo com Scott (1990), sua infrapolítica, seu modo de resistência e contestação aos códigos dominantes. O viés político das ações dos pixadores se caracteriza, portanto, não por um discurso estruturado ou pela ligação a movimentos e causas específicos, mas pela construção de uma cena de interlocução e dramatização que antes não existia. Sua ação é política a partir do momento em que expõe, tematiza e trata o dano, o seu não pertencimento àqueles espaços, e nas formas em que joga e negocia com o sistema das artes. Eles contestam os códigos vigentes, os desorganizam, os reconfiguram, expõem o seu próprio código do modo que julgam mais adequado a cada ocasião. 60 A pixação, então, não é apenas imagem, nem apenas processo, mas um entre-lugar criado na tensão entre duas situações a priori distintas e distantes. Na relação entre esses dois lugares é que a imagem se torna potente. A imagem ajuda a ver seu contexto; o contexto muda o olhar sobre a imagem. Não se trata de uma relação direta e representativa, mas de uma complexa teia de relações conflituosas entre sujeitos e lugares. Retomando Agamben (2007), as pixações das bienais parecem se opor à tentativa de consagração de suas práticas, seu isolamento do campo do uso comum, a separação do âmbito da experiência: como reação a esse movimento, os pixadores profanam aqueles espaços, tornando-os parte de sua experiência. Contudo, não é possível negar que essas incursões no âmbito artístico, de uma forma ou de outra, modificam o olhar sobre essas formas de expressão. Durante o percurso aqui apresentado, pode-se perceber que os pixadores contestam tanto o lugar de onde vieram como aquele que começava a lhes ser dado. A busca, parece, é pela construção de um lugar próprio, onde possam se fazer visíveis e audíveis para o público, as instituições e a mídia de um modo que não eram, surgindo como interlocutores da discussão que desencadearam. 61 4. A POÉTICA DA POLÍTICA: CONSTRUÇÃO METODOLÓGICA A construção teórica feita até aqui busca formar uma base conceitual que permita analisar a criação de cenas de dissenso e os processos de subjetivação política construídos a partir da desidentificação dos pixadores com a parte conferida à pixação pelo campo da arte e de sua polêmica e conflituosa inserção nesse âmbito. O objetivo é observar se, a partir daquela série de eventos e para além deles, as funções, lugares e relações ali em questão foram transformados, dando origem a uma nova partilha do sensível a partir da inscrição dos pixadores em uma cena comum (inventada por eles). Para tanto, é essencial perceber de que forma a política se constrói, se desenvolve e se concretiza em ações e gestos potencialmente transformadores. Assim, a partir de agora, os conceitos-chave para a realização da análise proposta (e que formarão a grade para a mesma) serão tratados de modo mais específico e detalhado, e o pensamento de Rancière (que constitui o núcleo da compreensão de política neste trabalho) será colocado em tensão com algumas críticas que o autor recebe, a fim de que tanto os pontos altos como as lacunas existentes nessas reflexões sejam iluminadores do percurso metodológico assumido aqui e apresentado ao final deste capítulo. 4.1. Dissenso, literaridade e subjetivação: conceitos-chave O cenário descrito a partir dos eventos analisados neste trabalho, que apresenta uma conflituosa relação entre os universos da pixação e da arte, oferece elementos importantes para a observação das maneiras encontradas por sujeitos marginalizados para se fazerem visíveis em locais e situações em que são comumente ignorados. Pensando, junto com Rancière (2009b), na política como a criação de uma cena dissensual capaz de re-enquadrar o comum de forma polêmica, olhar para essas intervenções através das lentes conceituais fornecidas pela reflexão filosófica do autor se apresenta, neste caso, como um bom caminho teórico e metodológico. O ponto de partida é a compreensão de que, na cena dissensual da política, a autonomia dos atores, a validade de seus argumentos e os seus horizontes de ação não são dados a priori, mas derivam de uma produção discursiva dos sujeitos que, a partir da verificação de uma igualdade pressuposta, conseguem perturbar a ordem vigente e fazer com 62 que sua fala passe a ser contada como palavra e não mais como ruído. É importante apontar que, para Rancière (2000), a igualdade não deve ser vista como um objetivo, uma meta a ser alcançada pelas ações que questionam a desigualdade, mas como o próprio ponto de partida para a ação política. Trata-se da igualdade das inteligências e capacidades entre todo e qualquer indivíduo, que é anterior à própria política e excede aos direitos construídos pela lei para ordenar os corpos em sociedade. Segundo o autor, a igualdade “define as práticas, os modos de expressão e manifestação que são, eles mesmos, sempre determinados por um estado particular de desigualdade e pelo potencial para a igualdade” (RANCIÈRE, 2000, p.6). A política estaria vinculada, então, a uma potência poética, comunicacional e produtiva de criação de “cenas de dissenso”, que abrem espaço para que aqueles que não eram contados passem a ser por meio do ato de tomar a palavra e enunciá-la/performá-la diante dos outros, em uma ação de verificação da igualdade que questiona, em ato, a ordem que determina quem está apto a fazer parte do comum, a aparecer nele, a ter sua fala ouvida como discurso. A cena de dissenso é inventada para reconfigurar tal ordem e trazer novos indivíduos e elementos sensíveis ao comum. Tal reconfiguração, contudo, não se cristaliza, mas funciona no litígio entre a ordem dada e a cena em construção. Para definir melhor a importância da ideia do dissenso em seu pensamento político, Rancière define, também, o que ele entende por consenso. Para o autor (PANAGIA e RANCIÈRE, 2000), o consenso é uma forma de configuração e de partilha não litigiosa do sensível, na qual as ações são guiadas pelas restrições que ela predetermina. O consenso rege, assim, as ações da “polícia 49”: não há vazios ou excessos reconhecidos, já que todos os lugares estão devidamente ocupados em direta relação com a função que cumprem na ordem social. A política é, então, aquilo que irrompe dessa ordem ao demonstrar que há lacunas e/ou excessos na contagem feita pela ordem policial, introduzindo ali o dissenso, que não é o embate entre opiniões divergentes, mas o conflito sobre a legitimidade de uns para participarem do comum em detrimento de outros. Isso significa que a política não é constituída do conflito de interesses e valores entre grupos, nem da arbitragem, pelo Estado, entre esses valores e 49 Foucault (1995) conta que a força policial foi criada no século XVIII como um aparato que, mais que garantir a segurança, devia garantir a manutenção dos padrões urbanos, da higiene, da saúde, e de tudo o que fosse necessário para manter a produção artesanal e comercial em ordem. Assim, quando Rancière nomeia como “polícia” o âmbito que visa a ordenar a sociedade, é possível ver alguma inspiração nessa função que o aparato policial possuía em seu surgimento (embora seja sempre importante lembrar que Rancière não se refere à polícia enquanto tal força institucional disciplinadora, nos moldes foucaultianos). 63 interesses. A política é constituída de sujeitos específicos que estão em desvantagem em relação à contagem da totalidade objetiva da população 50. (PANAGIA e RANCIÈRE, 2000, p.124) E esses indivíduos que excedem à contagem formam o que Rancière identifica como demos ou “sem-parte”. Não se trata dos desprivilegiados, mas daqueles indivíduos que excedem ou faltam à contagem das partes de uma sociedade por não possuírem nada que possa ser oferecido a ela na “partilha policial do sensível”. Segundo Marques (2013): É preciso ter claro que a discussão que Rancière tenta construir sobre a política não se polariza entre privilegiados e desprivilegiados, excluídos e incluídos. Sua reflexão não é um tipo de elogio da brecha ou da distância intransponível que separa grupos e classes, mas a afirmação de que a cena que envolve a interlocução de mundos e sujeitos deve ser reconfigurada porque o comum deve ser construído diferentemente. (MARQUES, 2013, p.131-132) Desse modo, o conceito de “sem-parte” não designa uma categoria social inferior, uma coleção de membros da comunidade ou mesmo as classes trabalhadoras da população. Diz menos dos sujeitos em si e dos grupos sociais (negros, pobres, mulheres ou trabalhadores) e mais dos modos de inscrição, das operações simbólicas e das práticas políticas que dão a ver a existência de lógicas que contam as partes e parcelas da comunidade de modos diferentes. O que os “sem-parte” fazem é, por meio de suas ações, evidenciar que seu modo de pertencimento ao comum de uma comunidade não se produz em condições igualitárias e paritárias, apontando para a existência de uma contagem mal feita, que não admitia sujeitos que se colocam fora dos espaços a eles destinados, que inventam e criam outros espaços de ação e que, além disso, existem na fronteira entre esses dois espaços: institucionais e experienciais. A existência dos “sem-parte” mostra que não há uma relação direta e fixa entre um nome, uma capacidade, um lugar e uma função, mas um excesso que sempre escapa à contagem (e que faz com que não sejam contados). A demonstração desse excesso perturba a ordem vigente, pois quebra uma relação pretensamente existente entre as palavras e as coisas. À capacidade de suspender tal relação, Rancière chama de “literaridade”, que se caracteriza por um “excesso de palavras” que contraria a pretensão da “ordem policial” de que haja 50 Tradução livre do original: “This means that the political is not comprised of the conflict of interests and values between groups nor of the arbitration by the state between these values and interests. The political is comprised of specific subjects that are outnumbered with respect to the count of the objective whole of the population”. 64 apenas um nome para cada coisa (ou corpo, ou situação), o que permitiria um maior controle (RANCIÈRE, 2000; PANAGIA e RANCIÈRE, 2000). O conceito de “literaridade” nasce do questionamento de Rancière sobre um suposto privilégio da palavra falada sobre a palavra escrita. O discurso falado se restringe ao lugar e ao momento em que é proferido, e, portanto, seu acesso fica restrito àqueles que estiveram presentes no ato do seu proferimento. Além disso, nessa modalidade do discurso há a legitimação sobre quem pode falar e quem deve apenas ouvir. Já o discurso escrito extrapola esses limites e “continua falando” em outros contextos espaço-temporais, sem que haja emissores e receptores legitimados. (CHAMBERS, 2013) Para Rancière (2002), a palavra escrita, por sua circulação e pela ausência de relações fixas entre quem fala e quem ouve, está mais disponível aos processos de produção de sentido. Para o autor, há, aí, então, um “excesso de palavras” (ou de sentidos para uma palavra) e o paradoxo da “palavra muda”: por não oferecer uma correspondência direta entre as palavras e um sentido que se deseja obter hierarquicamente delas, a palavra escrita, que é muda, ao mesmo tempo não para de falar, pois está aberta aos processos de tradução e contratradução que lhe darão sentido. (CHAMBERS, 2013; ROSS, 2010) Se não há uma relação direta entre uma palavra e uma coisa, ou um nome e uma função, há tentativas para estabelecê-la. Quando esses esforços são desestabilizados, a literaridade opera e abre espaço para a política. Palavras são incapazes de classificar coisas e corpos em posições completamente determinadas. Isto porque não há necessariamente nenhuma ligação estrutural entre “modos de fazer, modos de ser e modos de dizer”. Ao invés disso, a ontologia de Rancière sustenta que as relações entre modos de fazer, ser e dizer “são” maleáveis e democráticas. As palavras, dessa forma, suportam uma potência política para alterar as relações entre a ordem dos corpos e a ordem das palavras: é quando aqueles que vinham sendo mantidos inaudíveis pela distribuição socialmente autorizada de papeis efetivamente comunicam suas reivindicações de que a hierarquia social seja alterada e novas formas de fazer, ser e dizer entrem em vista.51 (ROSS, 2010, p.135) 51 Tradução livre do original: “Words are incapable of placing things and bodies in fully determined positions. This is because there is no necessary structural link between “ways of doing, ways of being and ways of speaking”. Rather, Rancière‟s onthology holds that the relations between ways of doing, being and speaking “are” malleable and democratic. Words, accordingly, bear a political potency to alter the relations between the order of bodies and the order of words: it is when those who had been rendered inaudible by the socially authorized distribution of roles effectively communicate their claims that the social hierarchy is altered and new ways of doing, being and saying come into view”. 65 Dessa forma, os conceitos de “literaridade” e “excesso de palavras” significam, politicamente, o rompimento de relações diretas não só entre uma palavra e uma coisa, mas entre um nome e uma função social. Como já foi visto, a ordem policial compartimenta os indivíduos a partir de suas funções e do que eles trazem à sociedade, dando a eles um nome e um lugar. É pelo trabalho sobre a linguagem que os indivíduos têm o poder de mostrar que transbordam dessas relações: a palavra guarda, assim, uma enorme potência política. Contudo, segundo Rancière (1996), não basta tomá-la, mas fazer com que ela seja ouvida e levada em conta na partilha social. Para que isso ocorra é preciso que haja, segundo Chambers (2013) uma mudança no discurso, que significa não apenas uma mudança na linguagem, mas na partilha social. Muitas vezes, para o autor, o caminho está na ressignificação dos discursos que já circulam, promovendo uma mudança na visão do indivíduo ou do grupo e permitindo que sua fala seja considerada discurso, e não ruído. Para Chambers (2013), essa batalha travada na construção de um lugar de sujeito aponta para a literaridade ao passar pelo ato de assumir um nome para si (um sujeito ou um grupo) que não corresponde ao nome dado pela ordem policial. Contudo, não se trata, simplesmente, de recusar um nome e assumir outro, mas de construir um lugar entre todos esses nomes. É aí que se desenha a “cena de dissenso”, que força a contagem daqueles que não eram contados a partir da desidentificação e do excesso de palavras que configuram a literaridade e possibilitam a subjetivação política. O processo de subjetivação política está associado ao conflito entre uma identidade atribuída pela ordem do poder e uma identificação impossível, ou uma desidentificação com o que seria “próprio” ou específico dos “sem-parte”. Para Rancière, o que constitui a cena política está intimamente ligado a um conflito de enunciação que surge quando, na cena de dissenso, os “sem-parte” não tomam a palavra a partir do lugar que lhes foi atribuído socialmente, mas se inscrevem na cena por meio do discurso, da argumentação e dos recursos poéticos da experiência, afastando-se do espaço e do status que lhes foi designado pela ordem policial. Nesse movimento, os sujeitos reconfiguram o comum de uma comunidade e promovem uma nova partilha do sensível, fazendo visível e audível o que não era, desconectando capacidades e funções dos corpos dos sujeitos, assim como de seus vários nomes e identidades (o que Rancière coloca como a base estética da política). A subjetivação política é, assim, um processo, e não um fim. Um processo contínuo que não tem como objetivo formar um sujeito antes inexistente enquanto tal, ou fazê-lo ser 66 reconhecido por aquilo que ele é, mas fazer emergir um sujeito que está em constante construção a partir de um caminho oposto: a desidentificação, o afastamento de si (ou daquilo que é convencionado que deveria ser o si mesmo). Esse processo faz aparecer sujeitos que dizem o que são, o que querem ser, e como se relacionam com tudo o que os cerca, ao invés de indivíduos dotados, por algo que lhes é externo, de nomes, lugares e funções aos quais devem corresponder. Não se trata de afirmar uma identidade, mas de negociar com identidades impostas hierarquicamente. Toda subjetivação é uma desidentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre uma parcela e uma ausência de parcela (RANCIÈRE, 1996, p.48). Em Foucault (1995), que sugere que uma análise das relações de poder deve partir dos modos de resistência que se desenvolvem contra as diferentes formas que ele toma, também é possível encontrar elementos que apontam para a subjetivação como um processo que emerge da desidentificação e da construção de uma nova cena de inscrição dos sujeitos: Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos desse “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e totalização própria às estruturas do poder moderno. [...] Temos que promover novas formas de subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários séculos. (FOUCAULT, 1995, p.239) Tassin (2012) aponta, contudo, que, para Rancière, Foucault teria tratado da subjetivação como um todo, e não da subjetivação política em particular. Para Tassin, no entanto, tratam-se de duas concepções diferentes de subjetivação e de política: enquanto, para Foucault, a subjetivação seria um processo que visa a coletivizar um “si mesmo”, para Rancière, por outro lado, seria um momento raro e quase inapreensível da experiência, que não se fixaria em formas organizadas de ação e discurso. Segundo Tassin, essa diferença parece poder ser apresentada pela separação entre ação e organização. Para Rancière, seria um momento de irrupção perturbadora da ordem (uma crítica recorrente ao autor e que será abordada mais a frente), enquanto, para Foucault, tratar-se-ia de uma organização para a ação coletiva e contínua. Mas o que importa efetivamente nessa distinção, para Tassin (2012), é 67 que a subjetivação foucaultiana está baseada no conceito de verdade, enquanto, para Rancière, a subjetivação está baseada na verificação da igualdade. Rancière (2000) assume sua proximidade com Foucault e o modo como alguns de seus conceitos são inspirados na leitura desse e concorda que o que marca sua diferença em relação ao autor é a questão da igualdade. Segundo Rancière, enquanto Foucault trata de “limites, encerramento e exclusão” (RANCIÈRE, 2000, p.13), das estruturas que condicionam e controlam externamente a conduta dos indivíduos, ele olha para os modos que os indivíduos encontram para transgredirem e excederem a essa divisão social que os compartimenta a partir de nomes, lugares e funções. Para Rancière, então, a subjetivação política “se refere a uma capacidade enunciativa e demonstrativa para reconfigurar as relações entre o visível e o dizível, as relações entre palavras e corpos” (PANAGIA e RANCIÈRE, 2000, p.115), o que aponta para uma grande importância da linguagem e de seu uso. Para ele, a emancipação está ligada ao modo como os próprios sujeitos trabalham criativamente a sua linguagem, o seu jeito particular de ler e traduzir o mundo. A tradução e a contra-tradução são duas das habilidades mais relevantes nesse processo, pois dizem de como cada sujeito interpreta o mundo e o (re)cria com vocabulário próprio, único e inusitado, escapando às generalizações e tipificações sociais. Observando os conceitos de “cena de dissenso”, “literaridade” e “subjetivação política”, pode-se perceber o quanto eles estão entrelaçados dentro da lógica que configura o pensamento político de Rancière, misturando-se e quase fundindo-se, muitas vezes, mas mantendo particularidades que importam muito na observação dos fenômenos empíricos que se proponha avaliar a partir deles. São esses conceitos que guiarão a construção de uma grade para a análise dos eventos aqui apresentados. Antes, contudo, é importante tensionar o pensamento de Rancière com algumas críticas que lhe são lançadas recorrentemente, a fim de chamar a atenção para alguns pontos importantes para a análise proposta. 4.2. “A política não aparece do nada”: entre a irrupção e o processo Alguns autores apontam certas lacunas no conceito de política de Rancière, suscitando algumas críticas e questionamentos, além de uma dificuldade em sua utilização para a análise de casos empíricos. Ainda que tais apontamentos possam se originar de perspectivas teóricas sobre a política que diferem da de Rancière (e, talvez por isso, busquem os resultados, as 68 mudanças efetivas, a transformação, enquanto Rancière olha para as tensões que desestabilizam), elas importam aqui para apontar para a consciência de que há críticas ao pensamento de Rancière e que não se pretende apresentá-lo como livre de problemas. Nesse sentido, a menção às principais críticas podem servir como ponto de partida para questionamentos e tensionamentos importantes para a construção de uma abordagem teóricometodológica cuidadosa, que se relacione com o objeto e que permita analisá-lo sem que se force um encaixe entre eles. Tambakaki (2009) e Hallward (2009), por exemplo, observam que Rancière, ao apresentar a política como uma irrupção perturbadora, não deixa claro o processo desencadeado por ela, o que seria, para eles, fundamental para compreender se tal desestabilização da ordem policial avança para um efetivo processo de mudanças. De que maneiras, ao fim da ebulição de cada irrupção, a política consegue reconfigurar, de fato, o comum de uma comunidade? Hallward (2009) baseia seu questionamento nas metáforas frequentemente utilizadas por Rancière para caracterizar a política como uma cena teatral e inventada: se a política é uma cena, o que ocorre quando ela se desfaz? Para Tambakaki (2009), uma política que é rara e não consegue modificar as estruturas sociais seria superficial e até desnecessária. Esses autores não invalidam a construção do pensamento político de Rancière (embora Tambakaki teça suas críticas de modo mais severo e contundente). Contudo, parece que esse ponto representa, para eles, uma lacuna, algo que dificulta o avanço no uso da teoria do autor para a observação de fenômenos empíricos. Uma questão que poderia ser colocada, a partir de tais apontamentos é se e de que forma a pixação consegue, nos eventos analisados, avançar nessa reconfiguração do comum para além da tentativa de deslegitimar a ordem policial ali estabelecida. Como perceber e analisar as mudanças promovidas pelos pixadores a partir das cenas polêmicas que instauram? Esse abismo que parece separar irrupção pontual e luta processual pode levar, ainda, à indagação sobre se cada evento apresentado no capítulo 3 seria apenas uma nova irrupção ou se, a cada eclosão, uma intervenção recupera uma historicidade das ações, contribuindo para uma configuração da política como potência criativa que não só interrompe o funcionamento de poderes opressores, mas também oferece condições para o reordenamento da relação entre hegemonias e contra-hegemonias em longo prazo. Quando os pixadores invadem espaços institucionais da arte ou desobedecem aos formatos de participação propostos em convites a eventos, pixando onde e quando não deveriam, eles promovem, em cada caso, novas cenas de 69 dissenso, novas irrupções políticas, ou são desdobramentos em um processo contínuo, dentro de uma cena maior? E se cada cena tende a ser incorporada e capturada pela ordem policial, qual a sua efetividade? E, se isso ocorre, a efemeridade da desestabilização e do embaralhamento da ordem invalidariam o caráter político da ação? É o próprio Rancière quem ajuda a responder tais questões. Ao apresentar o estudo que fez das cartas dos operários franceses do século XIX, o autor explicita que não compreende a política como algo que surge do nada e que para lá retorna: segundo ele, a publicação de tais cartas em jornais da época foi o resultado de múltiplas pequenas experiências anteriores, que causaram reconfigurações nos lugares e tempos daqueles trabalhadores (RANCIÈRE, 2009b). A publicação é, então, uma irrupção, mas também parte de um processo mais amplo. Não há separações e oposições rígidas, mas heterogeneidades que convivem, são mutuamente dependentes e podem, em muitos momentos, se confundir. Há uma história da política, que é a história das formas de confrontação – e também das formas de confusão entre política e polícia. A política não aparece do nada. Ela está articulada a uma certa forma da ordem policial, o que significa um certo equilíbrio de possibilidades e impossibilidades que essa ordem define. (RANCIÈRE, 2009b, p.287) É importante pensar que Rancière não desenha fórmulas para a apreensão de fenômenos políticos; pelo contrário, ele questiona modelos que se propõem a tal movimento. Para ele, a cena política, os atores, os temas de interesse, a validade dos argumentos, as regras do debate, nada disso está pronto de antemão e precisa ser construído na própria ação – a política existe em ato. Talvez venham daí a apreensão e as críticas. De todo modo, para o autor, a política não é pura irrupção, mas é composta por dois momentos que não se separam e tampouco se opõem: o poético, em que as cenas de dissenso são criadas, novos sujeitos e novas linguagens são apresentados sensivelmente e colocados em comum; e o discursivo (ou argumentativo), em que esses novos elementos em cena necessitam de certa organização comunicacional a fim de que os argumentos enunciados pelos sujeitos se transformem em discursos que permitam evidenciar modos de resistência, colocando-os em constante verificação da igualdade pressuposta (sobretudo pelo âmbito jurídico) (RANCIÈRE, 1995). Para Scott (1990), como as contestações públicas da ordem costumam ser pública e severamente punidas para que sirvam de exemplo, é, muitas vezes, sob o disfarce das transcrições ocultas (hidden transcripts) que as ações de questionamento e resistência se 70 mantêm, reunindo forças e aguardando o melhor momento para que possam emergir novamente. Dessa forma, o autor defende a importância do reconhecimento da dimensão política dessas resistências ocultas, pois não é porque não estão no âmbito da visibilidade (embora ele seja de fundamental importância) que elas deixaram de existir. Elas são, assim, componentes de um amplo processo de construção e fortalecimento de ações de resistência e confronto. No caso da pixação, é possível dizer que ela permanece em um âmbito intermediário: as marcas estão sempre visíveis pelas ruas, mas os pixadores permanecem ocultos, e é por isso que sua aparição pública – seus rostos, seus corpos, seus gestos, suas vozes – é tão instigante. Os eventos de 2008 a 2012, que entrelaçaram os universos da pixação e da arte, podem ser, então, compreendidos como um processo, em que um evento se abre a e é aberto por outro, sendo permeados por ações menores ou menos visíveis que os tornam possíveis. E sobre o questionamento acerca daquilo que esse processo pode transformar, efetivamente, na partilha do sensível e na configuração do comum, a tensão presente nos eventos aqui relacionados parece não se encerrar na Bienal de Berlim: a transgressão das propostas de participação e as reações de curadores, pixadores e público deixam ver que ainda pode haver litígios na configuração e na “partilha do sensível”. Afinal, o que é colocado em comum pelas partes em negociação? Trazer à esfera do sensível é, necessariamente, colocar em comum? Pois ver a pixação não significa compartilhar do que ela propõe. Convidar para um evento não significa propor um horizonte comum. Há, sim, a construção de cenas dissensuais. Não parece haver dúvida de que os pixadores, naqueles eventos, questionam a igualdade (das inteligências e capacidades que conformariam lugares adequados para a ocupação e modos determinados de participação), criam cenas de dissenso e trazem novos elementos sensíveis à visibilidade comum. O desafio é analisar se e como, nesse movimento, esses elementos promovem uma reordenação do comum partilhado e fazem com que os pixadores emerjam como sujeitos políticos que, ao se mostrarem como sem-parte na contagem efetuada pela partilha policial do sensível, conseguem promover uma recontagem das partes da sociedade; uma em que eles se identifiquem e sejam reconhecidos não com os nomes, lugares e funções que lhes foram dados, mas com aqueles construídos por eles, dando a ver a potência política da pixação. É a isso que a metodologia apresentada a seguir busca possibilitar responder. 71 4.3. Metodologia O desenho analítico desenvolvido aqui tem como base, então, os conceitos de “cena de dissenso”, “literaridade” e “subjetivação política”, desenvolvidos por Jacques Rancière na configuração de seu pensamento político. Pretende-se analisar que tipo de ordem e partilha são comumente efetuadas naqueles espaços oficiais da arte, e como elas são alteradas pela incursão dos pixadores, com foco nas tensões entre tentativas de captura e esforços de resistência. A partir das cenas dissensuais construídas, o objetivo é tentar compreender como se dá o processo de subjetivação política dos pixadores, indagando pelas possibilidades de invenção de novos modos de existência construídos a partir da desidentificação com os lugares conferidos por uma ordem consensual e da capacidade de escapar ou burlar ao controle institucional sobre os corpos e os modos de viver, criando novas relações consigo mesmo, entre seus pares e com outras esferas. 4.3.1. Corpus O corpus de análise desta pesquisa compõe-se dos seis eventos apresentados anteriormente, a saber: as invasões ao Centro Universitário Belas Artes, à Galeria Choque Cultural, e à 28ª Bienal de Arte, em 2008, em São Paulo; a participação de Djan Ivson na mostra Né dans la rue - Grafitti, realizada pela Fundação Cartier, em 2009, em Paris; a participação de Djan Ivson e Rafael Augustaitiz na 29ª Bienal de Arte, em 2010, em São Paulo; e a participação de Djan, Biscoito, William e RC na Bienal de Berlim, em 2012. Esses eventos são abordados a partir de dois grupos de materiais: 1) Reportagens publicadas pelo site do jornal Folha de S. Paulo, totalizando 27 matérias publicadas entre 13 de agosto de 2008 e 15 de junho de 2012, com periodicidades diversas que seguem os eventos. Esse recorte temporal foi feito para acompanhar cada evento e seus desdobramentos, a fim de que seja possível perceber seu encadeamento. A primeira matéria analisada, publicada em 13 de agosto de 2008, corresponde à primeira notícia sobre o primeiro ataque, o do Centro Universitário Belas Artes. A última, publicada em 15 de junho de 2012, corresponde à última matéria tratando sobre o último evento abordado aqui: a Bienal de Berlim. 72 2) Entrevistas concedidas por Djan Ivson (em alguns momentos acompanhado por outros pixadores) aos programas Altas Horas (Rede Globo, 2009), Palavra Ética (TV Comunitária de Belo Horizonte, 2012), Desculpe a Nossa Falha (PosTV, 2012); aos sites da revista Caros Amigos, em 2012, e Catraca Livre, em 2014; e à pesquisadora52, em 16 de maio de 2014. Para a entrevista com Djan Ivson, foi escolhido o método da entrevista semiestruturada, que propõe um roteiro de perguntas não-rígido, permitindo a abertura a novas perguntas e a exclusão de algumas previstas, a partir do desenvolvimento da entrevista com o entrevistado. Pretende-se, a partir de tais materiais, reconstituir as cenas de cada evento, percebendo como, em cada um deles, a forma de partilha dada (a instituição, o evento, os atores legitimados a participar, os modos de participação propostos, as hierarquias); o modo como os pixadores irrompem na cena (formas de presença e participação, modos de enunciação e argumentação), e se, a partir daí, há uma reconfiguração do comum partilhado (construção política de novas posições de sujeito e novos regimes de visibilidade: nomes, lugares, funções). Cada evento é analisado individualmente e, posteriormente, a trajetória é observada em seu encadeamento, observando-os como irrupções e como um processo mais amplo. Nesse contexto, o segundo bloco de materiais analisados – as entrevistas – ajudam a reconstituir as cenas de cada evento a partir da perspectiva dos próprios pixadores, algo extremamente importante quando se busca observar indivíduos em processo de subjetivação política. O objetivo é ver o modo como enunciam e argumentam sobre o dano colocado em cena, com o que se desidentificam, que lugares contestam e que novos lugares constroem a partir da tomada e performance da palavra. 4.3.2. Procedimentos de análise 52 O pixador Rafael Augustaitiz, responsável por articular os eventos de 2008, também foi contatado para conceder uma entrevista. No entanto, Rafael respondeu apenas com o envio do vídeo O Rebu (2014), em que exibe 46 minutos de imagens de uma série de intervenções (entre elas, as de 2008) acompanhadas por músicas de Raul Seixas. Ao final, há um depoimento de Rafael: “As instituições têm oprimido a imaginação e desonrado o intelecto, degradando as artes a fim de estupidifica-la e promover a escravidão espiritual, a propaganda para o Estado e o capital. Reações puritanas, lucros injustos, mentiras e arruinamentos estéticos. Recupere sua humanidade e revolte-se em nome da imaginação, ou será considerado [...] um inimigo da raça humana”. Pesquisando por essas palavras, foi possível verificar que se trata de uma maldição atribuída a uma entidade chamada “Djim Negro Malaio” e usada por praticantes do chamado “Terrorismo Poético”, que dizem lançá-la sobre “instituições e ideias”, não sobre indivíduos (BEY, 2004). Após o envio desse vídeo, Rafael não respondeu a nenhum outro contato. Em respeito à sua opção por não falar, foi enviado um agradecimento e as tentativas de entrevistá-lo foram encerradas. 73 Desde o princípio da realização desta pesquisa, alguns métodos foram propostos para a análise do corpus selecionado, como a análise do discurso e a cartografia das controvérsias. No entanto, percebeu-se que nenhum deles formava uma continuidade com a abordagem teórica construída e acabava por gerar uma divisão indesejada entre teoria e método. Dessa forma, acreditando que a fundamentação teórica baseada no pensamento político de Rancière oferece categorias e subsídios para tanto, optou-se pela construção de procedimentos de análise que partem diretamente dela. São guardadas algumas inspirações obtidas com a Análise do Discurso em função da importância atribuída à linguagem como produção em profunda relação com seu contexto social. Segundo Fairclough (1995, p.55), o uso da linguagem como prática social constitui, simultaneamente, identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença (representações). De modo geral, a análise crítica do discurso estuda o modo como o abuso, a dominância e a desigualdade do poder social são colocados em prática, reproduzidos e perpetuados (e como resistem) por meio do texto e da fala no contexto social e político (VAN DIJK, 2001). Embora a análise proposta, por se basear na política como descrita por Rancière, também vise a uma centralidade da linguagem, da palavra, e do seu contexto de enunciação, ela não se encerra em categorizações e formalizações textuais demasiadas e tem como ponto de partida não o texto em sua materialidade, mas a compreensão das relações dadas e reconfiguradas em cada evento. O núcleo da análise está na percepção dos eventos como cenas de dissenso que perturbam a partilha proposta para aqueles espaços por uma “ordem policial”. Para tanto, o conteúdo do corpus foi classificado, por evento, a partir das seguintes categorias (muitas delas inspiradas em quadro criado por Marques e Mafra (2013) para a observação de cenas de dissenso em fenômenos empíricos):  Cena consensual prévia: configurações dos eventos; nomes, lugares e funções concedidos; formatos de participação propostos; hierarquias.  Modos de aparência dos atores: modos de visibilidade; formas de inscrição a partir dos corpos, das vozes e dos gestos; materialidade da palavra; imagens na mídia.  Enunciação e dramatização do dano: falas e performances que dão a ver a contestação sobre a não-contagem dos pixadores como participantes daquele comum; 74 desidentificação com os nomes e lugares dados; como os pixadores se percebem e se nomeiam.  Contexto da argumentação: elementos que tornem comum o mundo em que os argumentos dos pixadores são considerados como discurso.  Interações com demais participantes: interação com outros atores em cena; existência de diálogo; verificação da igualdade.  Desdobramentos imediatos: ações ocorridas imediatamente após cada evento e diretamente relacionadas a ele. A partir de tal classificação, foi feita uma reconstituição de cada evento, mapeando e analisando os atores envolvidos, sua nomeação, a distribuição de lugares, as ordenações das funções e relações, a presença da pixação, a atuação dos pixadores e os desdobramentos. Com a cena de cada evento reconstituída, eles foram analisados individualmente a partir das categorias analíticas apresentadas a seguir. Posteriormente, foi feita uma análise conclusiva sobre a configuração dos eventos enquanto formadores de uma trajetória mais ampla movida pelo mesmo núcleo motivador, caracterizando, assim, mais que várias irrupções, um processo político contínuo. 4.3.3. Categorias analíticas A partir da fundamentação teórica construída e das questões que movem este trabalho, foi construído o seguinte quadro de categorias analíticas para análise dos eventos que relacionam pixação e arte: Categoria Tensões entre consenso e dissenso Formas de inscrição e visibilidade Subjetivação política Elementos a serem observados Abertura, pelos pixadores, de espaço para o pixo no mundo da arte; ações que dão a ver tentativas de captura da pixação pelo sistema das artes; movimentos dos pixadores para escapar a tais tentativas; diálogos e conflitos sobre modos de participação. Como os atores se inscrevem nas cenas; que discursos acionam; como tomam e performam a palavra em público; como são e como desejam ser vistos; que nomes e lugares assumem. Construção de um lugar na partilha do comum; reconhecimento da fala como discurso e não como ruído; 75 posição construída entre diversos nomes. É a partir desses operadores que se espera responder ao objetivo desta pesquisa: analisar a criação de cenas de dissenso e os processos de subjetivação política construídos a partir da desidentificação dos pixadores com a parte conferida à pixação pelo campo da arte e de sua polêmica e conflituosa inserção nesse âmbito. 76 5. A POLÍTICA COMO IRRUPÇÃO: RECONSTITUIÇÃO E ANÁLISE DOS EVENTOS Com todo o material coletado classificado a partir dos elementos que compõem uma cena de dissenso, conforme mostrado no Capítulo 4, foi possível organizar os dados que serviram à reconstituição detalhada das cenas de cada evento, apresentadas a seguir. A reconstituição foi feita de modo linear, buscando apresentar descritivamente a cena estabelecida de antemão, o aparecimento dos pixadores, como se dá sua inscrição, que interações e reações se estabelecem, e que desdobramentos são apontados. A cada evento, segue a análise organizada em três categorias analíticas, que condensam e relacionam os elementos da cena de dissenso que serviram à reconstituição das cenas: tensões entre consenso e dissenso; formas de inscrição e visibilidade; e subjetivação política. A intenção é perceber e analisar, em cada evento, que recursos são usados e que discursos são acionados pelos pixadores para se fazerem visíveis e audíveis em contextos em que não eram ou em que os lugares que lhes foram designados eram contestados por eles; que desarranjos e deslocamentos eles promovem a partir de suas ações e de seu discurso; que interações eles estabelecem naqueles espaços e como elas mostram se os pixadores são ou não considerados como interlocutores, e se o são a partir dos lugares que construíram em ato, o que apontaria para um reconfiguração dissensual da cena. O capítulo se organiza, então, em tópicos por evento – são seis – dentro dos quais estão os subtópicos que trazem as categorias analíticas. 5.1. Reconstituição da invasão ao Centro Universitário Belas Artes O dia 11 de junho de 2008 era uma data importante para os 37 alunos do último ano do curso de Artes Visuais do Centro Universitário Belas Artes, na cidade de São Paulo. Prestes a se formarem, deveriam, naquele dia, apresentar uma obra como seu trabalho de conclusão de curso (TCC), para obterem o título de bacharéis em Artes Visuais. Um dos formandos era Rafael Guedes Augustaitiz, que possuía bolsa integral para o curso, cujo custo mensal era de R$ 900,0053. De acordo com Djan Ivson54, pixador e amigo de 53 CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 77 Augustaitiz, ele sempre teve talento para as artes. Tendo quebrado o braço em um acidente enquanto realizava um trabalho para a faculdade, Augustaitiz teria ficado desempregado e, então, segundo Ivson, “a faculdade se viu obrigada a dar a bolsa pra ele” (DEPOIMENTO) 55. Ao longo dos quatro anos de curso, Augustaitiz teria encontrado, segundo Ivson 56, um lugar potente para o pixo na arte contemporânea, e, mesmo sofrendo “preconceito e resistência” (DEPOIMENTO)57 por parte da instituição ao defender tal tema, partiu daí para criar a obra de seu TCC. Tal postura institucional já era esperada: em abril de 2008, a faculdade concedeu ao então prefeito Gilberto Kassab o título de professor honoris causa em homenagem pela implementação do projeto Cidade Limpa58, que visa à padronização visual da paisagem urbana de São Paulo 59. O intuito de Augustaitiz, de acordo com Ivson60, era usar a simbologia do Centro Universitário Belas Artes para inserir publicamente a pixação na discussão sobre a arte contemporânea. Djan Ivson conta que, da primeira vez que Augustaitiz conversou com ele sobre o assunto, convidando-o para ajudá-lo na ação, ele não entendeu as intenções do amigo e, em função da preocupação com seus estudos, não concordou com ele. Foram os produtores do documentário Pixo (2009), que Ivson já ajudava a produzir, na época, que o convenceram do potencial da ação: [...] eu não via essa possibilidade de, né, eu tinha essa preocupação de não prejudicar ele. Mas, quando alguns produtores que eu tava trabalhando, o João Wainer e tal, os caras do Pixo, eles falaram pra mim que o que o Rafael tava propondo ia mudar tudo na pixação. Porque, eles já tavam num nível, o Rafael tava num nível, é, de conhecimento cultural que a gente não conseguia acompanhar ele. A gente falava até que ele tava ficando doido, na época. [...] Porque, né, o cara tinha estudado. Quando eu comecei a entender ele que as coisas mudaram, porque ele precisava de mim pra tocar essa revolução, né, tipo, ele precisava da minha influência com os pixadores pra tornar isso uma revolução coletiva. Então, quando os diretores do Pixo me ajudaram a entender o Rafael, e aí que 54 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. Idem anterior. 56 Ibidem. 57 Ibidem. 58 CAPRIGLIONE, Laura. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 18 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1807200826.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 59 Mais informações sobre o Cidade Limpa disponíveis em: <http://ww2.prefeitura.sp.gov.br/cidadelimpa/conheca_lei/conheca_lei.html>. Acesso em 26/01/2015. 60 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 55 78 eu me convenci de... Eu falei: “não, tudo bem, vamo fazer então, vamo fazer essa bagunça no seu TCC”. (DEPOIMENTO) O passo seguinte foi, então, a convocação dos pixadores a fazerem parte da ação, o que foi feito a partir da distribuição do panfleto abaixo: Imagem 961: panfleto de convocação para a invasão ao Centro Universitário Belas Artes.62 Então, por volta das 21 horas do dia 11 de junho de 2008, cerca de 40 pixadores chegaram a pé à faculdade, vestindo roupas largas, bonés, alguns ocultando os rostos com máscaras para pintura ou improvisadas com camisas. Em pouco tempo, tomaram o prédio e pixaram a fachada, as paredes e corredores internos, as salas de aula, os quadros de aviso, tudo. Para chegar àquilo que não estava ao alcance das mãos, os jovens subiam uns nos ombros dos outros, em grupos de até três, pixando os lugares mais altos. Algo do resultado da ação dos pixadores pode ser visto nas imagens abaixo: 61 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157623930171729/>. Último acesso em 23/01/2015. 62 Transcrição do texto do panfleto: Attack Pixação. Artistas e arteiros, no dia 11 de junho, quarta feira, reuniremos no terminal ao lado do metrô Vila Mariana as (sic) 9 da noite, para levantarmos a bandeira da pixação, marcando história e envadindo (sic) o circuito artístico. “Devastaremos” no pixo o centro acadêmico renomeado (sic), e o mais antigo de São Paulo. Se possível resgatem frases de protesto. Viva a pixação. A arte como crime. Crime como arte 79 Imagens 1063, 1164 e 1265: invasão ao Centro Universitário Belas Artes. 63 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157623930171729/>. Acesso em 23/01/2015. em: 80 A imagem 10 apresenta o que parece ser a recepção do Centro Universitário Belas Artes com a parede atrás de um balcão completamente tomada pelo pixo. Aparecem a frase “Abra os olhos e verá a inevitável marca na história”; o símbolo do anarquismo; o desenho de um monociclo, e duas assinaturas cortadas pela imagem. As letras da frase são de forma, comuns e totalmente legíveis, enquanto as das assinaturas possuem as formas longas e pontiagudas características do tag reto paulistano. A imagem 11 apresenta um corredor da faculdade, também tomado pelo pixo, e cinco pessoas que parecem ser alunos do Centro, e não pixadores (portam mochilas, bolsas e cadernos). Na proteção de vidro do que parece ser um quadro de avisos, há a frase “antes o barulho ensurdecedor”, em letra cursiva e legível. Assinaturas ocupam divisórias de vidro e uma porta de madeira. Em função dos cortes das imagens e das pessoas presentes, não é possível tentar identificá-las. A imagem 12 mostra oito pixadores pixando a fachada do prédio da faculdade. Todos usam blusas e calças ou bermudas largas e bonés, e quase todos portam latas de spray. Sete deles estão em ação, pixando; dois estão no chão, quatro no parapeito das janelas do primeiro andar, e um em cima de um aparelho de ar condicionado, acima de uma janela do primeiro andar. Na fachada, há assinaturas diversas, o desenho de um monociclo (que também aparece na imagem 10), uma frase cortada por uma pessoa (que não se pode assegurar ser uma pixador, pois não está em ação e não há spray visível), com as palavras “belas artes” escritas em letras de forma legíveis. Segundo Djan Ivson, aquela foi a primeira vez que os pixadores deixaram de lado seus rolês pessoais e saíram juntos pela pixação, como uma causa coletiva: “a gente tinha uma revolução pra tocar, né?” (DEPOIMENTO) 66. De acordo com matéria da Folha de S. Paulo67, funcionários e alunos da faculdade presentes se assustaram com a ação. Uma funcionária teria levado um jato de spray no rosto ao tentar impedir um pixador. Trinta seguranças do Centro Universitário tentaram interromper a ação. Um pixador teria pedido para terminar a frase que estava pixando e levado um soco de 64 Idem anterior. Fonte: Folha Online. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portasda-bienal-pixo-busca-modelo-de-negocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 66 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 67 CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 65 81 um segurança. Ao revidar, levou outro, e a confusão se generalizou. A polícia foi chamada e cinco viaturas chegaram rapidamente. A maioria dos pixadores conseguiu fugir, mas sete – Rafael Augustaitiz entre eles – foram detidos. Ainda de acordo com a mesma matéria, ao ser levado pela polícia, Augustaitiz gritava: “olha aí, registra, isso é um artista sendo preso”. Enquanto o formando pixador caracterizava a invasão que arquitetou como “ação performática e de protesto68”, “uma intervenção para discutir os limites da arte e o próprio conceito de arte”69, alunos, professores, coordenadores e outras pessoas que testemunharam o ocorrido discordavam: Terrorismo. O que aconteceu aqui é terrorismo. Se isso é arte, então o maior artista do mundo é o Osama Bin Laden e o buraco das torres gêmeas é uma obra-prima. (DEPOIMENTO DE ALUNO DO CENTRO) Eu pago R$ 1.500 de mensalidade no curso de arquitetura porque trabalho e minha mãe também dá um duro danado para me manter aqui. Aí vem um filho da mãe dizer que fez essa porcaria toda porque a gente é tudo burguesinho. Ora, vai estudar, se preparar. (DEPOIMENTO DE ALUNA DO CENTRO) Um ato de vandalismo que extrapolou os limites da ação civilizada. (DEPOIMENTO DE PROFESSORA) 70 De acordo com a Folha de São Paulo 71, Rafael Augustaitiz justificou a invasão em um texto de 28 páginas72, da seguinte forma: Somos abusados? Que se foda! É um orgulho para vocês eu estar dentro dessa podre faculdade. Não sou seu filhote, não preciso do seu aval. A arte hoje em dia é para quem está na pegada. Para os bunda-moles ela morreu faz é tempo. (DEPOIMENTO)73 68 CAPRIGLIONE, Laura. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 18 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1807200826.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 69 Fala extraída de: CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 70 Idem anterior. 71 CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 72 Não foi encontrada nenhuma publicação de tal texto. 73 Fala extraída da matéria citada na nota anterior. 82 Na noite seguinte à ação, os outros 36 formandos se reuniriam para, segundo a professora e coordenadora do curso de Artes Visuais, Helena Freddi, “processar esse trauma”74. A faculdade já estava novamente limpa, sem vestígios da invasão. Augustaitiz protestou: “O impulso e a cegueira fizeram com que apagassem a minha obra. Quem vai me indenizar?”75. Helena Freddi teria enviado, dias depois, uma carta à reitoria condenando oficialmente a ação do aluno: “Considero criminosa a ação do aluno. Não considero esta ação como arte. Não considero a possibilidade de aceitar essa manifestação como trabalho de conclusão de curso”76. Alexandre Estolano, supervisor acadêmico do Centro Universitário, declarou que a instituição estava interessada em discutir limites e transgressões, mas não daquela forma. Para isso, um seminário sobre o tema seria realizado em agosto, com o título Limite e transgressão: até onde vai a arte e a liberdade de expressão, com a participação por vários profissionais e interessados no tema, mas sem a presença de pixadores 77. Então, no dia 17 de julho de 2008, pouco mais de um mês após a invasão e após decisão de uma junta avaliadora, Rafael Augustaitiz foi avisado pelo reitor da faculdade, Paulo Antônio Gomes Cardim, de que havia sido reprovado e expulso do curso por “prática de atos de vandalismo, lesivos à propriedade particular e (...) incongruentes com o espírito universitário; agressão ou ofensa a funcionários; ato sujeito a ação penal” 78. Um abaixoassinado solicitando à faculdade a concessão do direito de Rafael Augustaitiz se defender começou a circular. Segue um trecho do texto do documento: “Pixação” pode ser crime (?), mas também é arte, e a faculdade perdeu a chance de surfar na vanguarda da mais moderna e atual de todas elas. Sempre foi assim. O Moma (Museu de Arte Moderna de Nova York) torceu o nariz para os trabalhos de Andy Warhol e Basquiat foi ridicularizado pelos 74 Idem anterior. Fala extraída de: CAPRIGLIONE, Laura. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 18 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1807200826.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 76 Idem anterior. 77 CAPRIGLIONE, Laura. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 18 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1807200826.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 78 Fala extraída da matéria citada na nota anterior. 75 83 mesmos acadêmicos que hoje o idolatram. A arte de verdade incomoda e às vezes demora a ser entendida79. Segundo a Folha de S. Paulo, os grafiteiros Gustavo e Otávio Pandolfo, que formam a famosa dupla Osgemeos, assinaram a lista80. Contudo, a instituição não voltou atrás na decisão. 5.1.1. Tensões entre consenso e dissenso Rafael Augustaitiz alcançava um lugar privilegiado no campo da arte: formando no curso de Artes Visuais de uma faculdade renomada de São Paulo, com dia, hora e espaço para ter seu trabalho exposto junto ao dos seus colegas, precisava apenas dar um último passo para concluir sua formação e adquirir, assim, certa autonomia para propor seus trabalhos. Decidido a levantar a discussão sobre o pixo no âmbito da arte contemporânea, Augustaitiz poderia ter optado por dialogar sobre modos institucionalmente toleráveis de fazê-lo, como a partir de representações da estética da pixação, ou de uma performance individual, por exemplo. Mas, parece que a representação não era suficiente: o formando pixador quis levar o pixo da forma como ele ocorre na rua para dentro do Centro Universitário. A pixação enquanto tema incomodou aos professores de Rafael. Mas a imagem de 40 pixadores chegando a pé e pixando cada espaço do prédio da faculdade na noite de exposição dos trabalhos dos formandos parece ter extrapolado qualquer possibilidade de compreensão da relação entre a expressão e a arte. A agressividade do ato, dos gestos, da presença massiva daqueles indivíduos que até então atuavam na cidade encobertos pela noite, não correspondia a nada do que era esperado para aquela noite, e os presentes não souberam como lidar. O número de seguranças presentes na instituição no momento da invasão não era muito menor que o número de pixadores; no entanto, não foram capazes de contê-los. O que ocorria ali parecia transbordar essa capacidade de contenção pela força física e pelo que deveria significar alguma autoridade naquele espaço; a força simbólica da ação era maior. Do lado dos pixadores, causava o anseio por alcançar cada superfície e deixar nelas as assinaturas e frases de contestação. Nos demais públicos presentes (alunos, professores, coordenadores, 79 CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 80 Idem anterior. 84 familiares dos formandos), causava o choque, a incompreensão, a revolta. Violência, polícia e prisão: foi só o que conseguiu encerrar a invasão. Parece que, naquela primeira ação coletiva dos pixadores, houve menos uma tentativa de abrir espaço para a pixação no campo da arte, e mais a de confrontar o discurso da arte com o da pixação: os lugares dados confrontados com os lugares tomados, a formatação e limitação de espaços com a exploração de toda superfície passível de ser ocupada; o discurso rebuscado com a ação agressiva e sem refinamentos; a formação erudita com a ausência de formalidades. Havia, ali, dois universos completamente díspares em choque, muito mais que em interação. A reprovação e a expulsão de Rafael pareceram querer dizer que, já que ele não queria o lugar que lhe era dado ali, com um espaço de exposição a ele designado enquanto um formando prestes a conquistar seu diploma, não haveria nenhum outro lugar disponível dentro da instituição para ele ou para sua expressão. A forma como, no dia seguinte, todos os vestígios materiais da invasão haviam sido cobertos também mostra a intenção da faculdade de apagar aquele evento do cotidiano e da história da instituição. Ainda que pareça não ter havido ali, de fato, uma tensão entre consenso e dissenso, em função de uma aparente recuperação total da autoridade sobre a distribuição de lugares e funções naquele âmbito após o apagamento dos vestígios materiais e visíveis daquela ação, é preciso ponderar que dificilmente as marcas simbólicas daquela experiência tenham sido apagadas. Mais a frente será observado, inclusive, como a apresentação de novos eventos recorre ao resgate deste primeiro para sua contextualização. E, a cada vez que os pixadores narram a invasão ao Centro Universitário, há uma “re-encenação” do dano e do dissenso e a criação de uma memória daquele desentendimento e das ações de resistência, pois, para Rancière, como foi visto anteriormente, a política “é mais uma dinâmica que produz, refaz e pensa sobre “cenas” do que algo que se desdobra sob a forma de uma disputa argumentativa de interesses” (OLIVEIRA e MARQUES, 2014, p.76). Ou seja, é a contestação da ordem que subjaz determinada cena a partir da inserção, ali, de sujeitos, nomes, gestos e modos de enunciação que antes não existiam naquele âmbito, dando a ver e tornando comum um mundo que não era considerado, e possibilitando, assim, a abertura de novos horizontes possíveis. Certamente, a pixação e os pixadores, ali, se deram a ver de um modo inédito e perturbador. A seguir, será visto como esses indivíduos irrompem e se fazem vistos nessa cena. 85 5.1.2. Formas de inscrição e visibilidade Sobre a forma como se os pixadores se inscreveram naquela cena, é importante lembrar as considerações feitas por Scott (1990) sobre a aparência e as aglomerações, trazidas no Capítulo 3. Para o autor, um agrupamento de pessoas sem supervisão ou controle de representantes do poder vigente, por si só, representa uma ameaça para esse poder, não tanto por aquilo que ela é, quanto por aquilo que ela parece ser. Segundo o autor, essa aparente ameaça se dá por apresentar formas de organização entre subordinados que não são esperadas ou reconhecidas pelos dominantes. E, se eles se organizam, eles podem levar a público e a cabo sua insubordinação, deixando ver as falhas e as faltas no tecido social (ou na “ordem policial”), pretendido como liso e completo. Então, o fato de Augustaitiz planejar uma ação coletiva surpresa ao invés de negociar uma representação individual (ou mesmo de agir individualmente de forma não programada pela instituição) pode ser vista como a intenção de mostrar a força, a união e a capacidade de organização dos pixadores. Na convocação que fez a eles através de um panfleto, visto na imagem 11, Augustaitiz chama os pixadores por “artistas e arteiros”, dois adjetivos diferentes ligados a dois sentidos da palavra “arte”: artista é quem produz arte no sentido oficial, enquanto expressão artística; arteiro é quem faz arte no sentido popular, de bagunça. Os pixadores, ali, fariam os dois, ao mesmo tempo: apresentariam a sua expressão, defendida por eles como artística, e bagunçariam, desarranjariam o espaço e as expectativas para aquele evento. No panfleto, a principal convocação é para o uso de “frases de protesto” para levantar “a bandeira da pixação” e “marcar história”, ou seja, a intenção parece ser, de fato, a apresentação da pixação enquanto um movimento forte e com ideias e princípios comuns. As sugestões contidas no material são “Viva a pixação” e “Arte como crime. Crime como arte”. Como já foi apontado, a pixação é considerada “crime contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural” de acordo com o artigo 65, seção IV, da Lei Nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 81, que dispõe sobre “condutas e atividades lesivas ao meio ambiente”. Djan Ivson, em entrevista ao programa Palavra Ética (2012)82, contesta o enquadramento da prática como crime ambiental, 81 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm>. Último acesso em 03/02/2015. ENTREVISTA COM DJAN IVSON. Palavra Ética. Belo Horizonte: TV Comunitária, 04 de outubro de 2012. Programa de TV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MIs-pJePHHo>. Último acesso em 20/01/2015. 82 86 dizendo que percebe aí uma contradição, pois a pixação prejudicaria muito menos o meioambiente, por sua efemeridade, do que um prédio, um muro, que limitam a circulação, o acesso. Por isso, Ivson afirma que a pixação é um investimento da integridade física e jurídica do pixador83. Ele mesmo já chegou a ter dez processos simultâneos contra ele 84, o que quase o impediu de participar da mostra em Paris, para a qual foi convidado. Mesmo com todos esses riscos, os pixadores permanecem em ação: “é um movimento que ele é considerado crime, ele é reprimido, ele é odiado. A gente apanha, a gente responde processo criminal, mas a gente tá sempre ali” (DEPOIMENTO)85. Talvez por representar um ponto tão importante na prática cotidiana da pixação é que a questão criminal tenha sido assumida e tensionada com a da arte, configurando-se, ambas, como configuradoras da expressão. Talvez preocupados com a questão criminal, muitos pixadores que responderam à convocação de Augustaitiz pareciam ainda ter certa preocupação com a preservação de suas identidades, o que é possível perceber pelo uso de máscaras, bonés, calças e camisas longas e largas, que não deixavam ver peculiaridades do corpo ou do rosto. Na mídia, o único nome divulgado entre os dos pixadores é o de Rafael Augustaitiz, e suas falas e textos para explicar a ação são trazidos de forma fragmentada em duas matérias: uma sobre a invasão, e uma sobre a expulsão do aluno. Nesses textos, Ivson não aparece ainda, e os relatos sobre sua participação só foram obtidos a partir da entrevista realizada pessoalmente com o pixador. Quando Augustaitiz foi detido pela política, gritou que um artista estava sendo preso. Para ele, o Centro Universitário Belas Artes tinha sorte de tê-lo como aluno, e não o contrário. Por suas declarações, é possível inferir que ele considera a pixação, talvez, como a última das expressões artísticas espontâneas, ousadas e desafiadoras. Parece haver uma barreira, contudo, na própria identificação da pixação como arte. Uma barreira criada, provavelmente, por sua compreensão enquanto um ato de vandalismo e depredação; uma visão que, em um ciclo retroalimentador, pode ser compreendida como causa e consequência de a pixação ser classificada como crime. 83 ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 21/01/2015. 84 MARTÍ, Silas. Pixador da Bienal vira celebridade e faz longa sobre movimento. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de março de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/03/1062064-pichador-da-bienal-vira-celebridade-e-faz-longasobre-movimento.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 85 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014. 87 A forma das “letras pontudas de difícil decifração”86 é apresentada como um dificultador por ser ilegível à maioria das pessoas. As inscrições se configuram como um saber próprio, uma espécie de alfabeto particular, que pode ser aprendido, como qualquer outro. Contudo, a marginalização da imagem do pixador faz com que esse aprendizado não seja considerado, já que algo produzido por indivíduos vistos como vândalos sequer é reconhecido como uma forma de conhecimento. É interessante observar, nesse sentido, que os pixadores jogam com isso, deixando legíveis os textos que eles querem que sejam lidos por todos e mantendo a própria escrita para suas assinaturas e de seus grupos. Dessa forma, como a inscrição desses indivíduos naquele espaço se dá primordialmente por meio das marcas e inscrições, suas demandas acabam sendo quase que deliberadamente ignoradas. 5.1.3. Subjetivação política Um primeiro ponto a ser observado aqui é a própria natureza contraditória de Rafael Augustaitiz, um pixador universitário estudante de artes: dois nomes que poderiam ser pensados como excludentes dentro dos parâmetros comuns de visibilidade da pixação enquanto crime, vandalismo, ou, no mínimo, algo feito por pessoas que não têm conhecimento ou ocupação, como pode ser visto nos depoimentos dos alunos e professores do Centro Universitário mostrados na reconstituição da cena. O mesmo ocorre, ainda que em outro sentido, do lado dos pixadores, o que pode ser comprovado pelo modo como Djan Ivson fala de Augustaitiz como um “gênio”, um “profeta” que possui mais conhecimentos do que os demais pixadores e, por isso, se faz tão difícil de compreender. Ser universitário e pixador rompe, assim, com as expectativas para cada um dos nomes e apresenta um sujeito situado em um entre-lugar criado do “excesso de palavras” que o descolam de atribuições determinadas por um único nome. Isso parece deixa-lo um pouco distante tanto da condição de universitário, não se sentindo completamente pertencente àquele espaço (o que é visto em falas como “essa podre faculdade”; “não sou seu filhote, não preciso do seu aval”), ou ao universo da pixação (a necessidade do apoio e da influência de Djan Ivson para mobilizar os pixadores; o fato de que ninguém compreendia direito o que era dito por Rafael, como foi falado por Ivson durante a citada entrevista: “o Rafael tava num nível, é, de conhecimento 86 CAPRIGLIONE, Laura. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 18 de julho de 2008(a). Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1807200826.htm>. Último acesso em 21/01/2015. 88 cultural que a gente não conseguia acompanhar ele. A gente falava até que ele tava ficando doido, na época. [...] Porque, né, o cara tinha estudado”). Em seu relato sobre o primeiro evento, Djan Ivson assume dois nomes, também dificilmente concebidos para um só sujeito: pixador e produtor de cinema. Inclusive, no momento do planejamento da invasão, um ponto merece atenção: quando Rafael Augustaitiz convidou Djan Ivson para ajudá-lo a promover a ação em seu TCC, ele não aceitou por estar preocupado com o destino acadêmico do amigo. Foi preciso que os outros produtores do filme Pixo (2009) o encorajassem, dizendo que aquela ação mudaria tudo na pixação. A partir daí, Ivson passa a defender que havia uma “revolução” a ser feita e que ele tinha nela um papel fundamental. Essa questão é interessante porque, por mais que Augustaitiz pretendesse que a invasão se desse como na rua – sem aviso, sem autorização, sem intermédios –, foi necessário o aconselhamento de pessoas externas àquele universo para que ela se efetivasse da maneira como ele planejava (e para a qual, segundo Ivson, ele precisava do seu apoio e influência). Não é possível desconsiderar – embora seja impossível afirmar que houve tal intenção – que a invasão (que é mostrada no filme, lançado em 2009) e a potencial atenção que ela chamaria poderiam se converter em material e atenção para o filme, àquela época, em fase de produção. Com ou sem a existência ou o compartilhamento de tais intenções como pano de fundo, o fato é que a invasão apontou para a inserção da pixação em um campo que sequer a considerava. Enquanto Augustaitiz defendia aquela ação como seu TCC, e, portanto, como uma obra de arte, as palavras utilizadas pelo público para designá-la foram bem diferentes: “vandalismo”, “terrorismo”, “crime”, “trauma”. A invasão ao Centro Universitário Belas Artes e seus desdobramentos deixaram ver que, ali, não havia espaço para a pixação. É preciso ponderar, contudo, que, por parte dos pixadores, também não houve proposta alguma de interação consensual com o Centro, já que a ideia de Augustaitiz foi realizar uma ação como na rua: sem aviso prévio, sem pedido de permissão, sem negociação de espaços. Dessa forma, diante do ataque agressivo e surpresa, parece difícil pensar em formas para o estabelecimento de um diálogo. Um debate sobre arte, limite e transgressão até foi programado para os meses seguintes, mas os pixadores não figurariam entre os convidados. Além disso, o programa MTV Debate teve um episódio dedicado a discutir o evento. Foram convidados representantes de diversas esferas envolvidas (faculdade, polícia, justiça, mídia, galerias de arte), mas nenhum pixador estava presente. Esses debates sobre o assunto configurados sem nenhum representante dos protagonistas da ação significam que eles não 89 foram reconhecidos como interlocutores válidos. Isso se deve ao fato de que os pixadores não foram reconhecidos ali como artistas, mas como vândalos, perturbadores da ordem e criminosos, e, como tais, não tinham que ter suas palavras reconhecidas como discurso. A proposta de Rafael Augustaitiz para discutir o conceito de arte e seus limites alcançava, assim, de um jeito tortuoso, aquilo a que se propunha: inserir a pixação na discussão sobre a arte contemporânea – uma discussão permeada por questões estéticas e legais -, mas não conseguiu, naquele momento, fazer com que os pixadores fossem contados como sujeitos de ação e discurso válidos dentro daquela esfera. A reprovação de Augustaitiz e, principalmente, sua expulsão do curso, mostraram que, naquele contexto, o limite da arte terminava onde o da pixação começava. Para Rancière (1995; 1996), o processo de subjetivação política ocorre em duas instâncias: na operação, pelo sujeito, da união e separação dissensuais entre nomes, lugares e funções; e na emancipação construída pelo trabalho com a linguagem a partir da tomada e performance da palavra, “que não exprime simplesmente a necessidade, o sofrimento e o furor, mas manifesta a inteligência” (RANCIÈRE, 1996, p.38). Dessa forma, ainda que os pixadores tenham se inscrito naquela cena a partir de novos nomes, revelando novas capacidades, seu processo de subjetivação política encontra um entrave quando eles não conseguem fazer com que a forma com que tomam e trabalham a palavra seja ouvida/lida como discurso e manifestação da inteligência. 5.2. Reconstituição da invasão à Galeria Choque Cultural Ainda como um desdobramento da invasão ao Centro Universitário Belas Artes, Djan Ivson87 conta que houve um episódio do programa MTV Debate (agora extinto) especial sobre o assunto. Para tanto, foram convidados para o debate, que era sempre mediado pelo apresentador Lobão, um representante da faculdade, um policial, um advogado, e Baixo Ribeiro, proprietário da Galeria Choque Cultural, que se coloca como único a expor trabalhos de artistas de rua e do underground. Ivson questiona: “E aí, não tinha a gente lá, né? A gente ficou vendo um debate sobre nós só pela mídia” (DEPOIMENTO). Segundo o pixador, Baixo Ribeiro teria questionado a postura repressora da faculdade, dizendo que eles, em sua galeria, apoiavam todo tipo de intervenção urbana e a representavam. Ivson diz que, diante de tal declaração, Rafael Augustaitiz, “o mentor 87 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 90 intelectual de todas as intervenções” 88, o teria convidado para uma nova invasão, dizendo que, se eles eram representantes das intervenções urbanas, eles não iriam se incomodar. Novamente, foram distribuídos panfletos convocando os pixadores a participarem da ação: Imagem 1389: panfleto de convocação para a invasão à Galeria Choque Cultural. 90 No dia e horário combinados, cerca de 30 pixadores invadiram a galeria, que estava em funcionamento, e pixaram fachada, paredes e obras expostas, em uma ação que durou em torno de cinco minutos91 e que pode ter partes do seu resultado vistas nas imagens abaixo: 88 Idem anterior. Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157624054565690/>. Acesso em 23/01/2015. 90 Transcrição do texto do panfleto: Atack Part 2 (a caminho da revolução). Evadiremos (sic) com nossa arte protesto uma “bosta” de uma galeria de arte “Choque Cultural”. Segundo sua ideologia, abriga artistas do “underground” então é tudo nosso. Declararemos total protesto. Local de encontro: Praça Benedito Calixo. Rua Cardial Arco Verde com Rua Lisboa, próximo dos metrôs Clínicas e Sumaré. Horário: 15:00h. Sábado = 06-09-08. Resgatem frase. Viva a pixação. Arte como crime.Crime como arte. “Todos pelo movimento pixação”. 91 MERCIER, Daniela. Cerca de 30 pichadores invadem galeria de arte danificam obras expostas. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 09 de setembro de 2008. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0909200835.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 89 91 Imagens 14, 15 e 16: invasão à Galeria Choque Cultural. 92 92 Fonte das imagens: Flickr Pixo Art Atack. Disponível <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157624054565690/>. Acesso em 23/01/2015. em: 92 A imagem 14 apresenta cerca de 10 pessoas, das quais seis estão pixando as paredes de uma sala da Galeria Choque Cultural e os quadros nelas afixados. A maioria dos presentes usa camisa e boné e alguns são vistos com mochilas. Parece não haver preocupação em esconder os rostos. A imagem 15 apresenta outra sala da galeria, já completamente tomada pelo pixo. Paredes, quadros, e o que parece ser um display com revistas estão pixados com as assinaturas e símbolos dos grupos. Foram identificados: “Ruínas”, “CRB”, o símbolo do grupo “Os + Fortes” (um círculo com o símbolo “+” e um “F” dentro), além das palavras “loucura” e “máfia” (esta última parte de uma frase cortada pela imagem). Um pixador aparece entrando na sala, portando uma lata de spray na mão. Através da porta pela qual ele entra, é possível ver outros ambientes da galeria totalmente pixados. A imagem 16 apresenta quatro rapazes em frente à galeria (um deles entrando). Dois estão pixando a fachada: um no chão, com um rolinho ou pincel e tinta branca, e um pendurado na janela do primeiro andar, pixando acima dela com spray. Outras assinaturas já ocupavam a fachada, mas não puderam ser identificadas. Rafael Augustaitiz não quis comentar a invasão com a imprensa, respondendo, apenas, que “a ação falava por si mesma” 93. De acordo com matéria da Folha de S. Paulo 94, os pixadores fariam parte de um movimento chamado PiXação: Arte Ataque Protesto, que estaria questionando a galeria e os seus proprietários enquanto representantes do movimento de rua, além de protestar contra a comercialização de arte de rua. Procurado pela Folha de S. Paulo, Baixo Ribeiro apenas disse que a ação “teve pouca importância”95. De acordo com Djan Ivson, no entanto, a reação dos proprietários da galeria foi além: “eles deram queixa crime, fecharam a galeria, alegaram prejuízo, vandalismo, e tal. E, assim, a pixação é legal até que não seja no meu muro, né?” (DEPOIMENTO) 96. De acordo com matéria da Folha, um boletim de ocorrência classificando a ação como dano ao patrimônio foi, de fato, gerado, mas a polícia aguardava a representação dos proprietários 93 Fala extraída de: MERCIER, Daniela. Cerca de 30 pichadores invadem galeria de arte danificam obras expostas. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 09 de setembro de 2008. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0909200835.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 94 Matéria citada na nota anterior. 95 Idem nota 7. 96 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 93 contra o grupo de pixadores para que um inquérito fosse aberto. Não foram encontradas informações sobre o andamento do caso. 5.2.1. Tensões entre consenso e dissenso A realização de um programa de televisão, o MTV Debate, sobre a invasão ao Centro Universitário Belas Artes sem a presença de nenhum pixador irritou a Rafael Augustaitiz e a Djan Ivson. As declarações de Baixo Ribeiro, proprietário da galeria Choque Cultural, condenando a reação da faculdade e identificando a si e à sua galeria como apoiadores e representantes de todas as formas de intervenção urbana, significaram para Augustaitiz um convite, que logo foi feito a Ivson e extendido aos pixadores em mais uma convocação. Então, numa tarde de sábado, com a galeria em pleno funcionamento, cerca de 30 pixadores chegaram e, em cinco minutos, ocuparam todas – inclusive as obras expostas - as superfícies da galeria com suas assinaturas, frases e símbolos. Na rua, os pixadores possuem uma regra tácita de não atropelar um trabalho alheio, a não ser que haja um conflito estabelecido com quem o produziu (seja pessoal, entre grupos, ou diante do que o artista representa ou não no contexto da rua). O fato de os pixadores não terem poupado as obras expostas na galeria em sua ação pode ser entendido como uma postura de confronto diante de artistas que se dizem vindos da rua, mas que não a representam ali, naquele espaço, com obras feitas quase que sob encomenda para o mercado. Aqui, é importante lembrar o exposto no Capítulo 3 sobre a postura do próprio Baixo Ribeiro, que, em entrevista já citada a Franco (2009), se mostrou indiferente a um artista representado por sua galeria continuar ou não com um trabalho na rua. Sua preocupação estaria na produção de obras feitas para uma boa venda (quadros maiores precisam de salas maiores e, portanto, serão vendidos a clientes com maior poder aquisitivo, o que incide sobre o preço da obra). O que se pode notar desse contexto é que, no debate estabelecido na MTV, Baixo Ribeiro quis se apresentar como ao lado dos pixadores e de toda intervenção urbana, contra toda forma de repressão a tais expressões, como se houvesse um consenso inquestionável sobre sua pretensa representação desse universo. Enquanto os pixadores se incomodavam com a ausência de um representante, Ribeiro estava ali para ocupar aquele lugar, que ele assumia sem problemas. Os pixadores, então, criaram a cena em que as falhas daquela representação se fizeram visíveis: a galeria não os representava; Baixo Ribeiro não os representava; os 94 artistas ali expostos não os representavam e nem à rua. Segundo Rancière, é isso que configura uma cena de dissenso: a construção de uma cena em que uma pretensa igualdade é verificada a partir do aparecimento, da ação e da tomada de palavra de sujeitos que não eram contados ali. Se Ribeiro dizia que a pixação fazia parte do contexto representado por ele, o que os pixadores fizeram foi conferir as condições e os limites dessa aceitação e desse pertencimento. Apesar de alegar que a ação “teve pouca importância”, a galeria ficou fechada por um tempo e um boletim de ocorrência foi feito na polícia. A fala de Djan Ivson representa o dissenso criado entre as declarações de Ribeiro e suas reações diante da ação dos pixadores de forma simples: “a pixação é legal até que não seja no meu muro, né?”. 5.2.2. Formas de inscrição e visibilidade A única matéria da Folha de S. Paulo sobre a invasão à Choque Cultural apresenta Rafael Augustaitiz como o organizador da ação e resgata a invasão ao Centro Universitário Belas Artes, meses antes, assim como a detenção de Augustaitiz pela polícia e a sua expulsão da faculdade em função do ocorrido. Djan Ivson ainda não aparece, na imprensa, como personagem das ações. Augustaitiz, que Ivson identifica como “o mentor intelectual de todas as intervenções”, procurado pela imprensa, não quis dar explicações sobre a ação, dizendo que ela falava “por si mesma”. A imprensa, talvez em busca de nomear e classificar o grupo, os identificou como o movimento PiXação: Arte Ataque Protesto, embora esse nome não tenha sido mencionado em nenhum outro material analisado nesta pesquisa. Algo semelhante é visto ao fim do panfleto de convocação para a invasão, na frase “Todos pelo movimento pixação”, escrita toda em caixa alta, como todo o texto da peça, não permitindo identificar se “movimento pixação” estaria sendo usado como um nome. Outros elementos do texto do panfleto ajudam a identificar como se apresentam os pixadores àquele contexto. O título é “Atack Part 2 (a caminho da revolução)”, no qual se percebe a ideia de continuidade com a primeira invasão, ao Centro Universitário Belas Artes, e o apontamento para uma “revolução”, embora não fique claro, ali, que tipo de transformação é esperada e para quem/que. A pixação é identificada como “arte protesto”, enquanto a Choque Cultural é chamada de “uma „bosta‟ de uma galeria de arte”. A justificativa da 95 invasão é colocada: “Segundo sua ideologia, abriga artistas do „underground‟ então é tudo nosso. Declararemos total protesto”. Assim como no panfleto de convocação à invasão da faculdade, é solicitado que algumas frases sejam pixadas. Os exemplos são os mesmos do anterior: “Viva a pixação” e “Arte como crime. Crime como arte”. A orientação pelo uso das frases pode ser visto como uma forma de performar a palavra naqueles espaços, já que as assinaturas e símbolos não são lidos por todos, além de funcionarem mais como uma identificação pessoal ou coletiva. Observando as imagens do resultado da invasão, é possível ver como há uma diferença proposital no formato das letras das assinaturas e das palavras que se deseja que sejam legíveis a qualquer um. Os pixadores selecionam, assim, que parte de sua ação se destina à compreensão geral e que parte permanece codificada para seu próprio entendimento. Sobre os corpos e a aparência dos pixadores, ao contrário da primeira invasão, parece não haver preocupação em esconder-se. A maioria dos que aparecem nas imagens usa boné, que pode ocultar a face no caso de uma gravação de segurança, mas, nas fotos, muitos rostos são vistos com bastante clareza, alheios ao risco das imagens se converterem em provas, no caso da apresentação de uma denúncia. A aparência, como descrita por Arendt (2000; 2007), ou seja, como a reunião pública de indivíduos pela ação e pelo discurso, parece se realizar ali e, para a autora, é nesse movimento que os sujeitos podem adquirir poder, pois ainda que um indivíduo tenha, isoladamente, grande força, é na união com outros indivíduos que ele pode, junto com os demais, possuir poder. Contudo, a forma com que os pixadores aparecem naquele espaço – pela invasão, pela imposição das inscrições que marcam paredes e obras – diverge em muitos aspectos do que a autora considera um modo de aparência coletiva que guarda tal potência de poder: O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades. (ARENDT, 2007, p.212) A invasão, certamente, não se configura como um âmbito convencional em que as ações e discursos são dirigidos à formação de laços e ao entendimento mútuo, mas muito mais como uma cena dissensual em que os laços determinados por disposições institucionais, mercadológicas ou mediáticas são questionados (OLIVEIRA e MARQUES, 2014), e o são 96 por meio daquilo que Djan Ivson chama de um “agressão estética” 97. Contudo, ainda que de forma agressiva, o que a ação dos pixadores na Choque Cultural se propunha era, justamente, descortinar a verdadeira visão que a galeria tinha da pixação após a declaração de Baixo Ribeiro de que ele a apoiaria e representaria, além de construir a imagem da pixação como uma “arte protesto”. Ou seja, havia, ali, uma intenção de revelar realidades e criar novas, talvez não do modo ideal como Arendt descreve, mas por meio da transgressão, do litígio e da exposição do dano, como propõe Rancière. 5.2.3. Subjetivação política Essa invasão não apresentou desdobramentos imediatos que dessem a ver mais evidentemente o reconhecimento ou a negligência da fala dos pixadores como discurso e, portanto, deles próprios como sujeitos contados em uma cena comum. Contudo, há indícios que permitem certas inferências. Por exemplo, quando Baixo Ribeiro alega que a ação dos pixadores não teve importância – o que parece impossível, dada a completa apropriação dos espaços e obras da galeria, demandando um investimento de tempo e dinheiro para recuperação dos espaços e dos prejuízos – isso parece querer diminuir tanto o ocorrido como os próprios pixadores, negando, assim, qualquer possibilidade de interação e diálogo. Não assumir as proporções daquele evento e não chamar a atenção para ele também é uma forma de negligenciar a validade do discurso dos pixadores. Contudo, quando Rafael afirma que a ação falou por si só, negando a necessidade de mais explicações, ele também se mostrou indisposto a outros desdobramentos e interações. Assim, ele restitui à ação a sua importância simbólica: numa tarde de sábado, 30 pixadores se expuseram pela pixação e contra falsas representações das expressões artísticas da rua. Contestaram um pretenso consenso e uma pretensa igualdade que haviam sido atribuídos àquele espaço e mostraram, por sua ação e discurso, que não faziam parte daquele contexto, como foi insinuado pelo galerista. Com o cumprimento daquilo que foi proposto, foram embora, sem mais o que dizer. 97 ENTREVISTA COM PICHADORES. Altas Horas. São Paulo: Rede Globo de Televisão, 18 de maio de 2014. Programa de TV. Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/altas-horas/videos/t/programa/v/serginhogroisman-bate-um-papo-com-um-grupo-de-pichadores/3353635/>. Último acesso em 20/01/2015. 97 É importante lembrar que, para Rancière (1996), a interlocução política não se faz em uma cena que parte do pressuposto de que todos se entendem ou podem se entender, mas naquela onde há o litígio sobre o entendimento, em que todos os fatores – argumentação, objeto, mundo, etc. – devem ser construídos, e construídos a partir desse litígio. E o processo de subjetivação política parte, justamente, dessa “capacidade de produzir essas cenas polêmicas, essas cenas paradoxais que revelam a contradição de duas lógicas” (RANCIÈRE, 1996, p.52). Assim, se, por um lado, pode-se pensar que a fala de Ribeiro foi uma tentativa de reduzir a ação, por outro, pode-se pensar que o evento teve justamente a dimensão e a importância pretendida pelos pixadores, tendo sido construídas autonomamente por eles, atingindo a quem e a quê eles consideravam que deveria ser atingido. Não houve a tentativa de construir um entendimento, mas de desvelar propriamente o seu contrário. 5.3. Reconstituição da invasão à 28ª Bienal de São Paulo Já antes de seu início, a 28ª Bienal de São Paulo provocava polêmica ao optar por deixar o segundo andar do prédio do evento, no Parque do Ibirapuera (uma obra de Oscar Niemeyer), totalmente vazio e branco. O nome “Bienal do Vazio” superou a popularidade do escolhido pela curadoria, “Em Vivo Contato” (depois alterado para “Planta Livre”). De acordo com a curadoria, o vazio não significava uma crise da Bienal, mas uma opção por valorizar e discutir a arquitetura do prédio e por deixar o espaço aberto para possíveis propostas98. De acordo com Djan Ivson, os pixadores compreenderam a fala da curadoria como um convite: E daí em diante (após as invasões ao Centro Universitário Belas Artes e à Galeria Choque Cultural), a imprensa já começou a meio que dar a Bienal pra nós, falar que só faltava a Bienal pra gente, e tal. E aí, pra terminar de culminar tudo isso, teve aquela história da “Bienal do Vazio” aquele ano, né, que a Bienal ia deixar um andar vazio e o curador foi pra TV aberta falar que a Bienal daquele ano tava aberta a intervenções urbanas. O Rafael chegou e falou: “Djan, nós tamo 98 CYPRIANO, Fábio. Bienal abre no sábado com ameaça de pichação. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 24 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/459724bienal-abre-no-sabado-com-ameaca-de-pichacao.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 98 convidados”. Ah, beleza, fizeram um convite convocando a galera pra fazer essa ocupação. (DEPOIMENTO)99 A partir daí, seguiu-se o processo das invasões anteriores, com a convocação dos pixadores para participarem da ação, como é visto no panfleto abaixo, distribuído nos points e pela internet: Imagem 17100: panfleto de convocação para a invasão à 28ª Bienal de São Paulo. 101 Assim, dias antes da abertura da 28ª edição da Bienal de São Paulo, a curadoria concedeu uma entrevista coletiva à imprensa, na qual informava que sabia da possibilidade de uma invasão pelos pixadores e que haveria um esquema especial de segurança para combatêla. 99 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157623930292471/>. Acesso em 23/01/2015. 101 Transcrição do texto do panfleto: Atack Bienal. Nada do que suposto o natural, a simbólica e singular pixação paulistana, espancar na tinta, galerias e museus de arte, transcendendo “além do bem e do mal”, prestando seu papel aos “confortáveis”, contribuindo com a arte e com a humanidade. Progresso. Espancaremos na tinta a Bienal de arte, esse ano conhecida como Bienal do Vazio. Dia – 26/10/08 – Ponto de ônibus em frente o Detran. Horário: 18:00 horas. Submeteremos e ao mesmo tempo protestaremos, resgatem frases pelo povo. Humanismo. “Contamos com a presença de todos pixadores. (Todos pela pixação) 100 99 Estamos esperando esse tipo de ação e tomamos providências para evitá-la. Isso é um absurdo. (DEPOIMENTO DO CURADOR IVO MESQUITA) Nós sabemos que eles estão convocando gente da periferia da cidade para fazer isso, e essas pessoas não sabem o que elas vão encontrar. Em geral, quem faz esse tipo de ação o realiza à noite, mas aqui eles não sabem no que vão estar se metendo. É um lugar público e que terá muita segurança. [...] O que quem lidera isso quer fazer é aparecer na imprensa. E ele está até mesmo violando um código de ética dos pichadores que é não pichar em cima do trabalho de outros, caso eles venham pichar obras aqui. (DEPOIMENTO DA CURADORA ANA PAULA COHEN)102 Alheios às advertências dadas publicamente pela curadoria, no dia da abertura, 26 de outubro de 2008, às 19h30, cerca de 40 pixadores entraram como visitantes na Bienal e, chegando ao 2º andar, iniciaram as pixações, sendo aplaudidos por algumas pessoas presentes no local. A segurança agiu rapidamente e fechou o prédio para reter os pixadores, mas 20 deles conseguiram escapar antes. Os demais que ficaram retidos quebraram uma vidraça e fugiram103. Apenas uma pixadora foi detida pela polícia: Caroline Pivetta (ou Carol Sustos, como é conhecida entre os pixadores), para quem a ação teve como objetivo “chamar a atenção para esta arte marginal” 104. Abaixo, seguem imagens que permitem visualizar algo do que foi feito pelos pixadores no evento: 102 Falas extraídas de: CYPRIANO, Fábio. Bienal abre no sábado com ameaça de pichação. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 24 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/459724-bienal-abre-no-sabado-com-ameaca-depichacao.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 103 FOLHA ONLINE. Grupo invade a Bienal e picha o segundo andar. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 26 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/460634grupo-invade-a-bienal-e-picha-o-segundo-andar.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 104 Fala extraída de: CAPRIGLIONE, Laura. Ódio a pichadores me deixou tanto tempo presa, afirma jovem. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 20 de dezembro de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2012200813.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 100 Imagem 18, 19 e 20105: invasão à 28ª Bienal de São Paulo. 105 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157623930292471/>. Acesso em 23/01/2015. em: 101 A imagem 18 mostra três pixadores (entre eles, Caroline Pivetta) pixando uma das paredes do pavilhão da Bienal deixado em branco pelos curadores. Várias assinaturas já ocupam a parede. Não parece haver a tentativa de esconder a identidade. Os rapazes usam camisas e um deles, um boné. Carolina Pivetta usa jeans, camiseta (que deixa ver suas tatuagens) e cabelos presos, sem nada que oculte o seu rosto. A imagem 19 mostra uma visão ampla do pavilhão e, em primeiro plano, o guardacorpo do segundo andar tomado pelas assinaturas. A única identificável é “Lesados”. Na imagem 20, há uma parede com estrutura de metal e vidro, com uma assinatura em grande formato (que não foi possível identificar), feita em tinta branca, seguida da frase legível “isso q é arte”. No dia seguinte à intervenção, a organização da Bienal publicou uma nota lamentando o ocorrido, classificando-o como um ato de vandalismo, e informando o reforço da segurança para a continuidade do evento, inclusive com a implantação de detectores de metal e a proibição da entrada com bolsas grandes e mochilas. Segue trecho do comunicado publicado pela Folha de S. Paulo: Causa-nos profunda surpresa e pesar, ver que no momento em que a exposição Bienal se propõe como um espaço democrático, aberto ao público, hospitaleiro, recebamos uma manifestação completamente contrária a esse espírito. O vandalismo causado pela atitude autoritária e agressiva desses jovens representa uma ameaça à constituição de um espaço público coletivo, que respeite a integridade de cada cidadão e o patrimônio material e simbólico da nossa cultura106. A Bienal ficou fechada ao público por um dia para a remoção das pixações 107. A pixadora Caroline Pivetta, única a ser detida pela invasão, ficou presa por 54 dias, com dois pedidos de habeas corpus negados e diversas manifestações por sua liberdade ignoradas108. Na denúncia feita ao Ministério Público, consta que Pivetta se associou a 106 FOLHA ONLINE. Organização da Bienal remove pichações e reforça segurança. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 28 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/461213-organizacao-da-bienal-remove-pichacoes-e-reforcaseguranca.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 107 Idem anterior. 108 CAPRIGLIONE, Laura. Ódio a pichadores me deixou tanto tempo presa, afirma jovem. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 20 de dezembro de 2008. Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2012200813.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 102 “milicianos” com o objetivo de “destruir as dependências do prédio” 109. Para Augusto de Arruda Botelho Neto, advogado que assumiu a defesa da pixadora, a denúncia e todo o caso foram um “equívoco”, já que a pixação é considerada um crime ambiental, e não um crime de destruição de bem protegido por lei. Para ele, “não se aplica a „destruição‟. O muro pichado por ela foi pintado e continua lá. Não houve destruição nenhuma” (DEPOIMENTO) 110. O ato da prisão, a duração do encarceramento e as recusas aos recursos que poderiam fazer com que Pivetta aguardasse seu julgamento em liberdade chamaram a atenção, inclusive, do então Ministro da Cultura, Juca Ferreira. Djan Ivson explica como se deu essa relação: Durante a ação, teve a prisão da Carol, que acabou simbolizando mais aquele fato, porque o Ministro da Cultura saiu na nossa defesa, né? Porque, poxa, ele viu que nossa ação foi legítima. Ele fez um texto defendendo a gente e pedindo a libertação da garota. Não só o texto, ele veio, arrumou um advogado, ajudou a tirar a menina da cadeia, e daí a gente começou a ter um diálogo com o Ministério da Cultura, e eles quiseram... Eles vieram até a gente saber o que que era aquelas intervenções, e a gente falou: “na real, a gente tá defendendo a pixação como parte da cultura brasileira, a gente quer que a pixação tenha esse reconhecimento de cultura brasileira, mas sem tirar nada da essência dela”, né? (DEPOIMENTO)111 Não há, nas matérias da Folha de S. Paulo sobre o evento, nenhum registro dos argumentos do próprio Ministro da Cultura. No site do MinC, há uma página 112 que faz um clipping dos depoimentos e notas de esclarecimento do órgão sobre o caso. Os links para as notas estão todos quebrados e o conteúdo não está mais disponível, mas o próprio texto de apresentação do clipping dá importantes pistas sobre o posicionamento do MinC sobre o caso, ao qual se referem como a “paradoxal prisão da pichadora” 113. “Paradoxal” porque eles corroboram o argumento dos pixadores de que a curadoria teria disponibilizado publicamente 109 Idem anterior. Ibidem. 111 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 112 Disponível em: <http://www.cultura.gov.br/busca?p_p_auth=0vSRKHaI&p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized &p_p_mode=view&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=195243&_ 101_type=content&_101_groupId=10883&_101_urlTitle=em-defesa-da-liberdade-de-expressao195239&redirect=http%3A%2F%2Fwww.cultura.gov.br%2Fbusca%3Fp_p_id%3D3%26p_p_lifecycle%3D0% 26p_p_state%3Dmaximized%26p_p_mode%3Dview%26_3_groupId%3D0%26_3_keywords%3DCaroline%2B Pivetta%2Bda%2BMota%26_3_struts_action%3D%252Fsearch%252Fsearch%26_3_redirect%3D%252Fbusca %26_3_y%3D11%26_3_x%3D4>. Acesso em 03/02/2015. 113 Idem anterior. 110 103 o segundo andar do pavilhão para a interação e intervenção de interessados. O ministro Juca Ferreira se manifestou, então, “pela coerência democrática, pró liberdade de expressão, e em defesa dos direitos da artista Caroline Pivetta da Mota”114. O texto ainda relata que o ministro foi o primeiro a se manifestar publicamente, logo que a pixadora foi presa, sendo seguido por artistas, jornalistas, intelectuais, etc., e que esse posicionamento foi fundamental para que Pivetta conquistasse o direito de responder ao processo em liberdade. Uma das notas de esclarecimento, publicada em 11 de dezembro de 2008, quando já se somavam quase 50 dias da prisão de Pivetta, foi encontrada reproduzida na íntegra pelo site do jornal O Globo 115. Nela, o ministro relata que os pixadores reivindicam “o estatuto artístico e cultural ao seu ato”, e que isso, assim como o caso da pixadora presa por “um ato que tem características culturais”, deveria ser avaliado e julgado pela esfera cultural, “através dos recursos da reflexão e do debate público”, e não, portanto, pelas esferas policial e judicial. Juca Ferreira fala sobre a origem dos jovens pixadores nas periferias e de como a pixação se apresenta a eles como a única “compensação cultural” a que tem acesso, e que os afasta, inclusive, do crime e da marginalidade. Nesse sentido, compara a marginalização com que a expressão é vista a já tida por outras expressões com a mesa origem, como a capoeira, e o funk, e diz: “não podemos esquecer que a cultura toma caminhos que fogem do padrão estabelecido para expressarem conteúdos latentes nas formações sociais emergentes”. O ministro expressa que sua manifestação não significa uma concordância com a ação ou com os argumentos construídos pelos pixadores, mas uma defesa da liberdade de expressão e uma abertura ao diálogo sobre os direitos de todas as manifestações culturais. Esse diálogo com o Ministério da Cultura apontou, a partir daquele evento, para novas possibilidades para a pixação no mundo da arte, como será visto mais à frente. 5.3.1. Tensões entre consenso e dissenso Quando a curadoria da 28ª Bienal alegou que o andar vazio – que vinha causando polêmica - era uma reflexão sobre a arquitetura e um convite a possíveis propostas, novamente, segundo Ivson, Rafael Augustaitiz viu, ali, um convite. O quadro de repressão 114 Ibidem. Grifo meu. O GLOBO. Ministro da Cultura divulga nota sobre prisão de jovem por pichação da Bienal. O Globo (online), São Paulo, 11 de dezembro de 2012. Cultura. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/ministro-da-cultura-divulga-nota-sobre-prisao-de-jovem-por-pichacao-dabienal-3603991>. Acesso em 03/02/2015. 115 104 pintado de antemão pela Bienal, que, atenta às invasões que tinham ocorrido no mesmo ano e avisada sobre a possibilidade de uma ser realizada no evento, dizia que o pixadores não sabiam no que estariam “se metendo” se colocassem em prática o que pretendiam. Alheios a tudo isso (ou, talvez, ainda mais motivados por terem sido ameaçados), cerca de 40 pixadores – o maior número entre as três invasões – atenderam à convocação de Augustaitiz e, em poucos minutos, tomaram o 2º andar do pavilhão da Bienal, preenchendo com o pixo todo o vazio. Enquanto eram aplaudidos por alguns presentes, os pixadores tiveram que agir rapidamente para escapar da segurança. Entre os 40, apenas uma pixadora, Caroline Pivetta, como visto anteriormente, foi presa. Permanecendo por 54 dias na prisão, foi sobre ela, sozinha, que a Bienal exerceu aquilo que prometeu antes da abertura, se dedicando a fazê-la pagar com sua liberdade por ter “se metido” no evento. Parece ter havido, ali, um desentendimento entre o que a curadoria quis dizer com a abertura do andar vazio a “possíveis propostas” e o que os pixadores entenderam. Ou quiseram entender. Àquela altura, com duas invasões já promovidas e as consequentes reações das instituições invadidas, e pela própria vivência do cotidiano da pixação nas ruas, essa interpretação dos pixadores não pode ser vista como um simples e inocente mal entendido. Quando a curadoria diz que sabia que “eles” estavam “convocando gente da periferia da cidade”, ela já demonstrava quem fazia e quem não fazia parte daquele contexto. “Gente da periferia” era, para eles, gente a ser evitada e combatida com um forte esquema de segurança. Na mesma declaração, a curadora Ana Paula Cohen parece querer mostrar que não está alheia ao universo da pixação e às suas regras, dizendo que se a intenção fosse pixar obras expostas, que “um código de ética dos pichadores” estaria sendo violado. Como foi visto no caso da galeria Choque Cultural, há mais especificidades dentro dessa regra que apenas não pixar trabalhos alheios. Por isso mesmo, não houve pixações em obras na 28ª Bienal, mas somente às paredes brancas do andar vazio. Sobre Augustaitiz ter visto nas declarações da curadoria um convite a uma nova intervenção, parece que o pixador construiu um quadro de sentidos muito particular sobre as relações – que ele mesmo se propôs a estabelecer – entre pixação e arte e que se configuravam, até ali, muito mais como uma confrontação desta por aquela que como uma 105 busca por inserção e assimilação. Dessa forma, muito mais que se sentir convidado, é possível inferir que o pixador se sentiu desafiado 116. A Bienal, por sua vez, parece também ter visto a invasão como um desafio à sua capacidade de conter a pixação, e, em resposta, transformou o evento em um caso policial e judicial, que resultou em uma prisão considerada por muitos – inclusive o então Ministro da Cultura Juca Ferreira – exagerada e inconstitucional. Dentro do evento, o esforço se deu no sentido de apagar os vestígios da invasão e de garantir, pelo reforço da segurança e das restrições, que ações semelhantes não ocorressem, ou seja, para reestabelecer a ordem que havia sido perturbada pelos pixadores e para afirmar e reforçar os limites que determinavam quem podia ficar dentro e quem devia ser mantido fora daquele contexto; quais pessoas, manifestações, modos de fazer e registros eram admitidos e quais deviam retornar para o lugar de onde vieram; o que poderia ser visível e o que deveria ser tornado invisível. 5.3.2. Formas de inscrição e visibilidade Na imprensa, as três matérias publicadas pela Folha de S. Paulo sobre a invasão da Bienal (inclusive a que antecedeu à invasão, com as declarações feitas pelos curadores sobre o reforço na segurança) praticamente não citam nomes ou falas dos pixadores. Uma delas apenas cita a possibilidade de que a ação tivesse sido organizada por Rafael Augustaitiz e recupera, brevemente, as invasões ao Centro Universitário Belas Artes e à Galeria Choque Cultural. Posteriormente, foram publicadas duas matérias acompanhando o caso de Caroline Pivetta. Nelas, há uma caracterização mais detalhada de Pivetta, com diversas falas da pixadora sobre a invasão, sobre sua vida pessoal e sobre o tempo na prisão. Mesmo após ter pagado sozinha por uma ação que envolveu cerca de 40 pessoas, Pivetta não mudou sua postura. Enquanto, na denúncia feita ao Ministério Público, ela e os demais pixadores eram chamados de “milicianos”, Pivetta defendeu que eles seriam artistas, dizendo à juíza responsável por sua audiência que a ação teria sido uma manifestação artística. O objetivo seria o de “chamar a atenção para esta arte marginal”. No panfleto de convocação para a invasão, o objetivo apresentado é o de que “a simbólica e singular pixação paulistana”, situada “além do bem e do mal”, contribuísse “com 116 Como já foi citado em outra nota, houve a tentativa de entrevistar Rafael Augustaitiz, o que teria permitido fazer mais que inferências a respeito de suas motivações e argumentos. Ele, contudo, preferiu não ser entrevistado. 106 a arte e com a humanidade”, convidando os pixadores a “espancarem na tinta” a “Bienal do Vazio”. Dessa vez, a solicitação de frases de protesto se dá “pelo povo”. E finaliza com a frase “todos pela pixação”. É possível ver, aí, a forma com que Augustaitiz percebe a pixação: uma expressão artística única e redentora, que detém uma potência de transformação não apenas da arte, mas da própria sociedade. Djan Ivson, inclusive, atribui o compartilhamento interno da visão dos pixadores como artistas a Augustaitiz: “foi o primeiro cara a entender que a gente realmente era artista, por isso que ele sacrificou o diploma dele” (DEPOIMENTO)117. Para Ivson, “o pixador resgata a subversão do artista, que estava perdida [...] A nossa busca é existencial, é não deixar a nossa existência passar em branco”. É possível ver, então, que a visão de Ivson sobre a pixação enquanto arte está mais próxima do funcionamento interno da prática, da busca pelo reconhecimento, da contestação dos lugares sociais, enquanto Augustaitiz mantém uma visão idealizada e quase totalitarista. Nesse contexto, entre as várias pixações feitas no prédio da Bienal e mostradas nas imagens apresentadas na reconstituição, uma chama a atenção: acompanhando uma grande assinatura feita em tinta branca em uma vidraça, está a frase “isso q é arte”. Ou seja, “isso”, aquela ação e seu resultado material, talvez ao contrário de todo o resto que estava exposto de forma consensual no evento, era uma verdadeira expressão da arte. Ali, como nas invasões anteriores, é visto como a reivindicação do reconhecimento da pixação como uma forma de arte está sempre associada a uma dimensão do protesto, da inconformação, do questionamento sobre o lugar conferido à pixação e os lugares destinados à arte legitimada, sobre o que pode ou não ser considerado arte e a partir de que critérios. Essas noções parecem servir como pano de fundo para a construção e defesa de uma imagem da pixação como arte-protesto, ou seja, uma arte que mistura forma, conteúdo e performance na contestação de determinadas ordens instituídas e perpetuadas por esse campo. É importante observar que toda essa construção se dá na relação específica do pixo com o universo da arte e serve especificamente às cenas que são ali produzidas. Não é possível afirmar, a partir dessas considerações e análises, que essa configuração da pixação enquanto uma “arte-protesto” possa se expandir para outros contextos aonde ela venha a se inserir, inclusive a rua. Para tanto, seriam necessários outros dados, outro direcionamento do olhar e outras análises. E, embora Augustaitiz tenha passado por uma formação superior em uma faculdade de arte (embora ele não tenha conquistado o diploma, ele fez todo o curso, com quatro anos de 117 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014. 107 duração) e apresente, nos próprios panfletos, uma linguagem um tanto rebuscada em relação às expectativas para um pixador e um morador da periferia (uma linguagem mais informal, comum e permeada por gírias), e embora ele seja sempre apresentado como o ponto de partida das invasões, ele não assume esse lugar, misturando-se aos demais pixadores durante as ações, negando-se a dar entrevistas pessoais ou a fornecer explicações extensas, e evitando, assim, constituir-se como um personagem central ou de destaque. A importância da ação, para ele, parece estar na coletividade, na pequena multidão de pixadores em atuação simultânea, na ocupação agressiva e controversa que ela configura. 5.3.3. Subjetivação política Após três invasões em um intervalo de cinco meses, parece que a controvérsia gerada pela prisão de Caroline Pivetta é que conseguiu acionar e a ampliar, de fato, a discussão para tentar compreender o que se buscava com a inserção da pixação no campo da arte. Foi a partir dali que os pixadores começaram a ser procurados como aqueles que poderiam falar sobre o que, de fato, estava acontecendo. Começou com o então Ministro da Cultura Juca Ferreira, que, segundo Djan Ivson, ao se manifestar contra a prisão de Pivetta, quis entender, a partir dos pixadores, do que se tratavam as intervenções. De acordo com Ivson, eles responderam que queriam que a pixação fosse reconhecida como uma manifestação própria da cultura brasileira, e que esse reconhecimento viesse pela própria “essência” da expressão. Esse argumento é mostrado por Ferreira tanto na página do MinC, quanto na nota de esclarecimento, que diz que o caso da pixadora e todo o tratamento dado à forma como os pixadores se inscreveram na Bienal deveriam ser tratados como questões da esfera cultural e artística, pois foi assim que os pixadores nomearam sua ação. Esse movimento de Juca Ferreira significa o reconhecimento de que os pixadores eram parte fundamental daquela discussão, já que foram eles a colocá-la em pauta. Ele quebra com uma ordem comum na apresentação de demandas sociais, que geralmente partem dos grupos interessados em direção aos representantes. Dessa vez, pelo que é contado por Ivson e pelo que é visto nas palavras do Ministro, há uma inversão, e a busca pelo diálogo, assim como o interesse em intervir por Pivetta, partem do representante. Ali, começa a se desenhar um novo comum, um em que os pixadores tinham lugar na partilha (construído por eles, e não 108 conferido hierarquicamente) e eram contados como sujeitos de discurso, e o eram por uma representação máxima da cultura brasileira. Nessa nova contagem e nesses novos lugares, os pixadores se descolam de uma relação direta com os lugares antigos, em que ser pixador significava, invariavelmente, ser criminoso, vândalo. É importante considerar, contudo, que essas atribuições não desaparecem; elas apenas se tornam menos evidentes e diretas aos serem embaralhadas com outras possibilidades demonstradas pelas ações daqueles sujeitos. Se a pixação, agora, poderia ser enquadrada como, além de vandalismo, arte, cultura e protesto, seus produtores também seriam passíveis de serem reconhecidos por novos nomes; entre eles, o reivindicado por Rafael Augustaitiz na primeira invasão: artistas. 5.4. Reconstituição da participação na mostra Né dans la rue - Grafitti No dia 5 de julho de 2009, a Fundação Cartier, importante centro de arte em Paris, na França, abriria uma mostra chamada Né dans la rue - Grafitti (Nascido nas ruas - Grafite), que se propunha a apresentar uma retrospectiva mundial da expressão. Um dos artistas convidados era Djan Ivson, pixador paulista que participou das invasões de 2008. Ivson iria com João Wainer, jornalista e um dos diretores do documentário Pixo (2009), coproduzido pelo pixador e que seria lançado no evento. Além do filme, haveria exposição das “folhinhas” da coleção de Ivson. De acordo com matéria da Folha de S. Paulo, “após o sucesso do grafite colorido de São Paulo, é a pichação de letras negras que encontra espaço no circuito artístico”118. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o diretor da Fundação Cartier, Hervé Chandès, foi perguntado se pixação era arte, ao que respondeu: “é difícil dizer se é arte ou não. O que é arte nos dias de hoje? [...] Sei que é um fenômeno grande o suficiente, uma coisa única, muito específica de São Paulo, selvagem, que queremos mostrar dentro do contexto do mundo do grafite” (DEPOIMENTO)119. Perguntado120 se a curadoria da mostra teria chegado a ele a partir das invasões de 2008, Djan Ivson diz que não tem certeza, mas que sabe que a Fundação já estava a procura 118 EZABELLA, Fernanda. Paris celebra pichação de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 04 de julho de 2009. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0407200907.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 119 Fala extraída da matéria citada na nota anterior. 120 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 109 de um pixador e que tentava o intermédio de algumas instituições de arte para o contato. Contudo, segundo ele: [...] todas as instituições de arte que eles comunicavam, principalmente a Choque Cultural, aconselhava a não levar pixador. Né, pra você ver, que eles continuavam tentando negligenciar a gente, né, os próprios brasileiros da arte tentavam... Tentaram, ainda. “Não, não leva esses caras”. Mas, a Cartier não se satisfez e eles descobriram que o João tava indo fazer uma viagem a trabalho lá, foram atrás do João pra saber se tinha possibilidade de trazer um pixador, né, e aí a gente tava produzindo o Pixo, e o João falou de mim, e aí eles já tinham um interesse também, eles meio que queriam... Chegaram no João (Wainer) pra chegar em mim, também, né? E aí, a gente teve essa oportunidade de fazer, né, essa representação estética e simbólica do pixo, né, num espaço consagrado da arte internacional. (DEPOIMENTO)121 Djan Ivson ainda conta122 que foi a primeira vez que saiu do Brasil, e que teve muitas dificuldades para conseguir fazer a viagem em função dos processos criminais aos quais respondia por causa da pixação, que não lhe davam condições legais para viajar. E eu tive que correr atrás e ralar muito pra arquivar meus processos e conseguir ir a tempo, foi tudo em cima da hora, tipo, eu consegui resolver tudo aos 45 do segundo, cheguei na exposição meio que por último, sabe? Ninguém já acreditava que eu ia mais, mas eu tive essa oportunidade. (DEPOIMENTO)123 Chegando lá, a forma de participação de Ivson foi discutida entre o pixador, Wainer e a organização do evento124. Ivson disse que queria “explorar várias estéticas do movimento, fazer o meu „pixo‟ mesmo, o Cripta” 125, e que veria na hora o que fazer. Mesmo com a combinação coletiva sobre a participação, o pixador conta que ficou receoso em relação à reação da organização e do público. 121 Idem anterior. Ibidem. 123 Ibidem. 124 EZABELLA, Fernanda. Paris celebra pichação de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 04 de julho de 2009. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0407200907.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 125 Fala extraída da matéria citada na nota anterior. 122 110 Eu lembro que quando eu cheguei na exposição, o João (Wainer) era meu tradutor, né, disse “é pra pixar mesmo, cara?”. E eles: “é”. Aí, quando eu fui fazer o primeiro pixo, eu fiquei assim, “nó, será que quando eu virar aqui vai ter um tanto de gente querendo me matar?”. Porque a gente tá acostumado só com a recusa, né? E aí eu fiz o meu primeiro pixo, quando eu virei, tava todo mundo lá aplaudindo, falando que era maravilhoso. Então, foi uma experiência inédita, né? (DEPOIMENTO)126 Ivson pixou a fachada de vidro da Fundação Cartier, logo na entrada no evento, e alguns corredores e salas internas, como pode ser visto nas imagens a seguir: 126 ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 21/01/2015. 111 Imagens 21, 22127 e 23128: participação de Djan Ivson no mostra Né dans la rue - Grafitti. A imagem 21 mostra a fachada de vidro da Fundação Cartier já coberta com o pixo de Djan Ivson. É possível ver a assinatura “Cripta”, seguida por letras que parecem ser “F.Z.O.” e “SP”, referências ao local de origem do pixador. Abaixo da assinatura, há o símbolo do grupo “Os + Fortes”, que é uma união de diversos grupos, da qual Ivson e o grupo Cripta fazem parte. O pixo foi feito com rolinho e tinta branca. Há, ainda, algumas pessoas na imagem, cercas que parecem direcionar a entrada na mostra, e o cartaz do evento afixado no muro. A imagem 22 mostra Djan Ivson de pé em cima do corrimão de uma escada, pixando todo um corredor do prédio com reproduções dos pixos de seus colegas. Algumas assinaturas podem ser identificadas, como “Sustos”, “Cowboy” e “Apuros”. Djan disse 129 que quis reproduzir o que seria um beco pixado no Brasil e, então, reproduziu o pixo de todos os seus colegas da união “Os + Fortes”, porque, senão, “não teria graça”. Na imagem 23, Ivson aparece segurando um livro aberto, posando para as câmeras de vários fotógrafos. Para o pixador, o evento em Paris significou uma mudança no olhar do mundo da arte para a pixação: “agora é a vez do „pixo‟. É a bola da vez no mundo da arte [...] Faltava era o 127 Fonte: Site da Revista Trip. Disponível em: <http://revistatrip.uol.com.br/blogs/trancarua/2009/07/07/pixoganha-o-mundo.html>. Acesso em 23/01/2015. 128 Fonte das imagens 23 e 25: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157625847284388/>. Acesso em 23/01/2015. 129 ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 21/01/2015. 112 circuito das artes reconhecer, porque eles simplesmente rejeitavam. Mas agora eles estão começando a ver a importância” (DEPOIMENTO)130. Para ele, a mostra foi importante, pois a pixação foi reconhecida por aquilo que ela é: [...] o pixo realmente tava sendo reconhecido como uma expressão artística marginal, né? O mais legal é que a gente conseguiu o reconhecimento pela transgressão, pela nossa marginalidade, né? A gente tava sendo reconhecido, tendo o mesmo reconhecimento que a gente tem de pixador pra pixador, né, não era um reconhecimento pra domesticar a gente, era admiração justamente pelo que a gente é de verdade, entendeu? (DEPOIMENTO)131 Esse reconhecimento, segundo Ivson, foi algo que já teria sido antecipado por Rafael Augustaitiz: “um ano antes, Rafael falou: “não, a gente vai ser reconhecido pela pixação, como pixador”, e eu não conseguia ver, né? E aí, depois de um ano, surge um convite, né? Acho que todo barulho que a gente fez na pixação foi ouvido” (DEPOIMENTO) 132. Ele reflete: “nunca pensei que a pixação fosse me levar tão longe” (DEPOIMENTO)133. Para Djan Ivson, não havia, ali, nenhuma contradição no fato de a pixação estar presente em uma mostra a partir do convite a um pixador, pois todos os artistas presentes vinham do contexto da rua e faziam, ali, uma representação de seu trabalho na rua. [...] a gente fez uma representação estética do que a gente faz na rua. Foi... Assim que eu vejo minha intervenção lá, né? Porque não é nada além disso. Pixo mesmo, ele só acontece na rua, de forma ilegal. Ali dentro, era uma representação estética, até porque tinha tudo a ver com o tema da exposição, né? Então, tudo que a gente faz tem um sentido, né, não é só chegar ali e “ah, vamo fazer”, não. Tem que ter uma questão coerente, entendeu? Não é só chegar e participar, aceitar fazer qualquer coisa. Ali tinha sentido por quê? Era uma retrospectiva mundial da história da arte de rua, e eles tiveram a generosidade de não deixar a pixação de fora disso. (DEPOIMENTO)134 130 Fala extraída de: EZABELLA, Fernanda. Paris celebra pichação de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 04 de julho de 2009. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0407200907.htm>. Último acesso em 22/01/2015. 131 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 132 Idem anterior. 133 ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 21/01/2015. 134 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 113 Contudo, Djan Ivson conta que tal reconhecimento não alterou em nada o cotidiano da pixação na rua: “Nenhuma dessas participações em bienais mudou alguma coisa pra gente na rua. O que mudou foi a percepção dentro do campo da arte” (DEPOIMENTO) 135. É importante ponderar, assim, que desestabilizações e reconfigurações esse reconhecimento no campo da arte opera na vida e nos regimes de visibilidade dos pixadores, já que seria essa a potência política da arte, segundo Rancière (2010). 5.4.1. Tensões entre consenso e dissenso A participação de Djan Ivson na mostra Né dans la rue: Grafitti, em Paris, além de apresentar uma virada na forma da presença da pixação em eventos de arte, é um evento atípico entre todos os analisados, mesmo os decorrentes de convites. Isso porque, em relação ao diálogo para a construção de uma forma de participação, houve não só um consenso entre as partes, mas o cumprimento à risca do que foi proposto. Talvez a particularidade se deva ao fato de que a proposta não formatava o que Djan Ivson deveria fazer, mas concedia espaços para que ele pudesse preencher da maneira que considerasse mais adequada para representar, ali, a pixação paulistana. Ainda assim, o pixador disse ter ficado com medo de que, mesmo com o acordo de que ele poderia pixar como quisesse, as pessoas ali se assustassem com o resultado. Esse receio é completamente compreensível, já que era a primeira vez que um pixador era convidado a fazer algo daquele tipo. No dia-a-dia da pixação, assim como nas invasões realizadas em 2008, o testemunho de um pixador consistia, basicamente, em um resultado: a repressão. Em Paris, Ivson foi aplaudido. É interessante lembrar que Djan Ivson teve que batalhar para conseguir arquivar os processos aos quais respondia em função da pixação, para conseguir viajar a Paris. Lá, foi pago e aclamado por fazer aquilo que o enquadrava no Brasil como criminoso. Ele relatou que, ao serem procuradas pela Fundação Cartier para indicar um pixador para participar da mostra, várias instituições de arte recomendavam que a instituição não convidasse pixadores. A própria Choque Cultural teria sido procurada – talvez, pela referência na representação de artistas vindos da rua - e dado tal advertência, o que mostra como o discurso sobre a aceitação e aprovação da pixação e dos pixadores foi transformado após a galeria ter sido alvo de uma das invasões de 2008. Foi o jornalista e cineasta João Wainer (o 135 Idem anterior. 114 mesmo que incentivou Ivson a aceitar o convite de Augustaitiz para a primeira invasão, ao Centro Universitário Belas Artes), um dos diretores do documentário Pixo (2009), lançado na mesma mostra, quem indicou Ivson e mediou o contato entre a Fundação Cartier e o pixador. Ali, o dissenso não aparece, então, somente no modo como a pixação entra em cena, mas em sua própria presença naquele contexto. O convite para uma mostra internacional coloca em evidência um ponto que já vinha sendo apresentado pelos próprios pixadores desde a primeira invasão, sobre o pixo ser reconhecido como uma forma artística. Essa questão aparentemente simples abarca uma completa mudança da cena em que se inscreve a pixação – do crime à arte – e daqueles que tomam nela parte. A pixação como crime envolve uma série de elementos, sujeitos, lugares e funções (lei, patrimônio, polícia, justiça, risco, crime, etc.), enquanto a pixação como arte envolve um panorama bem distinto (galerias, exposições, curadores, público, críticos, apoio, financiamento, etc.). Naquele momento, a prática parecia claramente percorrer um caminho daquele contexto a este. Contudo, se o consentimento aponta para um consenso geral, é importante observar que esse grande deslocamento existente no reconhecimento de um pixador como artista, que participa de uma mostra de arte internacional e recebe cachê, é algo que embaralha as expectativas em relação à expressão e aos seus autores. Uma marca proibida no Brasil, feita por um pixador que teve dificuldades em viajar ao exterior devido aos processos criminais aos quais respondia em função da própria prática, estampada de forma autorizada (mais que isso: solicitada) na fachada de uma grande instituição artística na França e sendo aplaudida pode ser vista, assim, como uma cena dissensual por aquilo que ela desordena não material e espacialmente, mas simbolicamente. 5.4.2. Formas de inscrição e visibilidade A única matéria publicada pela Folha de S. Paulo sobre a participação de Djan Ivson na mostra internacional deixa ver certo estranhamento com o fato de um pixador ir a Paris para pixar as paredes de uma renomada instituição de arte com o consentimento da mesma. Ivson é apresentado com algum detalhamento: a idade, com quantos anos começou a pixar, com quantos anos parou e passou a registrar as ações dos colegas, e que comercializa os vídeos feitos com as imagens (e já teria vendido 3000 cópias dos oito DVDs já produzidos). A matéria fala sobre a programação do evento, a participação de Ivson (que incluía a exposição de suas “folhinhas”, que o texto explica o que são), o lançamento do filme Pixo (2009), e 115 outros artistas que já passaram pela Fundação, como Beatriz Milhazes e David Lynch, localizando, assim, em que contexto estaria presente o pixador. Há, também, menção às invasões ao Centro Universitário Belas Artes e à 28ª Bienal, que aparecem em cenas inéditas no filme. A partir das falas de Djan Ivson, é possível perceber que ele talvez considere a mostra em Paris como o mais importante dos seis eventos ocorridos entre 2008 e 2012. Para ele, ali, a pixação foi reconhecida por aquilo que ela é, podendo ser apresentada de uma forma livre. Ele destaca que o evento se voltava à representação da arte feita nas ruas e que todos os artistas ali presentes tinham vindo desse contexto. Assim, não haveria contradição para ele, enquanto pixador – que assume a transgressão como seu modo de fazer arte – estar ali, porque sua expressão estava sendo, de acordo com seu entendimento, respeitada. Isso explica, assim, porque a forma de participação proposta foi seguida: não houve a tentativa de conformação da pixação em determinados padrões para que se tornasse palatável ao público ou à própria instituição, mas, sim, a tentativa de criar dentro da fundação uma representação do que é feito nas ruas paulistanas. Isso Ivson tenta deixar claro o tempo todo nas vezes em que fala sobre o evento: o que foi feito ali não foi pixação, mas uma representação estética da pixação, já que, conforme defende, junto com Augustaitiz (o que foi, inclusive, o motivo do seu TCC ter sido apresentado na forma de uma invasão, sem aviso ou autorização prévios), a pixação só acontece no contexto da rua e pela transgressão. Buscar expressar essa coerência entre o que aconteceu em 2008, com as invasões, e em 2009, com o convite, talvez seja uma forma de evitar qualquer sugestão de que o pixo caminhava para a assimilação e cooptação pelo sistema das artes. Com esse discurso, de forma consciente, Ivson mostrava às instituições e curadorias de eventos artísticos que a pixação era uma expressão artística possível de ser apresentada nos circuitos oficiais e legitimados, e, ao mesmo tempo, mostrava aos pixadores que era possível dialogar com essa esfera, estar presente nela, sem se submeter. Na imagem 24, vê-se Djan Ivson pixando um corredor da Fundação Cartier, reproduzindo as assinaturas de dezenas de pixadores e grupos, com spray preto e azul. É interessante observar que, naquele contexto, Djan era um convidado, com autorização, incentivo, financiamento, tempo e espaço para produzir. O que significa, então, que ele tenha solicitado os mesmos materiais usados por ele e seus pares nas ruas de São Paulo (spray (e poucas cores), tinta látex e rolo de pintura)? O que significa sua escolha por reproduzir sua 116 escrita e a de seus companheiros em um ambiente que lhe dava oportunidade e liberdade para fazer o que desejasse, além de uma nova forma de visibilidade para seu trabalho? Pode-se dizer que tratam-se de escolhas políticas. Quando Djan reproduz as marcas de dezenas de pixadores e grupos paulistanos dentro de uma galeria de arte em Paris ele os coloca ao seu lado, os representa efetivamente, retirando-os também, simbolicamente e ainda que só por aquele momento, da condição de indesejados. Quem passava por ali, em visita à mostra, poderia não compreender o que a distinção e a variedade de assinaturas significavam, e talvez atribuísse tudo a Ivson, mas ele sabia; como sabia, também, que os registros daquelas paredes chegariam aos pixadores e que eles se veriam ali representados. 5.4.3. Subjetivação política Djan Ivson entendeu que o convite para a participação na mostra como a realização da “profecia” feita no ano anterior por Augustaitiz, quando da promoção da primeira invasão, de que eles seriam reconhecidos como pixadores, algo que ele mesmo nunca havia pensado ser possível. Apesar de dizer que a Fundação Cartier chegou a ele por meio de João Wainer, ele acredita que sua participação ali também foi devedora do “barulho” feito pelos pixadores nas invasões. O termo usado por Ivson é pertinente quando é lembrado que, para Rancière (1996), o processo de subjetivação política passa pelo reconhecimento da palavra como discurso, e não como ruído. Nas invasões promovidas em 2008, contudo, as reações das instituições e as formas de tratamento que foram destinadas aos pixadores deixam ver que sua palavra não passou de um ruído indesejável, que não se realizou na sua consideração como interlocutores naquela cena enunciativa: era um barulho. O convite para ir a Paris representar a pixação em uma mostra que contava a história da arte de rua pareceu significar, então, para Djan Ivson, que, enfim, aquele barulho tomava a forma de um discurso que merecia ser ouvido. É importante apontar que, para Rancière (1996), considerar uma fala como discurso é percebê-la como uma demonstração da igualdade de inteligências e capacidades dos sujeitos para se organizarem e colocarem em comum seu mundo e suas demandas a partir de um trabalho próprio realizado com a linguagem. Ainda que o convite a Djan Ivson signifique que a pixação era contada como parte de um contexto específico – o do grafite – é preciso ter em mente a possibilidade de que a curadoria daquele evento pouco conhecesse sobre o cotidiano 117 e a experiência da pixação para além de sua forma “única” e “selvagem”, como foi dito pelo diretor da Fundação Cartier, Hervé Chandès. Para Ivson, no entanto, o reconhecimento concedido à pixação naquele momento (e, nas falas, ele nunca reivindica ou assume o reconhecimento só para si, mas para o movimento) se assemelhava ao praticado entre os pixadores, uma admiração pela própria transgressão, pela própria marginalidade, como configuradoras daquela expressão artística. Ele acredita que o convite representou “a vez do pixo”, “a bola da vez no mundo da arte”, o que transparece certo deslumbramento do pixador com o fato de a pixação ter sido inserida em uma mostra internacional e com o fato dele, como sua representante, ter sido recebido como um artista. É compreensível, dadas as condições que geralmente permeiam a prática. Mas é também sintomático de um certo apaziguamento (mas não um esvaziamento) das questões que vinham movendo a aproximação com aquele universo. Ainda que Ivson recorra o tempo todo à questão da transgressão e da marginalidade, naquele contexto elas eram apenas encenadas: as inscrições foram feitas conforme o combinado e, como já mencionado, a ação, assim como o resultado, foram admirados e aplaudidos. É possível perceber que o convite feito pela Fundação representou uma consideração e um respeito pela pixação. Contudo, Hervé Chandès, diretor da instituição, perguntado se a pixação era arte, se esquivou, dizendo que era algo difícil de dizer. O que ele afirmou foi que a pixação era uma expressão “selvagem”, “única”, “um fenômeno grande o suficiente”, e que seria mostrado “dentro do contexto do mundo do grafite”. É possível ver aí, então, que embora Ivson considere que a participação naquele evento significava “a vez do pixo” no mundo na arte, para Chandès significava algo muito menos pretensioso: a percepção da pixação como parte do universo e da história do grafite. Assim, e pelo próprio contexto e tema da mostra, o convite não representou, especificamente ali, uma passagem da pixação ao campo da arte, mas exatamente o que Ivson colocou quase como uma condição para a presença da expressão em uma galeria: uma representação gráfica, da forma, contextualizada e sazonal, da rua. É curioso perceber como um diálogo que se encaixa perfeitamente à primeira vista parece guardar, na verdade, um desentendimento fundamental: a pixação, ali, nem era reconhecida como arte, nem tinha tal reconhecimento negado, já que isso, na verdade, nem parecia estar em pauta para a Fundação. Contudo, a questão da arte foi assumida por Djan Ivson e tratada pela mídia, talvez por tudo o que aquela instituição significa no campo da arte. 118 Parece, assim, que ali ele se sentiu reconhecido amplamente como pixador, que infringe a lei, que perturba a ordem, e que faz com tudo isso sua arte; mas é importante observar que, ainda que ele tenha saído do Brasil com essa condição marginalizada, o contexto parisiense é outro. Assim, é possível que o “choque” entre as identidades de vândalo e artista oficialmente inserido em um evento internacional só tenha existido de fato por aqui, já que lá esses sentidos não poderiam ser totalmente compartilhados. De todo modo, “artista” passa a figurar, assim, publicamente (pois, entre os pixadores, já se tornara algo intrínseco à prática), como um dos nomes assumidos por Ivson. Ainda que esse lugar específico não tenha sido dado, ele foi tomado. Dessa forma, a atipicidade do convite, da abertura, do diálogo e do respeito à pixação como uma expressão que merece ser considerada e obter novas visibilidades, sendo ou não vista como arte pelo seu circuito, é que configuram, assim, a grande importância do evento. Esse movimento poderia ser analisado como uma tentativa de esvaziar a potência crítica e perturbadora da pixação a partir da concessão de um lugar em que há uma cooptação mascarada de reconhecimento, o direcionamento dos holofotes sobre os vaga-lumes. Contudo, os elementos que foram aqui mostrados, como a distância do contexto parisiense para o brasileiro, e a inserção da pixação no contexto do grafite, e não necessariamente como arte, mostram que, talvez, o objetivo tenha sido bem mais modesto e menos perverso. A grandiosidade ficou muito mais a cargo da forma como o evento foi apreendido e traduzido pelos próprios pixadores. 5.5. Reconstituição da participação na 29ª Bienal de São Paulo Dois anos após ser alvo de uma das invasões promovidas pelos pixadores a instituições de arte, em 2008, a Bienal de São Paulo teria, novamente, a presença da pixação, agora como parte da programação oficial. Enquanto, na edição anterior, os pixadores foram vistos como “vândalos” e “criminosos” por pixarem o segundo andar do prédio do evento, mantido vazio e branco pela curadoria, na 29ª edição, em 2010, a expressão teria espaço nos três andares da Bienal136. 136 MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 119 O anúncio gerou polêmica e dividiu opiniões no universo da arte. Como é que alguém pode aceitar um convite de quem lhe mandou prender? [...] Como é que o conceito de arte muda a este ponto em dois anos? (DEPOIMENTO DE PINKY WAINE, ARTISTA PLÁSTICA) Com tantos artistas precisando de espaço, acho ruim eles optarem por uma plataforma perversa, que agride. [...] Trata-se de uma agressão. Portanto, sou contra. É por isso que o mundo está assim. (DEPOIMENTO DE ALESSANDRA D‟ALOIA, PRESIDENTE DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ARTE CONTEMPORÂNEA) A última Bienal foi uma espécie de necrotério. Esta aponta para uma ressurreição. (DEPOIMENTO DE NELSON AGUILAR, CURADOR DA 22ª E 23ª EDIÇÕES DA BIENAL DE SÃO PAULO) A coisa mais legítima que a pichação poderia fazer já foi feita durante a invasão. Qualquer tentativa da Bienal de absorver isso vai ser frustrada. (DEPOIMENTO DE ALEXANDRE ORION, ARTISTA E INTERVENTOR URBANO) O único parâmetro que a Bienal tem de respeitar é de que seja arte boa. Tomara que eles sejam bons. (DEPOIMENTO DE NUNO RAMOS, ARTISTA PARTICIPANTE DA 29ª BIENAL DE SÃO PAULO)137 Para Moacir dos Anjos, curador da 29ª Bienal, na invasão à edição passada, “não existiu o esforço para entender o ocorrido” 138. Já na edição sob sua curadoria, de acordo com ele, o primeiro contato foi feito pelos próprios pixadores, tão logo foi publicado que o tema daquela edição seria a relação entre arte e política. Segundo ele, a partir daí, o papel da curadoria foi o de propor formas de participação a serem discutidas com os próprios pixadores, a fim de que essa inserção não significasse que uma esfera estava cedendo completamente à outra139. 137 Falas extraídas de: MENA, Fernanda. “Pixo” na Bienal de São Paulo provoca racha nas artes. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/721033-pixo-na-bienal-de-sao-paulo-provoca-racha-nasartes.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 138 Idem anterior. 139 MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questiona-limites-que-separam-arte-e-politicadiz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 120 Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que nosso intuito não é incluir “os pichadores da 28ª edição”. Não se trata de um pedido de desculpas ou de um confronto com a edição anterior do evento. O que realmente queremos incluir na presente edição da Bienal é a pixação, ou simplesmente o pixo, com “x” mesmo, grafia usada por seus praticantes para diferenciar o que fazem hoje em São Paulo das pichações político-partidárias, religiosas, musicais, ou mesmo ligadas à propaganda que há vários anos enchem os muros e paredes da cidade, a despeito do quão “limpa” ela queira apresentar-se. E queremos incluí-lo porque achamos que o pixo borra e questiona os limites usuais que separam o que é arte e o que é política. E essa é uma questão que interessa muito ao projeto curatorial da 29ª Bienal. (DEPOIMENTO)140 A programação incluiu exibição de material gráfico – “folhinhas” de assinatura, convites de festas – e audiovisual – registros das pixações em fotografias e vídeos, etc. Além disso, houve um debate, mediado pela filósofa Márcia Tiburi, que disse ser a pixação “a única lírica que nos resta” (DEPOIMENTO)141. A programação foi descentralizada, integrando o pavilhão da Bienal e Centros Educacionais Unificados pela cidade 142. Os materiais expostos foram organizados pelos pixadores Rafael Augustaitiz e Djan Ivson, e pelo fotógrafo Adriano “Choque”, trio designado como Pixação SP143. Caroline Pivetta, que ficou 54 dias presa pela invasão à Bienal anterior, também teria sido convidada, mas recusou 144: “eu pensei muitas vezes – em ir, em não ir – e algo me diz que não é para eu estar lá dessa forma. Pode ser um pingo de mágoa, não sei explicar” (DEPOIMENTO) 145. Djan Ivson conta como se deu o diálogo com a curadoria para formatar a participação: [...] primeira coisa: a gente se reuniu com os curadores, antes de tudo, pra pensar numa forma de como fazer isso sem ambas as partes estarem se submetendo. [...] Foi de comum acordo a 140 Fala extraída da matéria citada na nota anterior. Fala extraída da matéria citada na nota anterior. 142 Matéria citada na nota anterior. 143 MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 144 VAZ, Juliana. Pichador de obra na Bienal é do grupo que pichou o prédio em 2008, diz polícia. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 25 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/804794-pichador-de-obra-na-bienal-e-do-grupo-que-pichou-opredio-em-2008-diz-policia.shtml>. Último acesso em 02/05/2014. 145 Fala extraída de: MUNIZ, Diógenes. Convite revela medo da Bienal, diz pichadora presa em 2008. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800387-convite-revela-medo-da-bienal-diz-pichadorapresa-em-2008.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 141 121 gente optar por representar o pixo dentro da Bienal através só de representações documentais: vídeo, foto, e as assinaturas. Porque, dessa forma, a gente não tava negociando espaço, né, a gente só tava fazendo uma representação histórica do pixo como parte da cultura brasileira dentro da instância máxima da arte ali, dentro da grande vitrine da arte brasileira. (DEPOIMENTO)146 Seria ridículo a gente negociar uma performance na Bienal, entendeu? A gente não precisa disso, a gente invadiu a Bienal anterior, né? [...] o legal é que o reconhecimento ali era uma totalidade, um reconhecimento da pixação como parte da cultura brasileira, né? E o reconhecimento tanto artístico, como político. Então, o fato de tá ali sendo reconhecido, né, como uma expressão brasileira que existe, [...] por mais que incomode, que não seja unanimidade, não tem como a gente negar a existência da pixação, entendeu? Então, o que a gente conseguiu ali foi um reconhecimento existencial por parte do circuito oficial da arte brasileira, né? Já que eles prezam pela arte, é hipocrisia eles ignorarem a existência da pixação, entendeu? Não é que a gente tá buscando um espaço de conforto, que a gente quer ser artista que nem o Nuno Ramos, a Adriana Varejão, o Cildo Meireles, a gente não quer isso, entendeu? A gente só quer nosso reconhecimento, que a gente acha que é muito maior que esses caras. (DEPOIMENTO)147 É interessante perceber como os pixadores não só reivindicam sua identificação como artistas, como negociam os termos dessa identificação, dizendo que tipo de artistas eles são. Em entrevista ao programa Altas Horas (2014), Djan Ivson declara: “o pixador ele um artista, mas ele é um artista diferente dos outros. Nós somos artistas libertários, artistas transgressivos e revolucionários” (DEPOIMENTO)148. Assim, não só eles marcam uma diferença, como uma superioridade, vista em uma pretensa exclusividade da capacidade de transgredir pela arte. Outro ponto a ser observado é uma certa contradição existente no que é reivindicado como o que configura a pixação como uma manifestação artística e de protesto – a transgressão – e a forma com que ela é inserida dentro de um âmbito oficial da arte apenas pela representação gráfica, documental e histórica. Ainda que os pixadores defendam que essa 146 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 21/01/2015. 148 ENTREVISTA COM PICHADORES. Altas Horas. São Paulo: Rede Globo de Televisão, 18 de maio de 2014. Programa de TV. Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/altashoras/videos/t/programa/v/serginho-groisman-bate-um-papo-com-um-grupo-de-pichadores/3353635/>. Último acesso em 20/01/2015. 147 122 seria a forma possível de representar a pixação na galeria sem destituí-la de sua força e de sua essência, há questões a serem consideradas e que serão retomadas mais a frente. Durante o planejamento, o discurso do curador vai ao encontro do de Djan Ivson: [...] o que se fará não será mais pixo, mas apenas uma representação gráfica do pixo. Aqui, como em tudo na vida, é preciso fazer escolhas. E escolhas têm consequências. Por isso que não queremos impor aos pixadores formas de participação do pixo na Bienal. Queremos construir juntos essas formas de participação. Mas de antemão já sabemos, curadores e pixadores, que trazer o pixo como mera expressão gráfica que se vale de um suporte bidimensional para dentro do prédio da Bienal não interessa, não resolve coisa alguma. Esse seria o caminho mais curto para destituir o pixo de sua força transgressora e de sua originalidade. Interessa-nos mais descobrir formas de compreender e de ativar, a partir da Bienal, os significados do pixo na cidade de São Paulo. Para tanto pretendemos fazer uso de estratégias diversas de documentação (fotografias, vídeos, coleções de tags) e de discussão. Estratégias que não se confundam com o pixo propriamente dito, já que esse só existe como tal nas ruas, mas que evoquem, desde o interior do mundo da arte, o fato de que nem tudo que é arte a Bienal é capaz de abrigar ou de entender plenamente. (DEPOIMENTO)149 Imagem 24150: Djan Ivson exibe coleção de “folhinhas”. 149 Fala extraída de: MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questiona-limites-que-separam-arte-e-politicadiz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 150 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157625721746215/>. Acesso em 23/01/2015. 123 Pelas falas de Ivson e Anjos, parece haver um pleno consenso sobre o que é o pixo e como ele pode ser levado para a Bienal sem que haja rendição ou prejuízo de uma ou ambas as partes. O discurso de que as formas de participação foram construídas juntas não deixa ver de onde a ideia daquelas formas específicas de representação partiu, mas quem se sobressai como aberta a e interessada no diálogo é a própria curadoria da Bienal, principalmente pela invasão à edição anterior. Ainda que fossem curadorias diferentes, a própria Fundação Bienal se erguia, ali, como conciliadora e aberta a receber os pixadores de outro modo. Outra questão que merece atenção é o modo como a fala do curador se mostra intectualizada e esclarecida. Na entrevista citada, ele faz todo um embasamento em Rancière para mostrar como ele entende que aquele movimento de aproximação entre arte e pixação, Bienal e pixadores, é um gesto político. [...] política é aqui entendida não como espaço de apaziguamento de diferenças, mas justamente o contrário. Ou seja, como o espaço formado pelos atos, gestos, falas ou movimentos que abrem fissuras nas convenções e nos consensos que organizam a vida comum. Ou seja, como bem coloca o filósofo francês Jacques Rancière, política entendida como esfera do "desentendimento". Essa é uma questão que, evidentemente, envolve uma série de dificuldades para que essa aproximação não se dê somente na superfície e, portanto, escamoteando as diferenças existentes, situação que não interessaria nem a nós nem aos pixadores. A nossa aposta é em descobrir formas novas de tratar do assunto com integridade de ambas as partes, sem que instituição e pixadores cedam completamente ao universo da outra. (DEPOIMENTO)151 A fala de Moacir dos Anjos apresenta, assim, um paradoxo: ele apresenta seu entedimento de política identificado ao de Rancière, como o desentendimento, a abertura de fissuras no consenso a partir de ações e discursos. Mas então, para permitir a aproximação entre pixação e arte, ele defende a construção de uma cena em que cada um tenha seu lugar e que não afete o lugar do outro, ou seja, o preenchimento das fissuras. Sobre o convite, Augustaitiz, que dificilmente aceita dar entrevistas pessoalmente, enviou o seguinte texto por e-mail à Folha de S. Paulo: “o bom da Bienal „internacional‟ é a concentração da nata de adorno-charlatões, arquitetada curatorialmente para assim podermos 151 Fala extraída de: MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questiona-limites-que-separam-arte-e-politicadiz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 124 doutorar”152. Djan Ivson reconhece o caráter enigmático das falas do amigo, a quem considera o líder intelectual do movimento: “o Rafael é um gênio, um profeta dos nossos tempos. Às vezes, eu preciso traduzir o que ele diz até para a mãe dele”153. A Bienal arcou com os vinte mil reais necessários à montagem da exposição sobre a pixação e afirmou que a condição era comum a todos os artistas convidados. Os curadores informaram que não haveria nenhum reforço de segurança em função da presença dos pixadores e disseram que descartavam a possibilidade de intervenções não programadas, já que a pixação em si só ocorria na rua154. Os pixadores, contudo, não deram garantias: Vamos convidar o movimento e eu não tenho domínio sobre nenhum pichador. Não posso garantir nada. Se alguém vai pichar ou não, se algum quadro vai ser riscado ou não, isso aí a gente só vai saber no dia. E aí vamos ver mesmo se eles [Bienal] estão prezando mesmo pela pichação. A gente não precisa do aval de ninguém para fazer [pichar]. Se a gente quiser pichar lá tudo, desde o chão até uma obra de Antonio Dias, a gente vai, picha e foda-se. (DEPOIMENTO DE DJAN IVSON)155 Sinceramente? Pode ser que sim, pode ser que não. Pode ser que o pessoal cole, pode ser que ninguém vá. Tem uns caras ali do 'point' do centro que, dependendo do dia, ficam 'virado no capeta'. E tem dias que estão tudo de boa. Eu já fiz aquilo lá [ataque à Bienal], não teria muita lógica para mim. (DEPOIMENTO DE RAFAEL AUGUSTAITIZ) 156 A gente não pode falar para eles faz ou não faz, entende? Quem vai tomar essa partida são eles mesmos. (DEPOIMENTO DE CAROLINE PIVETTA)157 152 MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 153 Idem anterior. 154 Ibidem, 155 Fala extraída de: MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. Parênteses no original. 156 Idem anterior. Parênteses no original. 157 Fala extraída de: MUNIZ, Diógenes. Convite revela medo da Bienal, diz pichadora presa em 2008. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800387-convite-revela-medo-da-bienal-diz-pichadorapresa-em-2008.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 125 Moacir dos Anjos declarou que o convite da Bienal não refletia uma desconsideração das diferenças entre os universos da arte e da pixação, mas uma tentativa de abrir um diálogo a partir do seu reconhecimento. Seria demagogia se estivéssemos simplesmente convidando pixadores da mesma forma que tantos outros artistas estão sendo convidados. Mas nós sabemos que essa igualdade não existe, e eles evidentemente também sabem. O que nos interessa é justamente tentar entender essas diferenças, e os limites e as possibilidades dessa aproximação. E é isso que também acho que interessa aos pixadores. Ninguém está tentando escamotear nada. Tudo está sendo feito às claras. (DEPOIMENTO)158 Essas desigualdades ficaram evidentes na festa oferecida aos artistas, curadores, dirigentes da Fundação Bienal e outros convidados – “um banquete de luxo”159 – meses antes da abertura da Bienal, onde foram servidos vinhos, espumantes e pratos requintados elaborados por um chef convidado. Os pixadores convidados levaram Caroline Pivetta, que teria bebido muito e ficado descontrolada. “Nossa presença estava incomodando na festa, isso ficou claro para nós. A gente lá, conversando com os curadores, e a Carol quebrando copo, xingando geral. No final, ela saiu bêbada, desmaiada. Anarquizou total” 160. Segundo Moacir dos Anjos, ficou “um certo desconforto”, “primeiro, por conta de toda a situação da última Bienal e, depois, porque são mesmo dois mundos à parte”161. Então, no dia 25 de setembro de 2010, sábado, a 29ª Bienal de São Paulo foi aberta ao público. E no primeiro dia, foi noticiado 162 que, por volta das 18h20, uma obra havia sido pixada. 158 MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questiona-limites-que-separam-arte-e-politicadiz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 159 MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 160 Idem anterior. 161 Ibidem. 162 VAZ, Juliana. Obra polêmica da Bienal de Artes de SP é alvo de pichador. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 25 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/804784-obrapolemica-da-bienal-de-artes-de-sp-e-alvo-de-pichador.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 126 Imagem 25163: obra de Nuno Ramos é pixada na 29ª Bienal de São Paulo. Na imagem 27, é mostrada a obra Bandeira Branca, de Nuno Ramos, pixada com a frase “Liberte os urubu” em branco. A obra já vinha gerando polêmica, principalmente entre ambientalistas, por manter três urubus presos durante toda a Bienal (de 25 de setembro a 12 de dezembro). Segundo a organização da Bienal, os animais foram trazidos do Parque dos Falcões, em Sergipe, e a instituição possuía toda a documentação legal para a manutenção dos animais. As aves eram alimentadas uma vez por dia, ao final da tarde. O motivo do horário seria o fato de que, após alimentarem-se, os urubus param de voar.164 A princípio, não se sabia quem teria pixado a obra. Em pouco tempo, no entanto, foi descoberto que o autor da ação havia sido Djan Ivson165, que diz ter pixado a obra de Nuno Ramos para mostrar que, mesmo estando naquele espaço com credenciais de artistas, os pixadores são autônomos e não podem ser domesticados166. Ele relata o ocorrido: Então, ah, aqui é um campo aberto pra discussão política? Beleza, me apropriei da obra do Nuno Ramos pra fazer uma analogia entre pixadores e urubus, os pixadores... É, os urubus tavam ali trancafiados, privados da sua liberdade, então, eu quis 163 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157625721746215/>. Acesso em 23/01/2015. 164 VAZ, Juliana. Obra polêmica da Bienal de Artes de SP é alvo de pichador. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 25 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/804784-obrapolemica-da-bienal-de-artes-de-sp-e-alvo-de-pichador.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 165 VAZ, Juliana. Pichador de obra na Bienal é do grupo que pichou o prédio em 2008, diz polícia. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 25 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/804794-pichador-de-obra-na-bienal-e-do-grupo-que-pichou-opredio-em-2008-diz-policia.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 166 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 127 trazer a situação dos Piores de Belô167, né, tipo, que tavam presos na mesma época, e era um contraste muito grande pra gente tá representando o pixo na instância máxima da arte, enquanto os amigos nossos, do estado vizinho, estavam sendo presos pela mesma coisa, entendeu? Então, era uma forma de eu tá fazendo, tá dando tanto uma demonstração de liberdade do pixador, e também tá trazendo à tona uma discussão política. (DEPOIMENTO)168 Naquele momento, Djan reabria uma fissura pela sobreposição criativa e litigiosa de duas linguagens – o pixo e a obra. Ali, o texto, a forma de inscrição e a superfície que serviu como suporte formam uma cena polêmica por evidenciarem, na própria junção desses elementos, todas as fraturas que tornam aquelas linguagens tão distantes e que configuram as experiências de cada uma. Nesse movimento, ainda, a ação aponta para fora de si, para a distância que separa aquele contexto do vivido pelos pixadores na rua. É a essa capacidade de realizar um trabalho criativo com a linguagem e de quebrar o seu sistema de circulação legitimada que Rancière chama de “literaridade” (RANCIÈRE, 2000; PANAGIA e RANCIÈRE, 2000), e nela que reside a potência para a emancipação dos sujeitos. Segundo Djan, os seguranças do evento agiram de forma extremamente truculenta e ele apanhou muito: “pensei até que eu ia morrer de tanto que eles me enforcaram” 169. O chefe da segurança é quem teria retirado o pixador do local por uma porta nos fundos. Já os ambientalistas que estavam presentes protestando contra a manutenção dos urubus no espaço teriam apoiado a ação de Ivson: “Fecharam com a gente, né? (DEPOIMENTO)170. Nuno Ramos não prestou queixa contra o Ivson, alegando que a Bienal era um espaço para diálogo171. Antes do evento, diante de uma declaração de Ivson criticando a obra de Ramos (“Quem é ele para querer abordar o 'lado sombrio' do Brasil? Com que propriedade ele fala 167 Em 2010, em Belo Horizonte, seis pixadores do grupo Piores de Belô foram detidos em uma operação da Polícia Civil e mantidos presos por quase 120 dias sob a acusação de formação de quadrilha. Foram condenados, recorreram e o julgamento do recurso ocorreu em dezembro de 2014, com a manutenção da condenação e das penas, exceto para dois dos acusados, que tinham menos de 21 anos na época da prisão, o que configurou a prescrição do crime entre a condenação e o julgamento do recurso. 168 Idem anterior. 169 Ibidem. 170 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 171 MARTÍ, Silas. Ataques de pichadores reacendem debate na Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 29 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/806126-ataques-de-pichadores-reacendem-debate-na-bienalde-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 128 disso, sendo que ele é um burguês formado em faculdade?” 172), o artista já havia declarado que preferia quem não gostava do trabalho dele a quem era neutro 173. No dia seguinte, segundo matéria da Folha de S. Paulo174, os visitantes estavam sendo revistados de forma mais minuciosa e detectores de metais estavam sendo usados. A segurança alegou, contudo, que os procedimentos eram os mesmos desde o início do evento. Naquele mesmo dia, outra pixação. Dessa vez, a obra Dito, Não Dito, Interdito, fruto de parceria entre o arquiteto Roberto Loeb e o artista Kboco (que começou a carreira como grafiteiro), exposta do lado de fora do pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera, recebeu pixações com a assinatura “Invasor”175. Houve o questionamento se seria uma nova ação dos pixadores participantes da Bienal, mas eles negaram o envolvimento: “a gente não tem nada a ver com esses artistas, não tem relevância nenhuma o trabalho deles. Para nós, é indiferente rabiscar a obra”, comentou Djan Ivson176. Ele identificou, pela assinatura, que o autor seria uma pixador de Osasco, que tentou participar da invasão à edição de 2008, mas não teria conseguido entrar por estar calçando chinelos 177. Os artistas não removeram as inscrições da obra, mas apontaram para a ausência de segurança na área de exposição. Outros artistas se manifestaram em relação à presença dos pixadores na Bienal e às intervenções: Não compreenderam o espírito da coisa. [...] Isso é uma raiva mal resolvida, um ato de desespero que não podemos confundir com arte. (DEPOIMENTO DE CILDO MEIRELES, ARTISTA PARTICIPANTE DA BIENAL) Eles vivem da transgressão. [...] Mas ao mesmo tempo a situação acaba gerando figuras isoladas, que não respondem 172 Fala extraída de: MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 173 Matéria citada na nota anterior. 174 MARTÍ, Silas. Segundo dia da Bienal tem nova obra pichada. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 27 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/805143-segundodia-da-bienal-tem-nova-obra-pichada.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 175 Idem anterior. 176 MARTÍ, Silas. Ataques de pichadores reacendem debate na Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 29 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/806126-ataques-de-pichadores-reacendem-debate-na-bienalde-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 177 MARTÍ, Silas. Curadoria da Bienal faz reunião com grupo de pichadores. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 28 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/805740-curadoria-da-bienal-faz-reuniao-com-grupo-depichadores.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 129 pelo grupo. (DEPOIMENTO DE LENORA DE BARROS, ARTISTA) Não acho que foi vacilo a Bienal ter chamado pichadores. [...] Mas a Bienal está virando uma plataforma de heróis da pichação, algo meio marqueiteiro [sic]. Estão querendo virar celebridade. (DEPOIMENTO DE ADRIANA VAREJÃO, ARTISTA)178 Para Moacir dos Anjos, as intervenções expunham a existência de “códigos diferentes”: “na rua eles estão entre eles e o respeito é mútuo ali. [...] Mas é essa diferença de regras que a gente está testando nessa Bienal, a gente assume o conflito” (DEPOIMENTO)179. Desde o início, o curador declarou que reconhecia as diferenças entre os universos, assim como os potenciais riscos de colocá-los em interação. Para ele, é esse o papel de uma Bienal de arte: “criar fissuras nos entendimentos estáveis do que é ou do que pode ser arte” (DEPOIMENTO)180. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, “é difícil achar algum artista disposto a entrar na linha de fogo de jovens da periferia com discurso agressivo, disposição declarada de „atropelar‟ obras alheias e que, de uma Bienal para outra, foram alçados da penitenciária à última novidade do circuito das artes” 181. É importante notar, aí, que esse novo lugar em que os pixadores passam a figurar – ao contrário do que propunha o curador da 29ª Bienal – afeta os lugares ocupados por todos os outros naquela cena, inclusive (e, talvez, principalmente) o dos próprios pixadores, que parecem vagar na transição entre sua postura questionadora e transgressora e o seu esvaziamento pela tentativa de encontrar parâmetros que permitam sua inserção apaziguada no âmbito artístico. 178 MARTÍ, Silas. Ataques de pichadores reacendem debate na Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 29 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/806126-ataques-de-pichadores-reacendem-debate-na-bienalde-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 179 MARTÍ, Silas. Ataques de pichadores reacendem debate na Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 29 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/806126-ataques-de-pichadores-reacendem-debate-na-bienalde-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 180 MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questiona-limites-que-separam-arte-e-politicadiz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 181 MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-da-bienal-pixo-busca-modelo-denegocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 130 5.5.1. Tensões entre consenso e dissenso Embora a 29ª Bienal não tenha sido a primeira instituição de arte a convidar os pixadores, pode-se considerá-la como o evento que mais evidencia a transformação pela qual a relação entre pixação e arte vinha passando desde 2008. Afinal, a edição anterior havia sido marcada pela maior e mais expressiva das invasões empreendidas pelos pixadores em 2008 – e também pela reação mais extrema entre as instituições invadidas, que resultou na longa e polêmica prisão de Caroline Pivetta. Agora, a pixação voltava dentro da programação oficial, com materiais expostos nos três andares do pavilhão da Bienal, um debate, e exibição de vídeos em polos educacionais espalhados pela cidade. Djan Ivson deixa claro, em suas falas, que esse diálogo não significava uma negociação de espaço, algo que não faria sentido para eles, que tinham invadido a Bienal anterior e ocupado os espaços que queriam, e que o que acontecia ali era uma “representação histórica do pixo”. Toda essa aparência de consenso, em que cada parte tinha seu lugar e sua função claramente delineados, respeitando-se mutuamente enquanto sujeitos de ação e discursos igualmente válidos, não parecia, contudo, ser inabalável. A curadoria demonstrava total segurança de que novas invasões ou intervenções não teriam lugar ali – não pela alegação de um forte esquema de segurança ou de uma repressão anunciada, mas pela da própria estabilidade do diálogo construído. Os pixadores participantes, contudo, mantinham uma postura de autonomia própria e defendiam, também, a autonomia dos colegas que seriam convidados a prestigiarem a presença da pixação no evento. Segundo eles, não era possível prometer que algo inesperado não fosse acontecer. E a reação da Bienal se algo acontecesse, segundo Djan Ivson, é que mostraria se a pixação estaria sendo prezada e respeitada de fato naquele contexto. Assim, quando Ivson pixou a obra de Nuno Ramos com a frase “Liberte os urubu”, já no primeiro dia da 29ª Bienal, não se pode dizer que houve surpresa. A forma como a Folha de S. Paulo noticiou o caso, em duas matérias, se voltou muito mais a tratar da polêmica em torno dos urubus presos na obra que a própria pixação. Inclusive, o único depoimento atribuído à organização da Bienal é sobre a legalidade da presença dos animais naquele espaço. Há, também, nos dois textos, o resgate do depoimento de Ivson dizendo que intervenções poderiam ou não acontecer e que não era possível prever. Acionadas naquele 131 lugar, essas falas soam como a apresentação de uma justificativa, ou um alerta tardio sobre a iminência do fato. O pixo de Djan na obra de Nuno Ramos não se configurou como uma contestação aos modos de participação ali propostos, mas como uma ação para deixar clara a autonomia e a independência dos modos de aparecer e fazer dos pixadores. E se, por um lado, a curadoria não se manifestou publicamente, por outro, a forma violenta com que a segurança do evento agiu contra o pixador não deixou de ser uma resposta institucional à ação. Contudo, não houve polícia, denúncia, prisão ou expulsão. Quando, no segundo dia de Bienal, outra obra foi pixada, Ivson e Augustaitiz negaram o envolvimento e disseram que não havia, para eles, porque pixarem aquela obra; deixando entender que, no caso anterior, havia uma razão para a ação. Moacir dos Anjos se mostrou tranquilo e mediador em relação às intervenções não programadas, e disse que a Bienal assumiu o risco ao incluir os pixadores na programação. Assim como a forma de participação foi construída conjuntamente, quando surgiu o receio de uma onda de intervenções não programadas que pudesse causar perturbações maiores ao evento e aos participantes, os pixadores também foram chamados a conversar. Ao que parece, houve entendimento entre as partes, já que a Bienal seguiu até dezembro sem novas intervenções, invasões ou incidentes. É preciso questionar, contudo, de onde vem, para além da aparência desse consenso coletivo, esse entendimento, já que não se deve desconsiderar que, apesar da tentativa de construção de uma imagem de igualdade, há, ali, entre curadoria e pixadores, uma grande disparidade de poder. Como já pôde ser percebido pela fala do próprio curador, o esforço se deu para construir um modo de participação que não afetasse os lugares de cada uma das partes. Contudo, o poder para distribuir os lugares e funções (ou para legitimar aqueles propostos por outras partes) nunca saiu das mãos da Bienal. Então, ainda que o discurso seja de que as partes envolvidas tenham trabalhado “juntas” na construção e manutenção de um acordo, é preciso observar as formas com que o dissenso se desenha nesse quinto evento, ainda que ele tenha se dado de forma pontual. Nesse sentido, dois momentos podem ser ressaltados: primeiro, o retorno da pixação à Bienal como parte da programação oficial do evento, dois anos após a invasão que foi tratada como um caso de polícia. Como no caso de Paris, ainda que o convite aponte para um consenso, ele mostra características dissensuais ao borrar os limites da arte que, até muito pouco tempo, deixavam a pixação de fora como um ato que não pertencia àquela esfera. Deixar a pixação e 132 os pixadores entrarem na Bienal, dialogar com eles, investir na exposição de seus materiais, rompeu com as expectativas em relação tanto à pixação, quanto à própria Bienal, como pôde ser observado a partir dos depoimentos de artistas e outras pessoas ligadas às artes, mostrados acima. Com isso considerado, é preciso ter em mente, contudo, que a Bienal faz esse movimento de maneira completamente calculada, pois possui o poder legitimado sobre aquele âmbito, e cria um ambiente controlado, inclusive contando, provavelmente, com um limite previsto para ações não programadas, como as que ocorreram. Não se trata de afirmar que tudo não passa de uma estratégia perversa para domesticar os pixadores, mas de apontar que, por trás do discurso de um diálogo construído sobre as bases da igualdade, há uma disparidade de poder que permite que a Bienal atue de determinados modos que se apresentam na forma da abertura, do respeito e da compreensão. E, segundo, pela ação de Djan Ivson que, ao pixar a obra de Nuno Ramos, se arriscou a perder o lugar oficial de fala que possuía dentro do evento para construir, naquele contexto, um lugar mais próximo ao cotidiano da pixação. Naquele gesto, Ivson reabriu a fissura que a curadoria vinha tentando preencher, mostrando que as distâncias entre pixação e arte, rua e galeria, permaneciam em cena. 5.5.2. Formas de inscrição e visibilidade A ação dos pixadores de, segundo o curador Moacir dos Anjos, dar o primeiro passo e fazer o contato com a curadoria mostra uma possível transformação nos modos com que eles mesmos viam as possibilidades de inserção da pixação naquele espaço, abrindo-se ao diálogo para construir conjuntamente formas de participação que apresentassem a pixação como parte da arte e da cultura de rua de São Paulo. Contudo, se o diálogo defendido pela curadoria é visto aqui com suspeição, pois guarda sua superioridade hierárquica naquele espaço, que pode ser acionada a qualquer momento, a proposição do diálogo pelos pixadores também não deve ser vista de forma ingênua. Afinal, eles são vistos, aqui, como sujeitos de ação e discurso, capazes de manifestarem-se de acordo com suas demandas e desejos. Dessa forma, diante da constante reivindicação da pixação como uma arte transgressora e dos pixadores como sujeitos autônomos, é possível pensar que essa aproximação buscava, também, criar uma nova cena de demonstração da resistência, especialmente após o evento de Paris, em que tudo ocorreu conforme o combinado. 133 Segundo Djan Ivson, o que os pixadores buscam não é a unanimidade do gosto pela pixação, mas o reconhecimento da sua existência. Com essa fala, Ivson enuncia um dano, uma não contagem da pixação e dos pixadores enquanto uma parte que tem algo a contribuir para a configuração da sociedade. Porém, mais que apresentar os pixadores enquanto sujeitos que têm algo a contribuir, o que eles parecem buscar é serem contados pela própria diferença, pelo próprio excesso, ou seja, pela exposição da fratura que os separa daquela comunidade consensual. Gostando ou não da estética da pixação, incomodando-se ou não com os desarranjos que ela promove na cidade, é preciso, para Ivson, que ela e seus praticantes sejam vistos e que sua existência deixe de ser negligenciada: “foi a forma que a gente encontrou de dar um grito existencial dentro do circuito que simplesmente negligenciava a gente” (DEPOIMENTO)182. Para ele, aquela Bienal representou um reconhecimento da pixação em sua totalidade, em suas dimensões artística, política e cultural, talvez pelo fato tanto de ter aberto espaço para a participação dos pixadores quanto de ter tolerado as intervenções não previstas. No entanto, como tem sido visto, as ações e o discurso da curadoria não representam, necessariamente, um reconhecimento da pixação e dos pixadores como partes daquele contexto, mas, possivelmente, uma consciência de que, naquele momento, era importante para a própria Bienal que eles estivessem ali daquela forma. De todo modo, os pixadores não entraram naquele jogo de forma ingênua, e também jogaram com as condições que eram colocadas. Uma mostra disso é que Ivson e Augustaitiz, ao contrário do que a curadoria dava a entender, não davam garantias de que eles mesmos ou outros pixadores que comparecessem para prestigiar a mostra não fariam intervenções não previstas pela programação oficial. Segundo eles, não havia como garantir, já que eles não possuíam nenhum domínio sobre pixador algum. Essa postura se revela como um ponto interessante sobre a própria relação entre pixadores: representação não significa superioridade hierárquica. Serem os representantes “oficiais” da pixação na Bienal, responsáveis por definir, junto com a curadoria, como se daria a apresentação da prática naquele espaço, mesmo com todo o histórico que precedeu àquele evento e o protagonismo dos dois pixadores, não fez de Ivson e Augustaitiz líderes dos pixadores paulistanos, com poder sobre suas vontades. Retomando Scott (1990), é possível pensar que, compreendendo-se como subordinados, os pixadores 182 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2015. 134 mantêm formas de organização e representação próprias, que podem fugir – e, pelo visto, fogem – à compreensão dos dominantes. No primeiro dia de evento, o próprio Djan Ivson rompeu com a programação. A escolha da obra que lhe serviu como alvo foi completamente consciente. A obra estava em foco pela polêmica com os urubus, o que, além de garantir a visibilidade da intervenção, guardava a possibilidade de uma adesão mais ampla à ação; como de fato, segundo Ivson, ocorreu. Quando ele diz, ainda, que quis fazer uma analogia entre os pixadores do grupo Piores de Belô e os urubus, ambos trancafiados e marginalizados, colocando em pauta o contraste existente no fato de uma mesma prática colocar alguns pixadores na cadeia e outros como convidados na maior mostra de arte do país, ele se mostra como alguém capaz de perceber o seu mundo em relação com os demais, suas particularidades, as negligências que sofre, e refletir sobre as condições em que o comum desse mundo pode ser compartilhado com os outros e, sobretudo, as que evidenciam suas distâncias intransponíveis. 5.5.3. Subjetivação política Ao contrário da mostra Né dans la rue: Grafitti, no ano anterior, ali, na 29ª Bienal de São Paulo, a questão da arte estava posta. Não se tratava de um evento específico para apresentar a história do grafite, ou de qualquer outra intervenção gráfica urbana, mas de um dos maiores e mais respeitados eventos artísticos do Brasil, que trazia, naquele ano, a proposta de discutir a relação entre arte e política. O trio designado “Pixação SP” figura na lista de artistas participantes, no site do evento183. Em um pequeno texto de apresentação, é mencionado que a presença da pixação naquela edição iria ajudar a mostrar que “nem tudo que é arte o campo institucional é capaz de abrigar ou de entender plenamente”184. Dessa vez, então, oficialmente, os pixadores eram artistas (mais: artistas políticos), não só enquanto um nome e um lugar construídos e assumidos, mas, também, como um nome e um lugar conferidos pela ordem vigente naquele espaço – ou acordados entre as partes, como foi colocado por ambas (ainda que as condições em que se dá essa distribuição possam ser questionadas). A partir daí, alguns pontos parecem querer reforçar a imagem de que a relação entre as duas partes – pixadores e curadoria – se deu baseada no respeito e 183 184 Disponível em: <http://www.29bienal.org.br/>. Acesso em 01/02/2015. Idem anterior. 135 reconhecimento mútuos, em que cada parte assumia a outra como uma parceira de interlocução, uma parte válida para a construção e compartilhamento de uma cena comum. O primeiro, e que parece simples, é a adoção, pela curadoria, da grafia da palavra “pixação” com “x”, como adotada e reivindicada pelos próprios pixadores, e raramente utilizada de forma “oficial”, como na imprensa, por não corresponder à grafia que consta no dicionário. Assumir essa grafia pode representar a visão dos pixadores como sujeitos capazes de nomearem a si mesmos e à sua prática. No entanto, falar a língua do outro pode ser, também, uma forma de aproximar-se dele para, assim, conhecer melhor as formas de mantê-lo sob controle. Outro ponto é a forma como o curador declara que não pretende inserir os pixadores na Bienal limando as diferenças entre os mundos ali presentes, mas, justamente, assumindo-as, estando aberto a elas, e construindo, a partir daí, um diálogo que torne possível a aproximação e a convivência entre esses mundos. Por esse discurso, Moacir dos Anjos parece querer tornar pública uma recepção aos pixadores como sujeitos que pensam, que refletem sobre sua realidade, que buscam novas formas de apresentá-la à sociedade e de tornála comum, ou seja, como iguais. Contudo, é sempre preciso lembrar que se trata de um representante institucional e que, como tal, tem sua fala e suas ações a cargo de um lado específico dessa relação. Então, embora pareça que esse tenha sido o evento em que os pixadores tiveram maior reconhecimento de suas capacidades enquanto sujeitos de ação e discurso, sendo apresentados a partir do entre-lugar formado da interseção entre seus vários nomes – pixadores-vândalosartistas-criminosos – é preciso desconfiar dos discursos e das imagens que curadoria e imprensa tentam criar, tanto quanto do possível deslumbramento dos pixadores com a “conquista” de novos lugares no campo da arte. A forma como seu lugar foi tão bem estabelecido ali que, mesmo com as ações desviantes da proposta oficial, não foi destituído, deixa escapar que o controle da curadoria era exercido, ainda que sob a forma do respeito às formas de manifestação próprias ao pixo. 5.6. Reconstituição da participação na 7ª Bienal de Berlim Entre abril e julho de 2012, foi realizada a sétima edição da Bienal de Berlim, com o tema Forget Fear (Esqueça o Medo). De acordo com a curadoria do evento, em entrevista à Folha de S. Paulo, a função da edição daquele ano era “negociar posições políticas 136 conflitantes que visavam ações artísticas” (DEPOIMENTO)185. Nesse contexto, foi feito um convite a quatro pixadores brasileiros – Djan Ivson, William, Biscoito e R.C. – para uma participação no evento. A curadoria chegou aos pixadores por intermédio de Sérgio Franco, sociólogo que desenvolveu com eles, naquele caso, um trabalho de curador186. Segundo Djan Ivson, Franco era um curador “diferente”, que tinha o papel de “traduzir a linguagem da rua para o campo da arte e para o campo acadêmico” (DEPOIMENTO)187, mas situando-se ao lado e não acima dos pixadores. Aqui, é pertinente apontar que, para Rancière, segundo Ross (2010), a capacidade e a liberdade de tradução e contra-tradução dos discursos se configuram como característica de uma sociedade democrática, em que os sujeitos são vistos como iguais em suas inteligências e habilidades. Essa democratização do discurso é, também, o que caracteriza a “literaridade”, pois coloca em cheque as definições sobre quem pode falar e ter seu discurso compreendido, e em que condições. Como já foi citado, é nesse trabalho com a linguagem que o sujeito encontra a potência para sua emancipação. Quando esse trabalho, no entanto, é realizado por outro, em nome do sujeito, ele perde de vista esse horizonte possível. Assim, ainda que Ivson entenda que o trabalho de Franco o situa ao lado dos pixadores, ele, na verdade, assume uma representação que reduz a possibilidade de emancipação daqueles. Em matéria da Folha de S. Paulo188, Ivson se refere aos pixadores como gente “que anda sujo, sai sem um puto na carteira e passa por baixo da catraca no trem” (DEPOIMENTO), e o texto completa: Mas é também gente que invade uma Bienal de São Paulo, depois volta pelas portas da frente como convidado, vai à Fundação Cartier, em Paris, onde Ivson expôs há três anos, vira tema de documentário, roteirista de filme, palestrante em escolas e acaba sendo escalada para a próxima Bienal de Berlim, para onde ele vai em abril189. A matéria ainda classifica Ivson como “o queridinho de parte do mercado das artes e fetiche de curadores que tentam domesticar a fúria das ruas em ações controladas em museu e 185 WAINER, João. Paulista “picha” curador da Bienal de Berlim. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/48530-paulista-pichacurador-da-bienal-de-berlim.shtml>. Último acesso em 02/05/2014. 186 MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cuja-proposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 187 Fala extraída da entrevista citada na nota anterior. 188 Idem anterior. 189 Ibidem. 137 galeria”190. Para ele, o histórico recente da pixação no mundo das artes significa o início da assimilação da sua estética, mas declarou: “a gente só vai fazer pichação autorizada, sem quebrar as regras, quando a gente não tiver mais vergonha na cara” (DEPOIMENTO)191. De acordo com o pixador192, no caso de Berlim, eles foram procurados, em 2011, por Joana Warsza, artista polonesa e uma das curadoras da 7ª Bienal de Berlim, que, a partir de uma conversa sobre os eventos que tinham se desenrolado até aquele momento, teria os convidado a pensarem juntos numa forma de participação para o evento, no ano seguinte. Segundo Ivson, eles ficaram, durante um ano, buscando formular uma proposta, mas, no fim, a curadoria teria imposto a realização de um workshop de pixação, chamado Politics of the poor (“Política dos pobres”): “a gente se recusava, se recusava de todas as formas de... Poxa, tentamos explicar, mas a tradução, a comunicação era difícil. A gente falava através de intermediários, eles lá, a gente aqui” (DEPOIMENTO)193. Djan Ivson conta194 que, no meio tempo entre o convite e a realização do evento, a organização da Bienal praticamente os desconvidou em função de falta de verbas. Segundo ele195, a princípio, seriam levados seis pixadores, depois dois, até que alegaram não terem condições de levar mais nenhum. Como ele não queria “desapontar os caras” que tinha convidado, e o convite já havia gerado toda uma programação de palestras e mostras na Alemanha, Ivson teve a ajuda de Franco para buscar financiamento do MinC 196, que foi aprovado. A Bienal, além das passagens, não custeou cachês para os pixadores, apenas disponibilizando as instalações da sua Fundação para que eles se hospedassem. Diante da insatisfação com a imposição do workshop pela curadoria e a dificuldade de estabelecer um diálogo para uma proposta conjunta de participação, Ivson relata que os pixadores foram a Berlim para dizer que o curso não seria dado: [...] olha, a gente chegou lá pra não fazer nada, a gente foi lá pra falar que não ia ter workshop. E foi o que aconteceu. A gente foi lá, o que a gente fez lá não foi workshop. Porém, a curadora exigiu uma demonstração prática. Exigia, exigia, e eu alertei 190 Ibidem. Ibidem. 192 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. 193 Idem anterior. 194 Em entrevista à autora, em 16 de maio de 2014. 195 MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cuja-proposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 196 Idem anterior. 191 138 eles, eu falei: “gente, vocês têm noção do que que é uma ação prática de pixação?”. “Ah, não sei o quê...”. Beleza. Então, como a gente tava lá, eu falei pra eles que a gente não ia dar workshop nenhum, que o pixo era uma manifestação urbana, que só acontecia na rua, no contexto da transgressão, que não era assim, não tinha como a gente dar uma demonstração prática sem envolver uma transgressão. (DEPOIMENTO)197 O local reservado pela curadoria para a realização do workshop foi a igreja de Sta. Elisabeth, em Berlim, construída na primeira metade do século XIX e um marco da arquitetura alemã neoclássica. Sofreu grande abalo após um ataque de bomba na Segunda Guerra Mundial e, desde então, a comunidade se empenhava em reformá-la, sendo que a parte interna ainda não havia sido finalizada por falta de verbas198. Para que o evento ocorresse sem danos à igreja, foram colocados tapumes que cobriam as paredes internas até determinada altura, destinando-se aos desenhos e escritas199. Então, já na igreja, diante do impasse entre os pixadores, que não queriam dar o workshop, e a curadoria, que exigia uma demonstração prática, e enquanto Djan Ivson tentava, mais uma vez, conversar com os curadores, William, Biscoito e R.C. começaram a escalar as paredes da igreja, acima dos tapumes: “Ficou todo mundo encantado com eles escalando, e quando eles fizeram o primeiro pixo começou a confusão” (DEPOIMENTO) 200. [...] quando a gente começou a pixar lá dentro, aí eles vieram querer restringir espaço. Aí eu falei “não”. Aí a curadora veio apavorada pra mim, falar “não, mas ali não pode”, eu falei “ah, mas agora tá tendo sua demonstração”, falei “é justamente isso”. Eu falei “ó, pixação é justamente isso que tá acontecendo aí”. (DEPOIMENTO)201 Segundo Ivson, os curadores ficaram “apavorados” e queriam chamar a polícia. Ele explicou que não tinha domínio sobre a ação de nenhum pixador, mas chamou os colegas para irem embora: “eles [a Bienal] mostraram que não aguentavam com a gente, não aguentaram 197 Idem anterior. MOURA, Danila. Igreja pichada por brasileiros em Berlim está interditada por tempo indeterminado. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 14 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1104868-igreja-pichada-por-brasileiros-em-berlim-estainterditada-por-tempo-indeterminado.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 199 Relatado por Djan Ivson, em entrevista à autora, em 16 de maio de 2014. 200 Fala extraída da entrevista: MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cujaproposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 201 Em entrevista à autora, em 16 de maio de 2014. 198 139 com cinco minutos de tinta, então não tinha mais discussão” (DEPOIMENTO)202. Joanna Warsza, contudo, teria pedido que eles ficassem para a realização de um debate203. Enquanto isso, um dos curadores, Artur Zmijewski, teria se aproximado de Ivson e jogado um balde de água suja nele, dizendo que o estava pixando. Ivson relata o que se seguiu: Foi um susto, pensei que o cara estava me agredindo, quase bati nele. Derrubei o balde da mão dele, falei um monte pra ele, em português mesmo: “Você tá louco? É agressão física! A gente agride parede!”. E ele entendeu o que eu quis dizer, eu também entendi o que ele quis fazer, ele olhava para mim, mexendo e apontando as mãos para a parede, querendo dizer “Você não pixou a igreja? Eu tô pixando você”. Eu estava quase batendo nele, mas parei, olhei para trás, procurando alguma coisa. Aí vi a tinta amarela. Andei até a garrafa de tinta, abri, e pintei o cara inteirinho. Ele pegou outra garrafa de tinta e me pintou também. Ficou um silêncio na igreja, eu pintado, ele pintado... (DEPOIMENTO)204 Imagem 26205: o conflito entre Djan Ivson e Artur Zmijewski. A imagem 26 mostra o momento em que Djan Ivson jogou tinta amarela no curador da Bienal. Algumas pessoas assistem, outras registram em foto e vídeo. Depois desse conflito, os pixadores começaram a “pixar tudo”206, e a polícia foi chamada. Para Ivson, o curador levou a 202 Fala extraída da entrevista: MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cujaproposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 203 Em entrevista citada na nota anterior. 204 Idem anterior. 205 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157630607333106/>. Acesso em 23/01/2015. 206 Ibidem. 140 ação para o “lado pessoal”, mas não se tratava disso: “é uma bienal política, que critica o sistema, mas tiveram que recorrer ao sistema para nos parar” (DEPOIMENTO) 207. Imagem 27208: Pixadores escalam e pixam as paredes da igreja alemã. A imagem 27 mostra três dos quatro pixadores que foram a Berlim acima dos tapumes colocados para o workshop, pixando a parede da igreja. Os tapumes estão totalmente cobertos por desenhos e frases, que não foram feitos pelos pixadores. Djan Ivson alegou que foi por isso que eles subiram acima das proteções: [...] não tinha espaço nesse tapume, e a gente não atropela, entendeu? Se não tiver conflito, não tem porque a gente atropelar uma intervenção, né? Então, tinha vários desenhos, lá, pinturas, a gente “pô, aqui não tem espaço pra pixar”. A mente do pixador sempre tá em busca de espaço livre, e foi quando os meninos começaram a pixar encima dos tapumes que teve toda essa confusão, né? (DEPOIMENTO)209 De acordo com Ivson, quando a polícia chegou e quis levá-los, foi o próprio público do evento que saiu em defesa deles, contando que eles haviam sido convidados, enquanto “os curadores ficaram na deles” 210. Os policiais teriam, então, recuado, anotado os números dos 207 Fala extraída de: WAINER, João. Paulista “picha” curador da Bienal de Berlim. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/48530-paulista-picha-curador-da-bienal-de-berlim.shtml>. Último acesso em 02/05/2014. 208 Fonte: Flickr Pixo Art Atack. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/pixoartatack/sets/72157630607333106/>. Acesso em 23/01/2015. 209 Em entrevista à autora, em 16 de maio de 2014. 210 Fala extraída da entrevista: MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: 141 passaportes, e deixado o local211. Para o pixador212, as pessoas ficaram constrangidas com a situação, e por isso ajudaram na liberação – “eles convidam a gente pra sair daqui, do Brasil, pessoas simples, de origem humilde, entendeu?” (DEPOIMENTO)213. Depois da confusão, segundo Djan Ivson, Warsza insistiu novamente para que os pixadores ficassem e participassem de um debate, e eles aceitaram: Aí ficamos, porque o interessante mesmo é o que tinha acontecido. Foi bom para eles, eles sabem que foi. Eles assumiram não aguentar com a gente, falaram que “não tinha como parar vocês, teve que chamar a polícia” e eu concordei: “é isso mesmo, vocês fizeram o papel de vocês”. [...] Mas chamar a polícia também foi bom para nós, senão ficaria todo mundo querendo desqualificar, dizendo que foi uma performance, que estava tudo combinado. Mas quem explica a polícia no meio da Bienal querendo me algemar? (DEPOIMENTO)214. Uma matéria da Folha de S. Paulo 215 mostra algumas reações da comunidade após o evento: Ainda estou sem entender o que aconteceu nesse evento, moro aqui há anos, dá vontade de chorar ao ver como a igreja ficou. Demoramos anos para recuperá-la. (DEPOIMENTO DE MORADORA VIZINHA DA IGREJA) Os caras foram convidados, a organização não sabia que a essência da pichação era ser transgressora, sem autorização para ser feita? Correram um risco. (DEPOIMENTO DE ESTUDANTE DE ARTE ESPECTADOR DA BIENAL) Se isso é arte ou não, é preciso entender em qual contexto, mas acho que o dano foi muito impressionante, não consegui digerir. (DEPOIMENTO DE ESPECTADOR DA BIENAL) <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cujaproposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 211 WAINER, João. Paulista “picha” curador da Bienal de Berlim. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/48530-paulista-pichacurador-da-bienal-de-berlim.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 212 Em entrevista à autora, em 16 de maio de 2014. 213 Idem anterior. 214 Fala extraída da entrevista: MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cujaproposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 215 MOURA, Danila. Igreja pichada por brasileiros em Berlim está interditada por tempo indeterminado. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 14 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1104868-igreja-pichada-por-brasileiros-em-berlim-estainterditada-por-tempo-indeterminado.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 142 Foi horrível, não entendi nada. ORGANIZADORA DA BIENAL)216 (DEPOIMENTO DE O curador Artur Zmijewski disse à Folha de S. Paulo217 que não se incomodou com as tintas trocadas entre ele e Djan Ivson e que o workshop teria sido uma proposta dos próprios pixadores, o que é contestado por Ivson. Para o curador, o verdadeiro problema foi o dano causado à igreja e os altos custos demandados para sua limpeza. Para ele, o que os pixadores chamaram de transgressão foi apenas uma “autopropaganda de políticas da pobreza e da luta da classe baixa contra os ricos no Brasil” (DEPOIMENTO)218, o que não teria sentido em ser feito ali. “Foi uma participação decepcionante” (DEPOIMENTO)219. As falas do curador deixam transparecer que, mais uma vez, os pixadores só são considerados interlocutores, com sua fala ouvida como discurso, e suas ações só são consideras uma forma de encontro entre arte e política, enquanto os parâmetros colocados pela organização são seguidos. Quando a inscrição deles na cena se dá por outras vias, sua apreensão e apresentação retornam àquela em que aparecem como vândalos, criminosos, revoltados. Uma investigação foi aberta pela polícia alemã para entender o caso. A igreja, que ainda abrigaria outros eventos da programação da Bienal, foi fechada e permaneceria assim até a reparação dos danos220. Segundo Djan Ivson221, a organização do evento entrou com um processo contra os pixadores e o Ministério da Cultura (MinC). Se a causa fosse dada aos alemães, os pixadores teriam que devolver o dinheiro financiado pelo MinC para a viagem e nunca mais poderiam solicitar financiamento do Ministério, além de pagar cerca de setenta mil reais para o restauro da igreja. Contudo, segundo Ivson, o advogado que representou os pixadores alegou que a curadoria exigiu uma demonstração prática da pixação, e foi o que aconteceu. A causa foi dada aos brasileiros. 216 Falas extraídas na matéria citada na nota anterior. CYPRIANO, Fábio. Curador „pichado‟ por brasileiro chama ato de diálogo. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1104997-curador-pichado-por-brasileiro-chama-ato-dedialogo.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 218 Idem anterior. 219 Ibidem. 220 LUZ, Amanda. Para curador alemão, ato de pichadores brasileiros foi irresponsabilidade. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1105215-para-curador-alemao-ato-de-pichadores-brasileirosfoi-irresponsabilidade.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 221 Em entrevista à autora, em 16 de maio de 2014. 217 143 5.6.1. Tensões entre consenso e dissenso A curadoria da 7ª Bienal de Berlim chegou aos pixadores em consequência dos eventos que vinham ocorrendo desde 2008, e considerou que a presença deles no evento faria sentido com o tema proposto, designado Forget Fear (“Esqueça o medo”), que propunha colocar em discussão ações e posições políticas diversas e conflitantes que se voltassem à produção artística. No início, a curadoria disse estar aberta ao diálogo com os pixadores para a construção conjunta de uma forma de inserção da pixação na programação do evento. Como o convite foi feito informalmente com grande antecedência, Djan Ivson afirmou que eles, junto com Sérgio Franco, ficaram durante um ano pensando em um modo adequado de participação. Contudo, a oficialização da presença dos pixadores se deu junto com a imposição do oferecimento de um workshop, nomeado Politics of the poor (“Política dos pobres”). E é a partir desse momento que a relação consensual e aberta mantida até então entre pixadores e curadoria dá lugar a uma série de desentendimentos. A começar pelas reduções da verba disponível para levar os pixadores, que resultaram na gradual redução do número de participantes que poderiam ser levados, até um iminente cancelamento da participação, que só não ocorreu porque os pixadores conseguiram um financiamento do Ministério da Cultura para as passagens. Sem financiamento e sem cachê, os pixadores chegaram a Berlim de forma autônoma, e foi isso que eles quiseram demonstrar aos curadores e ao público quando se negaram a realizar o workshop, que Artur Zmijewski, um dos curadores, alegou que teria sido uma proposição dos próprios pixadores. Djan Ivson, ao contrário, deixa claro, em todas as entrevistas, que eles recusaram essa ideia desde o início, mas que não foram ouvidos. A exigência de uma demonstração prática dá a ver a postura da curadoria em relação aos pixadores, colocando-se em uma posição de superioridade, mesmo não tendo cumprido com a responsabilidade de tornar possível a presença deles ali. Ivson alega ter dado todas as explicações sobre o que uma demonstração prática significaria, mas eles pareceram não estar abertos para compreenderem que de forma alguma o que eles demandavam poderia ocorrer, pela própria impossibilidade da pixação – da forma como ela ocorre cotidianamente – ser feita em espaço determinado e sob uma exigência superior. 144 Prova dessa incompreensão da própria prática é dada pelo relato de Ivson que conta que enquanto William, Biscoito e R.C. escalavam as paredes, os que assistiam estavam “encantados”, e quando foi feito o primeiro pixo, todos ficaram “apavorados”, pedindo que parassem. Ou seja: a curadoria não sabia o que pedia. E quando Warsza tentou direcionar os pixadores para onde as inscrições poderiam ser feitas, ouviu de Ivson que ela estava vendo o que queria: uma demonstração prática da pixação, feita não onde e quando se permitia, mas sim no tempo e no espaço definidos pelos próprios pixadores. O conflito entre Ivson e Zmijewski e o apelo da curadoria à polícia confirmam o seu desconhecimento em relação à pixação - sobre a própria prática, sobre o histórico que vinha sendo desenhado junto ao campo da arte, sobre os modos de lidar com tudo aquilo. Foi preciso que todo esse cenário irrompesse para que eles propusessem a realização de um debate. Do lado dos pixadores, embora Ivson tenha dito que entendia que a curadoria estava cumprindo com seu papel, ele disse, também, que a situação mostrou que a curadoria, que propunha um evento para discutir formas artísticas e políticas desenvolvidas à margem do sistema, teve que recorrer ao próprio sistema para “lidar” com os artistas que havia convidado. Talvez esse seja, assim, o evento em que a cena de dissenso irrompe com maior clareza: há uma cena consensual posta, com as relações hierárquicas ditando como, quando e por quem cada espaço deve ser preenchido. Há o surgimento dos pixadores como sujeitos de ação e discurso que contestam esses lugares dados e criam para si novas posições, construindo uma nova cena, na qual, pelo litígio, se fazem ouvir de uma forma que antes lhes era negada. 5.6.2. Formas de inscrição e visibilidade O nome dado pela curadoria ao polêmico workshop de pixação dava, também, um nome e um lugar aos pixadores: Politics of the poor, no português, algo como “Política dos pobres”. A escolha, ao menos, foi acertada, já que os pixadores se identificam frequentemente a partir de sua origem na periferia, como é visto na fala de Djan Ivson mostrada na reconstituição do evento, descrevendo os pixadores como gente “que anda sujo, sai sem um puto na carteira e passa por baixo da catraca no trem”. Esse é um exemplo de uma forma de se apresentar discursivamente enquanto uma parte dos “sem-parte” (RANCIÈRE, 1996); não pela afirmação da pobreza, mas por demonstrar uma forma de visibilidade dos pixadores que 145 passa por uma contagem desigual das partes da sociedade, principalmente quando é colocada nesse contexto, em que esses sujeitos aparecem de um modo completamente diverso. Há uma parte na sociedade para pixadores nas ruas (conferida pela lei) e uma parte para artistas, mas quando pixadores aparecem como artistas, não há parte e as formas de partilha têm que ser construídas. Àquela altura dos acontecimentos, quatro anos após a primeira invasão, os pixadores já eram apresentados, também, a partir de outros nomes e lugares, embora nem todos partissem de uma consideração dos lugares reivindicados por eles. Nas cinco matérias publicadas pela Folha de S. Paulo sobre a participação dos pixadores na Bienal de Berlim, termos como “celebridade”, “queridinho de parte do mercado das artes”, “fetiche de curadores”, “convidados”, “grupo paulistano Pixação”, foram utilizados para citar Djan Ivson e os outros pixadores; e outros, como “trabalho”, “desenhos rasgados de spray”, “letras pichadas em tamanho surpreendente” e até a grafia da palavra com “x”, raramente utilizada pela imprensa, para falar da pixação em si. Isso aponta para uma mudança nos modos de apreensão e apresentação da prática, que podem resultar em novos enquadramentos para sua visibilidade. O que não significa, contudo, que essas novas denominações se traduzam necessariamente em uma transformação das relações e modos de reconhecimento dos pixadores, o que pode ser percebido quando eles relatam que, mesmo após todos esses convites e participações, nada mudou no cotidiano da pixação. Sobre a forma com que os pixadores se inscreveram naquela cena, é possível dizer que a autonomia foi, novamente, a base das ações; e, dessa vez, ela estava mais forte graças ao fato de que os pixadores haviam chegado a Berlim por seu próprio esforço, já que não contaram com o auxílio da Bienal. Segundo Ivson, eles foram até lá para não fazerem nada que não deslegitimar publicamente o modo como a curadoria estava impondo uma forma de participação que eles se recusavam a fazer. O que era mostrado, com isso, é que, para os pixadores, não valia qualquer coisa apenas para estarem de forma legitimada em um evento artístico: eles exigiam fazer parte da construção dos parâmetros de sua própria apresentação. Ali eles mostraram, ainda, que a prática cotidiana da pixação não pode ser descolada da transgressão; que trabalhos alheios não são atropelados sem conflito; que um pixador não exerce poder e domínio sobre as vontades e ações dos outros, ou seja, que as relações internas à pixação são mantidas dentro ou fora do campo da arte. Isso significa que os que os pixadores pretendiam era fazer seu mundo comum ao mundo da arte e tomar parte naquela 146 nova construção feita da aproximação e do conflito entre esses dois universos, e não simplesmente ocupar qualquer lugar que lhes fosse dado no mundo artístico. 5.6.3. Subjetivação política Em um primeiro momento, o convite feito aos pixadores pela curadoria da Bienal de Berlim, surgido da atenção ao histórico que eles vinham construindo ao longo de quatro anos, e a sinalização de que haveria um diálogo para a formatação da participação dos mesmos pareceu mostrar que havia ali o reconhecimento dos pixadores como artistas e interlocutores. Contudo, a imposição do workshop, o ato de ignorar as recusas e os argumentos dos pixadores e a insistente exigência em uma forma de apresentação que os pixadores tentavam explicar como impossível mostram que, na verdade, o que houve foi, muito mais, algo como uma tentativa de absorção de uma expressão que estava conquistando espaço no campo da arte de forma litigiosa e polêmica, algo que interessava à Bienal. A curadoria parece não ter se importado, contudo, com o que interessava aos pixadores, e os tratou como se tivessem um contrato a cumprir, com demandas, imposições, exigências e nenhuma abertura ao diálogo. Na imprensa, contudo, como pôde ser visto a partir da Folha de S. Paulo, os pixadores – especialmente Djan Ivson – passaram a figurar de modo mais perceptível no relato dos eventos, falando sobre os convites, o diálogo com os organizadores, as formas de participação, argumentando e justificando sobre as intervenções feitas de forma não prevista, defendendo o que eles acreditam serem os preceitos da pixação, etc. Esse novo tratamento, o aumento do número de matérias dedicadas a relatar o assunto, e a forma como as falas dos próprios pixadores começam a aparecer como fontes de informações sobre o evento mostram que a imprensa começou a acompanhar a transformação pela qual passava a relação entre pixação e arte (o que não quer dizer que tenham se postado ao lado deles). Outro exemplo de que os pixadores saíam da Bienal de Berlim fortalecidos enquanto sujeitos políticos, que têm sua fala considerada como discurso e, assim, tomam parte no comum de uma comunidade, é o fato de que o processo aberto pela Bienal alemã contra os pixadores foi ganho por eles, pois se conseguiu provar que toda a ação empreendida foi consequência das exigências feitas pela curadoria e da não consideração das tentativas feitas pelos pixadores em explicar o que aquilo significaria. É claro que havia uma questão diplomática importante que, com certeza, fez com que a Justiça olhasse dessa forma para o 147 caso. Afinal, o nome e a seriedade do Ministério da Cultura estavam em jogo, e dar a causa aos alemães seria abrir espaço para a contestação da decisão do MinC sobre financiar a viagem dos pixadores. De qualquer forma, o próprio Ministério poderia ter entrado com uma ação contra os pixadores exigindo a devolução dos recursos, o que não ocorreu. Isso mostra a coerência do órgão com a postura assumida desde a 29ª Bienal, quando saiu em defesa dos pixadores e da liberdade de Caroline Pivetta, reconhecendo a manifestação deles como artística e cultural, indiferentemente dos meios utilizados para expressá-la. Assim, os pixadores provaram definitivamente à Bienal de Berlim e ao sistema das artes que têm a consciência, a responsabilidade e o domínio sobre suas ações, e que é por meio delas que eles vinham conseguindo criar para si novos lugares e possibilidades. No próximo e último capítulo, os seis eventos serão analisados de forma mais geral e enquanto um processo contínuo de aproximação da pixação com o sistema das artes. 148 6. A POLÍTICA COMO UM PROCESSO ESTÉTICO-COMUNICATIVO: UMA ANÁLISE CONCLUSIVA A partir do traçado de cada evento analisado em suas peculiaridades, é importante lançar sobre eles um olhar mais geral, buscando perceber como eles se entrelaçam na formação de um processo mais amplo. Afinal, o fato de, ao longo de quatro anos, seis eventos colocarem a pixação em aproximação e confronto com o campo da arte, envolvendo representantes do mesmo grupo de pixadores, não permite que eles sejam analisados como casos isolados e independentes. Olhando, assim, para o entrelaçamento ali formado, podem ser percebidos dois momentos distintos, mas complementares: o primeiro, das invasões; que leva ao segundo, dos convites. É importante ressaltar que foi feita a opção por não separar esta parte da análise entre as categorias analíticas. Embora elas também tenham servido como guia, a ideia é que o olhar não acabe se restringindo, já que a intenção é fazer aqui uma análise-conclusão, já apontando para as respostas (ou considerações) ao objetivo da pesquisa: analisar a criação de cenas de dissenso e os processos de subjetivação política construídos a partir da desidentificação com a parte conferida à pixação pelo campo da arte. Para tanto, são observadas as tensões entre as tentativas de absorção institucional da pixação e as ações de resistência dos pixadores; e os modos como os pixadores enunciam, dramatizam e argumentam não só sobre sua inscrição naqueles eventos, como também sobre a criação das cenas que os abrigam. Anteriormente, foi visto que várias das estratégias voltadas para a transposição do pixo para as instituições de arte apresentam, frequentemente, uma maneira de “repartir” espaços ditos destinados à expressão artística que em nada afeta uma ordem de divisão do sensível acostumada a remeter cada um a seu “devido” lugar. Mesmo os convites feitos aos pixadores expressam, ainda, um tipo de hierarquização que reflete o modo como os “mecenas” e curadores dividem as diferentes expressões culturais entre “alta” e “baixa”, retomando a polarização utilizada por Adorno e Horkheimer. Quando se menciona que a pixação, por meio dos eventos analisados, foi colocada em aproximação e confronto com o campo da arte não se quer dizer que essa aproximação se fez de maneira vertical, como se a “alta cultura” tivesse aberto gentilmente espaço para iluminar a “baixa cultura”, trazendo uma chance de inclusão às culturas marginalizadas. Muito pelo contrário: a tensão e o dissenso produzidos no atrito entre arte e pixação revelam como foi possível explorar as possibilidades oferecidas pela 149 linguagem própria à pixação quando retirada de seu espaço original para interpelar interlocutores pouco habituados à sua manifestação. Segundo Rancière, essa transposição, feita, muitas vezes, sob a forma de um falso reconhecimento, deve ser avaliada segundo sua capacidade de permitir a extração ou revelação de competências dos próprios pixadores e da pixação, mais do que de decretar uma pretensa “igualdade” em um jogo de falso reconhecimento. Ela deve ser avaliada, então, em sua capacidade de oferecer experiências questionadoras de esquemas perceptivos já associados a modos de fazer e de ver. Para evitar estes equívocos, é necessário sair do simplista esquema espacialpolítico em termos de alto e de baixo, de dentro e de fora. Este pode ter funcionado como suporte de uma arte crítica, mas hoje em dia tende a integrar-se à lógica consensual. A questão não consiste em aproximar os espaços da arte à não-arte e aos excluídos da arte. A questão consiste em utilizar a extraterritorialidade mesma desses espaços para descobrir novas maneiras de lutar contra a distribuição consensual de competências, de espaços e de funções. (RANCIÈRE, 2005, p.71) A reconfiguração dos espaços, dos tempos e das visibilidades, seja ela proporcionada pelos espaços da arte institucionais ou cotidianos, promove experiências estéticas que desafiam binarismos polarizantes como dentro e fora, inclusão e exclusão, experimentação da heterogeneidade e reapropriação do que é próprio. Não se pode esquecer que as próprias instituições são lugares de constante trânsito, lugares aleatórios de encontro com a pluralidade e a diferença, facilitando processos de reconfiguração de identidades (além de desidentificações) e de criação de cenas dissensuais que podem alterar os campos da experiência e da subjetivação (Rancière, 2005). Sob esse aspecto, a subjetivação coloca em cena uma diversidade imprevisível de maneiras em que os indivíduos podem produzir e sofrer experiências estéticas através de negociações e tensões entre o próximo e o distante, o atual e o virtual. 6.1. “É tudo nosso”: as invasões de 2008 Nas três invasões promovidas em 2008 – ao Centro Universitário Belas Artes, à Galeria Choque Cultural, e à 28ª Bienal de São Paulo – podem ser percebidos muitos aspectos comuns e que vão se tornando mais evidentes com a sequência dos eventos, quando começase a perceber que a primeira delas não se tratava de uma ação isolada. O primeiro desses 150 aspectos é a figura de Rafael Augustaitiz à frente das ações. Tendo cursado totalmente o curso de bacharelado em Artes Visuais, Augustaitiz parece ser visto pelos outros pixadores como uma pessoa mais instruída, com mais conhecimento e entendimento sobre arte e cultura, que fala de uma forma que ninguém compreende completamente, e que, assim, teria podido perceber, antes de todo mundo, que a pixação é uma expressão artística e que, consequentemente, o pixador é um artista. Dessa forma, é ele quem apresenta aos pixadores a possibilidade de sua inscrição em uma esfera que os negligenciava (não no sentido de uma inclusão em um espaço reverenciado, mas sim no sentido de deixar uma marca estética e política em um mundo que registra diferentemente o sensível), e, também, quem arquiteta a forma em que ela se daria, partindo, primeiro, de seu próprio TCC e, depois, das posturas de representantes institucionais que ele entendia como desafios e convertia em convites. Os argumentos comuns que perpassam as três ações são os questionamentos sobre o conceito de arte e seus limites, sobre quem e o que define o que é arte e o que não é, sobre a arte feita sob encomenda para o mercado, além do desmascaramento de representações e aberturas à interação consideradas falsas. Esses questionamentos se dão, assim, como foi visto, muito mais pela confrontação dissensual daquela realidade com a realidade da pixação. Dessa forma, a apresentação dessa expressão como arte esteve, ali, intimamente ligada à sua dimensão de protesto e transgressão, o que pode ser percebido pelas solicitações feitas nas convocações para que os pixadores resgatassem frases de protesto, que eram pixadas em letras comuns, ao contrário das assinaturas. Naquele momento, os pixadores parecem buscar mostrar a pixação como uma causa, um movimento pelo qual se deveria “levantar a bandeira”, como consta já no panfleto da primeira invasão. A inscrição naquelas cenas se dá, assim, pela coletividade, com o número de pixadores presentes, sempre em torno de 30 a 40. Essa pequena multidão ocupava os lugares-alvo em poucos minutos, e logo cobria as superfícies com seus traços. As ações eram, assim, rápidas e eficientes naquilo a que se propunham, criando uma cena que levava aquilo que era ignorado no cotidiano da cidade – o fazer da pixação e os seus produtores, e não as suas marcas, sempre visíveis pelas ruas – para dentro das instituições, para a frente das pessoas, para a luz do dia. As escritas frequentes nos muros – e que já incomodavam – agora ganhavam corpos e rostos. Os gestos rápidos, agressivos e ousados se fizeram ver, e isso causou espanto e choque. Mais do que isso, permitiu aos próprios pixadores extraírem novas potencialidades de seus modos de expressão e figuração no mundo a partir da inscrição por 151 um nome coletivo que os reconfigura e requalifica naquelas situações, contestando, assim, algumas das determinações consensuais sobre o que significa “fazer parte”. As três invasões foram tratadas pelas instituições como casos de polícia, duas delas resultando na detenção de pixadores (no caso da Choque Cultural foi feito boletim de ocorrência, mas os proprietários não deram prosseguimento), que, ao serem levados pela polícia, gritaram que artistas estavam sendo presos. Embora a imprensa apresente alguns desses argumentos e falas na cobertura que realiza, o enquadramento ainda esteve fortemente ancorado na questão do vandalismo (pelos depoimentos das instituições e das testemunhas, que ganham mais espaços que os dos pixadores, e por uma certa ironia ao apresentar os argumentos desses). Em todos os casos, também, as marcas e assinaturas foram quase que imediatamente apagadas, fazendo com que, nos dias seguintes, na dimensão visível, não houvesse mais vestígios das ações. O modo de lidar com essa materialidade do pixo, de insistir em torna-la invisível (algo que também é visto na relação com a pixação na rua), pode ser visto como uma forma de retornar também os seus praticantes à invisibilidade, negando-lhes, mais uma vez, um espaço naquela cena. Observa-se, assim, que a percepção dos argumentos é constantemente travada pela questão da forma como se vê o pixo: apenas marcas ilegíveis e nenhum discurso. Qualquer coisa que venha daqueles sujeitos, percebidos e institucionalmente nomeados como “vândalos que degradam os ambientes por onde passam”, não vai além de um ruído incômodo que se deseja abafar. Se não há troca discursiva, é porque, mesmo ao tomarem a palavra (a partir de sua escrita) de lugares diferentes daqueles que lhes foram concedidos e performá-la publicamente, produzindo uma cena em que colocam em comum o seu mundo de forma polêmica, os pixadores não são considerados como interlocutores. Nesse caso, podem-se apontar algumas questões importantes que contribuíram para o não reconhecimento dos pixadores como interlocutores e pares: um lugar de fala não pode ser “concedido” ou outorgado. Ele não é um prêmio, mas fruto de uma negociação em que parceiros de diálogo se legitimam mutuamente como agentes capazes e aptos a argumentar. Em segundo lugar, a performance de sua palavra não se torna pública só naquele momento, mas ganha diferentes contornos de publicidade. Como foi mostrado, ao utilizarem aqueles espaços institucionais da arte para sua escrita, os pixadores tiveram sua palavra enquadrada pelo discurso midiático e institucionalizado. Tais enquadramentos não são de escuta, mas 152 revelam uma tentativa de “lidar” com o outro que suprima sua complexidade e multiplicidade e aplaine sua existência. Essa é uma publicidade que não tem a ver com a igualdade dos falantes, mas com uma tentativa de reordenar as hierarquias e hegemonias temporariamente perturbadas. E, em terceiro lugar, se é certo que os pixadores apresentam seu mundo de forma polêmica, pode-se indagar, no entanto, se essa apresentação pode ser considerada como partilhada, como comum. Na verdade, para colocar um mundo em comum, é preciso reconfigurar as ordens discursivas que o irão acolher, e isso não ocorreu nem no texto jornalístico e nem nas falas de curadores e artistas, por mais que esses textos e falas, por vezes, apresentassem discursos articulados em torno de termos como “cooperação”, “reconhecimento”, “abertura” à diferença, etc. Relembrando as críticas endereçadas ao pensamento político de Rancière por Tambakaki (2009), sobre a inutilidade de um conceito que pensaria a política como um raro momento de irrupção e que não se importaria com a sua consolidação na transformação das estruturas sociais, seria possível pensar que o fato de que, ao fim do processo de três invasões consecutivas, os pixadores ainda não conseguiram ser ouvidos como interlocutores invalidasse o caráter político de suas ações. Pensando, contudo, junto com Rancière, não é possível desconsiderar a importância que aquelas invasões representaram em sua própria configuração e duração, pois não se pode esquecer que, por três vezes consecutivas, dezenas de jovens saíram da periferia e invadiram espaços consagrados da arte e expuseram ali o seu mundo (ainda que de forma não compartilhada), a sua realidade, o seu discurso ilegível (porque a maioria não se importa em aprendê-lo). E não é só o fato de se exporem que é importante, mas o fato de que essa exposição os levou a extrair de suas formas de expressão e experiências potências antes desconhecidas para sua autocompreensão e para sua apresentação diante dos outros. Ali, demonstraram que não reconheciam como próprios os nomes e lugares em que foram colocados (pela lei, pela negligência, pelo senso comum e pela institucionalidade) e assumiram outros, que são feitos na interseção entre aqueles nomes pelos quais são conhecidos e aqueles que reivindicam para si (pixadores-vândalos-artistas-militantes-marginais, que podem ser universitários, etc.). Djan Ivson comenta que, na pixação, há uma inversão de valores, que transforma todos os nomes pejorativos pelos quais os pixadores são identificados em status dentro do grupo: “Você chamar um pixador de vagabundo, de maloqueiro, pra gente é um elogio, entendeu?” 153 (DEPOIMENTO)222. Esses nomes são, então, também assumidos, incorporados, mas têm seu sentido transformado. É desses novos lugares construídos que os pixadores tomam e performam a palavra, perturbando as ordens ali estabelecidas. Nas invasões, então, os pixadores realizam a “profanação”, como conceituada por Agamben (2007). Para o autor, toda separação de alguma coisa da esfera do uso público é uma consagração e guarda em si algo de religioso, não no sentido comumente atribuído à palavra, que teria sua etimologia ligada ao termo religare (aquilo que liga), mas em um que o autor considera mais adequado, originado no termo relegere (“atitude de escrúpulo e atenção que deve caracterizar as relações com os deuses” (AGAMBEN, 2007, p.66)), ou seja, no sentido da afirmação e do respeito à separação. Consagrar é, então, não só separar do âmbito da experiência, mas estabelecer parâmetros e limites para que aquela separação seja mantida e respeitada. Por isso, as instituições invadidas pelos pixadores podem ser vistas como espaços consagrados da arte: elas criam âmbitos específicos e legitimados para o ensino, exibição e comercialização da arte, evidenciando, assim, todo um sistema que estabelece quem pode fazer, representar e consumir arte. Ao invadirem, ocuparem e cobrirem com suas inscrições aqueles espaços, os pixadores ignoram essa separação e propõem usos que se chocam completamente com aqueles que estavam estabelecidos, profanando-os. A profanação é, também, para Agamben, uma operação política, pois “desativa os dispositivos de poder e devolve ao uso comum os espaços que ele havia confiscado” (AGAMBEN, 2007, p.68). Assim, quando Augustaitiz convoca os pixadores com “é tudo nosso”223 ele faz um duplo movimento de reivindicar a consideração da pixação por aquela esfera através da própria negligência às relações hierárquicas que ali se impõem. Na verdade, as invasões talvez nem cheguem a ser reivindicações, mas ocupações que estampam a existência de um mundo ignorado e tornado invisível. Uma invisibilidade que não tem a ver com o apagamento dos registros e imagens produzidos pelos pixadores, mas com o apagamento de sua própria existência em domínios que lhes negam a possibilidade de pertencimento paritário: uma anulação simbólica. Os pixadores ainda mostram sua habilidade em realizar um trabalho muito próprio na sobreposição das linguagens do pixo, da arte e da academia para arquitetar e justificar as ações, o que rompe com uma ideia linear de que existe uma linguagem para uma função ligada a um nome e a um lugar. A escolha dos lugares invadidos e da forma de ocupação 222 223 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014. Extraído do panfleto de convocação para a invasão à Galeria Choque Cultural, mostrado no Capítulo 5. 154 desses lugares não se dá ao acaso; pelo contrário, mostram um conhecimento do que, ali, é importante para a manutenção e afirmação da ordem, e é a isso que eles atacam. Eles pixaram todo o prédio (fachada, corredores, salas, recepção) do Centro Universitário Belas Artes no dia da apresentação dos TCCs do curso de Artes Visuais, o que pode ser visto como a contestação da simbologia daquele espaço e da própria formação superior em artes (a forma como Augustaitiz coloca seu diploma em risco, e de fato o perde, apontam para a desconsideração da sua necessidade para a atuação do artista224). Na galeria Choque Cultural, uma invasão organizada em resposta a uma declaração de Baixo Ribeiro se identificando como representante das intervenções urbanas, nem as obras foram poupadas, demonstrando que aqueles artistas e aquela galeria não representavam as expressões artísticas da rua. Na 29ª Bienal, o alvo foram as paredes brancas do andar vazio, que, segundo a curadoria, estavam abertas à interação. Os desdobramentos do evento mostraram que aquele tipo de intervenção não era considerado interação, pelo menos não do tipo que permite a autonomia política e a emancipação dos sujeitos. Pode-se considerar, então, que essa inscrição polêmica da pixação no campo da arte por meio das invasões realiza o que Rancière (2010) e Mouffe (2007) defendem como a potência política da arte: revelar o que estava escondido; fazer ver e ouvir o que antes não era dado à ordem sensível; abrir espaço para novas apropriações, usos e experiências dos espaços; opor-se à lógica mercantil; ou seja: desestabilizar, deixar ver as tensões e divisões. Feito ali, daquela forma, o pixo evocava a origem dos seus praticantes, sua invisibilidade e marginalidade, mas também sua capacidade para refletir sobre todo esse contexto e se organizar em outras formas de inscrição, que escapam ao controle e ao entendimento. Não é possível, assim, desqualificar a importância política dessas invasões. Elas foram políticas em si, em sua irrupção e configuração, ao mostrar que a igualdade não se revela somente na evidenciação da diferença e em sua tolerância, mas, principalmente, em uma igual capacidade de autorrealização e de realização coletiva que o todo social e institucional deveria garantir aos indivíduos. Uma coisa é oferecer espaço dentro de uma ordem instituída para que uma fala se produza; outra coisa é oferecer as ferramentas necessárias para que as falas produzam seus próprios espaços e cenas de subjetivação e emancipação. 224 Mais uma vez, a falta de uma entrevista com Augustaitiz mostra como seus próprios argumentos sobre os eventos seriam enriquecedores. Não se pode, contudo, ignorar algumas pistas que são dadas pelas outras fontes de dados e que permitem algumas inferências. 155 6.2. Convites, capturas e resistências: “agora é a vez do pixo”? As invasões consecutivas a instituições de arte parecem ter despertado a atenção para a pixação paulistana e as ações que visavam à consideração de sua existência como uma expressão artística e política. A elas, seguiram-se três convites para participações em eventos promovidos por instituições legitimadas no campo da arte. As particularidades envolvendo cada um dos convites foram vistas no capítulo anterior, mas, nos três, é possível observar alguns pontos comuns, além de aspectos importantes que apontam para os modos de apreensão da pixação por essa esfera e para as possibilidades de resistência. Uma das características comuns aos três convites é a presença de Djan Ivson. Não só nos eventos, mas em todas as matérias e entrevistas, ele aparece como um representante, um porta-voz da pixação paulistana e até brasileira. É ele quem vai a Paris; quem, juntamente com Augustaitiz e Adriano Choque, representa a pixação na 29ª Bienal; e quem convida outros pixadores para irem a Berlim. Nas falas de Ivson, é difícil vê-lo se referindo a si mesmo como representante, autor ou beneficiário exclusivo dos convites e ações. O mais comum são termos como “nós”, “a gente”, “o movimento”, o que parece buscar reafirmar a visão da pixação como um movimento coletivo, como nas invasões. A inscrição nas cenas, no entanto, não se dá de forma coletiva, mas individual ou em grupos pequenos – mais fáceis de formatar e controlar – e, ainda que não se assuma o papel de representação, ele parece ser atribuído a Ivson, algo que parece ser justificado pelo seu tempo na pixação e pelas diferentes formas em que atua nela (não só pixando, mas registrando as ações). Contudo, como pôde ser visto desde que Ivson aceitou participar da primeira invasão, a inserção do pixador nesse cenário sempre esteve muito marcada por seu contato com pessoas de outras áreas (o jornalista e cineasta João Wainer, e o sociólogo Sérgio Franco, por exemplo). De um lado, e especialmente no caso da invasão, isso pode mostrar uma necessidade de Ivson de ter uma espécie de garantia de uma pessoa de fora sobre os ganhos simbólicos que poderiam advir da ação; de outro, no caso dos convites, pode mostrar a necessidade das instituições por um intermediário para o estabelecimento do contato e de certo entendimento entre as partes. O motivo comum alegado pelos pixadores para essas inserções foi a reivindicação do reconhecimento da pixação como expressão artística e cultural, sem que sua “essência” transgressora lhe fosse destituída. Nesse sentido, o discurso que aparece é o a da construção coletiva de formas participação. Do lado das instituições, esse discurso vem para mostrar uma 156 pretensa abertura ao diálogo que visa ao entendimento, mas acaba soando como a tentativa de manter as possibilidades de irrupção sob seu controle. Não necessariamente uma perversidade que busca cooptar a expressão e retirar dela seu caráter de contestação e transgressão, transformando-a em uma estética palatável ao público e, assim, ao mercado, mas sempre um interesse em manter inabalável a ordem daqueles espaços. Do lado dos pixadores, o discurso parece vir como uma justificativa que demonstre que a entrada pela porta da frente no mundo da arte não significava uma submissão ao seu sistema, além de um desejo de mostrar que a pixação estava sendo assimilada e aceita (ou seria tolerada?) pelas instituições artísticas. Nesse sentido, a postura defendida em cada evento pelos pixadores foi a da autonomia: para participar da formatação da participação, para apresentar a pixação dentro de parâmetros que fizessem sentido para eles, e para agir de forma não prevista quando desejado. Desse modo, as formas com que os pixadores criam e se inscrevem em cada cena se dão de modos diferentes de acordo com o diálogo estabelecido com as instituições e curadorias, com o modo que querem se fazer vistos em cada evento, e com a medida em que sentem que sua autonomia está ou não sendo respeitada (ainda que sempre houvesse limites explícitos ou implícitos para suas ações). A partir daí, as imagens que resultam daquelas ações, apesar de se assemelharem formalmente (quando Djan Ivson assina “Cripta”, por exemplo, a forma é sempre a mesma, na rua ou na galeria, como pode ser visto nas imagens abaixo), acionam diferentes relações, lembrando o que Ramos (2012) apresenta como um ponto importante de Rancière sobre as imagens: a sua alteridade, o que é exterior à sua visualidade, mas que torna sensível o visto e o não visto, o dito e o não dito, o indizível. 157 Imagens 28225, 29226 e 30227: assinaturas “Cripta” pixadas por Djan Ivson na rua (no momento de produção); na fachada da Fundação Cartier, em Paris; e dentro da igreja, na 7ª Bienal de Berlim, respectivamente. 225 Fonte: blog Risk Underground. Disponível em: <http://riskunderground.blogspot.com.br/>. Acesso em 20/11/2014. 226 Fonte: Fotolog Djan Ivson. Disponível em: <http://www.fotolog.com/cripta_1996>. Acesso em 20/11/2014. 227 Fonte: site Casa do Saber. Disponível em: <http://casadosaber.com.br/sp/cursos/aulaaberta/pixac-o-na-bienalde-berlim.html>. Acesso em 20/11/2014. 158 Em Paris, como já foi visto, a pixação era apresentada como parte da história do grafite e Ivson teve alguns espaços destinados ao seu pixo, que poderia ser feito da forma que ele desejasse. Sua assinatura, vista na imagem 31, foi feita na fachada do prédio, na entrada do evento, como que dando as boas-vindas aos visitantes. Naquele evento, não houve desacordo entre o pixador e a curadoria, e a participação se deu da forma como planejada. Ali, a pixação não significava, então, um gesto de “profanação” (AGAMBEN, 2007), mas era ela própria consagrada, levada para dentro de uma instituição artística como uma mera representação gráfica do que era feito na rua, sem conflito, sem litígio, sem desacordo sobre os lugares a ela destinados. Retomando os regimes da arte classificados por Rancière (2009; 2011), é curioso notar que, naquele contexto, há quase uma aproximação da pixação ao “regime ético”, em que a produção e circulação das imagens se dá na produção ou reafirmação dos lugares sociais em uma dada partilha do comum. Ali, embora fosse conferido um novo lugar para a pixação dentro do âmbito da arte, ele era muito bem delineado pela inserção em um lugar específico – o grafite. Assim, cria-se um lugar, uma função e um parâmetro para sua presença naquela esfera, que foram devidamente cumpridos. Já em Berlim, o contexto de produção da assinatura é completamente diverso e contradiz totalmente o que se esperava para aquele momento. Havia ali, também, a tentativa da consagração da pixação, levando-a para a Bienal como algo que poderia ser ensinado e demonstrado na prática de forma separada do seu contexto natural. Daquela vez, contudo, os pixadores não se sentiram respeitados nos lugares que lhes eram conferidos, e emergiram, novamente, pela transgressão. Nesse movimento, eles profanam não somente o lugar (e o fato de ser uma igreja torna ainda mais simbólico o ato), mas a própria pixação, restituindo-a e a eles mesmos (que também eram, de certo modo, consagrados pelo evento) à experiência que lhes é comum e naturalmente profana. Esse gesto também é observado na 29ª Bienal de São Paulo, quando Ivson pixa a obra de Nuno Ramos. Naqueles momentos, o pixo se identifica, novamente, ao “regime estético da arte”, rompendo com as hierarquias que definem quem pode produzir arte, de que forma, sobre o que, em que momentos e para quem. É nesses momentos que os pixadores agem realmente de forma autônoma, e é quando a potência da pixação para desestabilizar as relações e os lugares propostos em uma dada cena consensual se revela. É em momentos como esses, então, que a pixação é política, pois é quando ela expõe as fraturas do que se pretendia inteiro, os vazios e excessos do que se pretendia completo. É quando os pixadores mostram que são protagonistas de suas ações, que 159 são capazes de refletir sobre sua realidade e sobre sua aproximação com outro mundo e, não se percebendo como parte daquele comum que se pretende construir, tomam a palavra e expõem o dano. Eles surgem aí com novos nomes, lugares e funções. Contudo, só conseguem fazer com que suas palavras sejam ouvidas como discurso em condições muito específicas, e os relatos recorrentes de que, na rua, o cotidiano do pixo não se alterou a partir de tais inserções no campo da arte deixam ver que as relações estruturais não foram transformadas. O que acontece é que, por mais que haja um discurso sobre o reconhecimento da pixação como expressão artística e cultural e dos pixadores como artistas, na prática, ele não ultrapassa os limites daqueles contextos particulares. Os pixadores conseguem entrar pela porta da frente, mas acabam saindo, novamente, pelas portas dos fundos, pois o que eles “conquistam” lá não volta com eles para a rua e outras esferas, como a esfera jurídica, por exemplo. Para Djan Ivson, isso nunca vai mudar: Eu acho que o máximo que nós vamos conseguir é o que a gente conseguiu agora, é essa abertura em outros campos. Eu acho que na rua vai ser muito difícil mudar alguma coisa efetivamente, e também não é a nossa busca. Porque pra nós, negociar espaço na rua é abrir mão de liberdade, entendeu? E o pixo existe, justamente... Ele nasceu justamente dessa liberdade, né? Ele existe porque ele é livre, porque tem essa questão de não ter regras, entendeu? [...] Isso tá na essência do pixo. (DEPOIMENTO)228 Embora Ivson considere essa situação natural, ela aponta para a necessidade de se refletir sobre o tipo de reconhecimento que é dado aos pixadores, e, nesse ponto, é importante recorrer brevemente às reflexões de Deranty (2003) sobre as contribuições de Rancière para pensar as noções de reconhecimento como elaboradas por Honneth229 (2003; 2006). Para Rancière, segundo Deranty (2003), é preciso ter em mente que qualquer conquista adquirida a partir da luta por reconhecimento é apenas uma pequena parte de um 228 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014. Honneth (2003) identifica três etapas do reconhecimento recíproco: pelo amor, em que os sujeitos se unem a partir de uma mútua dependência, gerando a autorrelação positiva da “autoconfiança”; pelas relações jurídicas, em que um indivíduo é respeitado a partir das propriedades que o tornam uma pessoa igual às outras, gerando a autorrelação positiva do “autorrespeito”; e pela estima social, em que um indivíduo é respeitado por suas capacidades particulares, que o diferenciam dos demais, gerando a autorrelação positiva da “autoestima”. Segundo o autor, é a experiência do reconhecimento que fortalece e autonomiza o indivíduo. Se ele é negado, podem surgir reações emocionais negativas ligadas ao sentimento de desrespeito e desigualdade, que impedem o sujeito de continuar a agir, e a restituição do respeito e da igualdade só se dão através da luta por reconhecimento. E, para serem consideradas sociais, essas lutas devem se estender para além dos interesses individuais, dando base para um movimento coletivo. 229 160 todo que compõe o reconhecimento radical da igualdade. E, como as lógicas da igualdade e da desigualdade estão para ele profundamente inter-relacionadas (a desigualdade só é possível a partir do pressuposto da igualdade), essa luta nunca encontra um fim. De acordo com o autor, Rancière critica, assim, o modo como o processo de reconhecimento é quase sempre pensado como um processo em direção à reconciliação, como feito por Honneth (2003; 2006). Embora este considere que a luta por reconhecimento é sempre reaberta por novas demandas, ainda está presente a ideia do conflito como âmbito de transição para a reconciliação. Contudo, para Rancière, o que existe é um desentendimento fundamental contido em todo entendimento buscado em uma situação política, pois aqueles que lutam pelo reconhecimento devem se opor àqueles que o negaram a eles. O processo de subjetivação desencadeado pela luta por reconhecimento não pode, então, formar sujeitos reconciliados, mas sujeitos que serão sempre marcados pela diferença que lhes foi imposta e que eles questionam (DERANTY, 2003). Deranty (2003) ainda aponta que, para Rancière, se uma estrutura hierárquica é pensada como intrínseca à ordem social, e a luta por reconhecimento como a busca da consideração da contribuição dos indivíduos para essa sociedade, a ordem social e sua desigualdade são apenas reafirmadas. Nesse sentido, a luta seria destituída de sua potência política, sendo absorvida pela lógica dominante. Honneth (2006) afirma que, atualmente, o reconhecimento público de determinadas propriedades e capacidades dos indivíduos parece mesmo visar à suscitação de uma autorrelação positiva apenas com fins de inseri-los na lógica vigente. Assim, ao invés de fortalecer os sujeitos, fornecer-lhes as ferramentas necessárias e criar condições para sua autonomização (ou, nos termos de Rancière, sua emancipação), essas formas de reconhecimento garantiriam sua submissão voluntária aos lugares e obrigações sociais que lhe são impostos. O autor, no entanto, defende o conceito de reconhecimento contra investidas que tendem a generalizá-lo a partir de seu uso ideológico, pois elas colocariam em suspeita a possibilidade de processos de reconhecimento válidos e justificados. Para Honneth (2006), em alguns casos, é difícil distinguir entre o reconhecimento justificado e o ideológico, pois o indivíduo não se vê como oprimido por uma lógica dominante e não deseja a emancipação, posto que o reconhecimento que lhe é atribuído o posiciona em um lugar social melhor que no passado. Para Honneth (2006), assim, só é possível falar de um reconhecimento puramente ideológico quando os próprios sujeitos envolvidos naquela relação se rebelam contra tal prática, reconhecendo nela uma ferramenta de dominação. 161 Diante dessas considerações teóricas, pode-se perceber que, nos contextos dos pixadores convidados a participarem de eventos artísticos legitimados, a reivindicação pelo reconhecimento da pixação como expressão artística e cultural parece se dar, muitas vezes, no sentido de ter uma contribuição social considerada, exigindo uma parte na ordem, e não a sua desestabilização. Não se trata de um erro ou uma conduta duvidosa por parte dos pixadores, mas de uma busca natural por uma posição melhor. Mas é propriamente a forma dessa reivindicação que abre espaço para a forma com que as instituições se voltam à pixação: se é espaço na ordem o que se deseja, que seja concedido um lugar na ordem. E ele é conferido como o são todos os outros: um lugar, com uma função, um nome e uma programação para a atuação. Funcionou em Paris. É o que a forma como Ivson relata o evento, considerando-o como o mais importante, onde a pixação teria sido reconhecida por aquilo que ela é, como os pixadores a reconhecem entre si, deixa ver. Já nos eventos seguintes, há algumas mudanças. Na 29ª Bienal de São Paulo, o cenário se desenhava da mesma forma, inclusive tendo sido iniciado pelos próprios pixadores, que tomaram a iniciativa de entrar em contato com a curadoria. O discurso da curadoria, como foi visto no Capítulo 5, parece querer mostrar a criação de um terreno fértil para a política, inclusive com a referência a Rancière feita pelo curador, mas o faz justamente pelo apagamento do conflito: tudo parecia se dar de forma dialógica e em mútuo entendimento entre curadoria e pixadores. Os pixadores, no entanto, apesar de entrarem em concordância em diversos aspectos, inclusive sobre a forma de representação da pixação no evento, deram sinais de que sua participação poderia extrapolar a programação proposta. Naquele momento, eles começam a mostrar que queriam mais que simplesmente a concessão de um lugar, o que é evidenciado pela ação de Djan Ivson ao pixar a obra Bandeira Branca e ao justificar tal ação afirmando que queria mostrar que os pixadores continuavam autônomos, mesmo estando ali como convidados. A forma com que ele relata o caso fazendo uma analogia entre os urubus e os pixadores, e refletindo sobre a discrepância entre a situação daqueles que estavam na Bienal e os Piores de Belô, que estavam presos em Belo Horizonte, e de como eles chegaram naqueles lugares tão diferentes a partir de uma mesma prática, também evidencia que a reivindicação muda. Eles queriam não só um lugar na arte, mas que esse lugar respeitasse sua autonomia para apresentar seu mundo de sua própria forma. E, para Rancière, um sujeito emancipado é aquele capaz de adquirir e trabalhar sua própria linguagem. 162 Em Berlim, o questionamento dos pixadores já se dá no próprio formato de participação imposto pela Bienal, o que influencia em todo o desenrolar do evento. Eles mostram, em seus argumentos e em sua ação, que não queriam um lugar qualquer, mas um que fosse construído por eles, em diálogo com a curadoria. Como não conseguem se fazer ouvidos, eles tratam de se fazer vistos pela via que sempre conheceram: a transgressão. É curioso notar que, no momento em que os quatro pixadores ali presentes escalam as paredes da igreja e as cobrem com seu pixo, diante do desespero da curadoria e do choque do público, a Bienal de Berlim se assemelha às invasões de 2008, com a diferença que eles chegaram ali como convidados. Saíram, no entanto, processados. Djan Ivson disse que, depois de Berlim, não houve novos convites, mas cada um teria feito sua parte: o campo da arte, ao dar abertura (ainda que limitada), e ele, ao manter um diálogo com diversas esferas sem abrir mão da “essência” da pixação: Por mais que o circuito negligencie a gente, eles fizeram a parte deles, eles deram abertura. A gente mostrou que é difícil trabalhar com a gente, né? A gente manteve a nossa postura também, a gente tem um respeito por isso. A gente só não é viável mercadologicamente pra eles, né? Pode ser que venha a ser, futuramente, não sei. Mas eu acho que é... Eu me sinto assim, mesmo se não der certo, sabe? [...] Mas, se não der certo, pelo menos eu sei que eu fiz minha parte, sabe? Minha preocupação maior é com a galera da rua, tipo, todas essas ações eu tive o apoio deles, sabe? Isso que não tem preço pra mim, os caras chegar “pô, Djan, demais o que cê fez lá, lá em Berlim, quase foi preso”, “putz, o que cê fez na Bienal aqui”, entendeu? Acho que o nosso compromisso com o movimento a gente manteve, né, a gente conseguiu dialogar, né, com a imprensa, com as instituições de arte, com o meio acadêmico, mantendo a nossa essência, né? (DEPOIMENTO)230 É interessante como Ivson associa o fato de a pixação “não dar certo” institucionalmente por não ser “viável mercadologicamente”. Desde o princípio, nas primeiras invasões, Rafael Augustaitiz já colocava a questão da contestação da arte feita sob encomenda para o mercado. Também nesse sentido, Ivson dá várias declarações, mostradas ao longo deste trabalho, sobre os pixadores não visarem a ganhos materiais, mas apenas simbólicos, ligados à afirmação e ao reconhecimento da existência, além das valorizações internas aos grupos. Para ele, é isso que faria da pixação uma arte “revolucionária”: 230 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014. 163 A arte virou um produto do mercado, o artista já nasce se preparando para o mercado. Com a pixação, você não está em busca de nada material ou financeiro, é só um valor simbólico. A nossa busca é existencial, é não deixar a nossa existência passar em branco. Esse é o papel do pixador. E ele é um artista que sustenta o seu trabalho, os outros artistas fazem o contrário, eles se sustentam através da arte deles. (DEPOIMENTO)231 Assim, como não houve sucesso em criar formas de apreensão e capitalização da pixação enquanto um produto artístico, ela não poderia permanecer no universo da arte de forma alguma. Outro aspecto interessante é uma certa crença ou ingenuidade de Ivson sobre o estabelecimento de relações com outras esferas (imprensa, instituições de arte, etc.), afirmando que as situações de aproximação e contato com esses âmbitos significaram, realmente, uma abertura ao diálogo, quando, na verdade, na maioria das vezes, o que parece ter acontecido foi não muito mais que um aumento da visibilidade – ainda assim, de formas que foram aqui questionadas. Ivson foi o pixador que mais teve a vida e a visibilidade transformadas a partir dos eventos. Ele, que sempre ganhou dinheiro a partir do pixo (pelo já referido acordo com a prefeitura de Barueri, pela venda dos vídeos produzidos em seus selos), diz trabalhar atualmente “só com arte e cinema” 232, produzindo, inclusive, obras baseadas na estética do pixo. Já outros pixadores, como William e Biscoito, que também foram a Berlim e também são personagens do documentário Pixo (2009), alegam233 que nada mudou para eles, e que o único ganho foi a satisfação de estarem sendo vistos. Essa questão dá mais uma pista sobre o fato de o reconhecimento da pixação e dos pixadores não se estender para além dos contextos dos eventos dos quais eles participaram: mais que à pixação, o reconhecimento é atribuído, principalmente, a Djan Ivson, colocado como um representante da prática. Para Honneth (2006), no reconhecimento pautado pelo mérito individual, as relações de dominação e desigualdade de uma sociedade hierárquica são mantidas e as dimensões social e coletiva são perdidas, já que se cria a ideia de que o 231 Fala extraída da entrevista: MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-em-uma-bienal-cujaproposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. 232 Em entrevista concedida à autora em 16 de maio de 2014. 233 ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 20/01/2015. 164 indivíduo alcançou outro patamar devido ao seu esforço e talento. Nesse cenário, não sobra muito espaço para que a evolução social do indivíduo se converta em uma evolução moral para sua comunidade. Ou seja, Djan Ivson emerge individualmente como um representante, um interlocutor com capacidade para refletir e argumentar sobre sua realidade, mas esse status não é ampliado para seus pares. Isso, no entanto, não desqualifica o trabalho de Ivson. É, certamente, importante que a tradução da realidade da pixação passe a se dar, nas outras esferas, por meio de um pixador, e não mais de um jornalista ou de um sociólogo que tenha contato e aproximação com os pixadores. Essa é, sem dúvida, uma das mais fundamentais conquistas dos pixadores a partir do processo desenhado pelos seis eventos. 6.3. Considerações finais Uma palavra que parece caracterizar o processo de inscrição da pixação e dos pixadores no campo da arte, assim como cada um dos eventos, é tensão. Tensão entre lugares conferidos, lugares tomados, e lugares construídos; entre nomes dados e nomes assumidos; entre a visibilidade e a invisibilidade; entre a contestação e a assimilação; entre capturas e resistências; entre controle e autonomia. É possível afirmar, com tudo o que foi visto, que nenhum dos eventos apresentou um cenário completamente livre de desentendimentos e dissensos, dos mais pontuais – como na consensual presença da pixação em uma renomada instituição artística em Paris (que é, em si, um dissenso, por exibir a pixação em um lugar completamente descolado de seu contexto cotidiano e receber um pixador como convidado) – aos que irromperam com maior força – como a sequência de suspensões de expectativas que se deram em todo o processo da presença e participação dos pixadores na Bienal de Berlim. As formas de inscrição dos pixadores em cada cena vão se modificando, mas parecem, ao final do processo (se é possível dizer que ele chegou ao final), complementares e quase cíclicas – da total contestação, passando pela anunciada “abertura ao diálogo” e retornando à contestação – o que mostra um certo aprendizado daquele jogo. Os pixadores construíram um lugar de fala a partir de suas ações e de seu discurso, que demonstra o quanto a relação deles com a prática da pixação, com a arte, e entre eles transborda qualquer definição que tenta reduzir suas capacidades e seus horizontes de possibilidades a um único nome, ao qual se ligaria um único lugar e uma única função. As ações não significaram, assim, uma simples deslegitimação da ordem, mas uma constante reinvenção do comum a partir da verificação da 165 igualdade pelo questionamento dos lugares dados e pela abertura de novas possibilidades de partilha, não a fim de criar um novo consenso, mas de colocar em tensão diferentes formas de apreensão e enquadramento do comum. De saída, o argumento utilizado pelos pixadores é o questionamento sobre uma certa ordem colocada pelo mundo das artes, que estabelece quem pode fazer o quê, de que forma e em quais momentos. Ao transgredirem essa ordem, seja nas invasões ou na insubmissão a propostas fechadas de participações, os pixadores a desestabilizam e se tornam atores em cenas inventadas por eles para se inscreverem em um comum. Na imprensa, pixadores têm suas falas capturadas e articuladas àquelas de curadores, artistas, e pesquisadores para construírem juntas, e em tensão, aquele quadro de sentidos. Naqueles momentos, ainda que assimetrias de poder atuem na hierarquização dessas falas e nos modos como elas são editadas, é possível dizer que ter a palavra exposta no espaço de visibilidade da mídia promove a manifestação (ainda que não seja uma real interlocução) de uma parte suplementar que perturba a comunidade tida como consensual e incita a invenção de nomes para esses sem parcela, que saem da marginalização discursiva e simbólica rumo ao embaralhamento de signos que os definem e à controvérsia com relação a como identificá-los. Artistas? Criminosos? Vândalos? Todos eles, juntos, em interseção. Torna-se, assim, possível identificar os “pichadores” (com ch) como “sem parte”, pois não há parte que lhes caiba se não aquela prevista pela lei que os condena enquanto criminosos ambientais – eles não têm, enquanto tais, nada a oferecer. A inserção da pixação na lógica artística, por sua vez, também confere a ela um nome, um lugar e um modo de fazer que determinam espaços e situações em que aquela atividade e seus praticantes serão contados e ouvidos. Se, por um lado, as instituições atuam na configuração desses lugares, construindo uma imagem de respeito e reconhecimento aos pixadores e buscando, a partir daí, controlar irrupções e transgressões e criar uma impressão de entendimento e completude, por outro, não se deve pensar que os pixadores entram no jogo de forma passiva, mas que, dotados de igual inteligência e capacidade, eles também fazem o cálculo de perdas e ganhos em cada situação e fazem suas próprias encenações do consenso. No entanto, os momentos de recusa e transgressão dos pixadores a esses lugares em que as lógicas institucionais e artísticas tentam conformá-los também apontam para a possibilidade da resistência, quando são criadas cenas de dissenso em que se coloca em questão tal distribuição de lugares, a existência de limites entre o que está dentro ou fora, do que é central ou periférico, visível ou invisível. E é 166 justamente a partir dessas cenas que os pixadores conseguem reconfigurar os modos com que são vistos e percebidos, construindo-se como sujeitos políticos que se localizam entre termos contraditórios que definem seu modo de tomar parte em um comum. É fato que essa nova configuração seja muito específica daquela relação de aproximação conflituosa entre os universos da pixação e da arte, e que ela não se expanda para o dia-a-dia da prática, na rua, onde a pixação continua a ser proibida por lei e rechaçada pela população. Eventos recentes, como o caso dos pixadores Alex Dalla Vecchia Costa e Aílton dos Santos, mortos pela polícia em um prédio que haviam invadido para chegar ao telhado e pixar a fachada, em agosto de 2014234 (os policiais alegaram troca de tiros, mas os moradores do prédio negaram, e não foi provado que os pixadores estivessem armados. Os policiais foram detidos e soltos em menos de um mês); e a condenação de integrantes do Piores de Belô, ainda pelo caso de 2010 (citado por Djan Ivson no caso da pixação “Liberte os urubu”), pelo crime de formação de quadrilha, com penas de detenção e multa235, são alguns poucos exemplos que deixam explícito que, ainda que a importância política daquele processo de inserção da pixação no campo da arte não possa ser invalidada por seu resultado não se estender à rua, o debate sobre a pixação como manifestação comunicacional e artística, que faz aparecer, de forma polêmica e litigiosa, um mundo negligenciado e tornado invisível, deve ser levado às outras esferas em que ela se manifesta. Afinal, como foi visto, a pixação guarda uma potência para servir como meio para a construção política de novos lugares para os pixadores. Assim como a subjetivação dos pixadores promove novas formas de figuração e intervenção do pixo. É possível pensar, então, que essa potência da linguagem e da criação ética e estética de um modo de ser no mundo possa se realizar em outras esferas morais de justiça e gerar outras transformações em seu universo. 234 FOLHA ONLINE. Dupla morre baleada em apartamento da zona leste de São Paulo. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 01 de agosto de 2014. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/08/1494495-dupla-morre-em-troca-de-tiros-com-pms-em-prediona-zona-leste-de-sp.shtml>. Último acesso em 06/02/2015. 235 ESTADO DE MINAS. TJMG mantém condenação para trio acusado de integrar gangue “Piores de Belô”. Estado de Minas (online), Belo Horizonte, 04 de dezembro de 2014. Gerais. Disponível em: <http://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/12/04/interna_gerais,596486/tjmgmantemcondenacaoparatrioac usadodeintegrarganguepioresdebelo. shtml>. Último acesso em 06/02/2015. 167 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007. P. 65-79. AMADO, Guy. Griffiti ou a transgressão domesticada. In: Revista Número. 6ª edição. São Paulo: abril de 2005. Disponível em: <http://www.forumpermanente.org/rede/numero/revnumero6/seisguyamado>. Acesso em 31/03/2014. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2007. 10ª ed. p. 211-220. ARENDT, Hannah. A vida do espírito. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. 4ª ed. p. 5-42. BAUDRILLARD, Jean. Kool Killer ou a insurreição pelos signos. Tradução: Fernando Mesquita. In: Revista Cine-Olho, nº5/6. São Paulo: jun/jul/ago, 1979. Disponível em: <http://seraphimfotos.blogspot.com.br/2006/11/kool-killer-ou-inssurreio-pelos-signos.html>. Acesso em 30/03/2014. BEY, Hakim. CAOS. Terrorismo Poético e Outros Crimes Exemplares. São Paulo: Editora Conrad, 2004. BOLETA. Glossário. In: BOLETA (org.). Ttsss... A grande arte da pixação em São Paulo, Brasil. São Paulo: Editora do Bispo, 2006. BOURDIEU, P. (1986) The forms of capital. In J. Richardson (Ed.) Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. New York, Greenwood. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1998. CHAMBERS, Samuel. The Lessons of Rancière. New York: Oxford University Press, 2013. P. 112-122. DERANTY, Jean-Philippe. Jacques Rancière‟s contribution to the ethics of recognition. In: Political Theory, v.31, n.1, 2003, p.136-156. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2011. FAIRCLOUGH, Norman. Media Discourse. London: Arnold, 1995. FONSECA, Cláudia Graça da; SILVA, Regina Helena Alves da. Diálogos da rua: uma cartografia dos sentidos e usos do Centro de Belo Horizonte. In: VI Encontro dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Trabalho apresentado ao Núcleo de Pesquisa Comunicação e Culturas Urbanas. Belo Horizonte, 2005. 168 FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS. Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault: uma trajetória filosófica Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad. Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. P.231-249. FRANCO, Sérgio Miguel. Iconografias da metrópole: grafiteiros e pixadores representando o contemporâneo. Dissertação de mestrado. Área de Concentração: Projeto, Espaço e Cultura. São Paulo: FAU/USP, 2009. GASKELL, G. Entevistas individuais e grupais. In: GASKELL, G.; BAUER, M. W. (Orgs.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2002. P. 64-89. GITAHY, Celso. O que é Graffiti. São Paulo: Brasiliense, 2012. GONÇALVES, Fernando do Nascimento. Poéticas políticas, políticas poéticas: comunicação e sociabilidade nos coletivos artísticos brasileiros. Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Comunicação - E-compós, Brasília, v.13, n°1, janeiro-abril de 2012. P. 1-14. GONÇALVES, Fernando do Nascimento. Revisitando o lugar do poético e do político nas práticas artísticas urbanas. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Sociabilidade do XX Encontro da Compós, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, de 14 a 17 de junho de 2011. GONÇALVES, Fernando; ESTRELLA, Charbelly. Comunicação, arte e invasões artísticas na cidade. In: Revista Logos, Rio de Janeiro, v.26, Ano 14, 1º semestre 2007. P. 98-110. Disponível em: <http://www.logos.uerj.br/PDFS/26/07_FERNANDO_CHARBELLY.pdf>. Acesso em 03/12/2014. HALLWARD, P. Staging Equality: Rancière‟s Theatrocracy and the Limits of Anarchic Equality. In: ROCKHILL, G; WATTS, P (Orgs.). Jacques Rancière: History, Politics, Aesthetics. Durham and London: Duke University Press, 2009, p.140-157. HARVEY, David. A liberdade da cidade. In: HARVEY, David et al. Cidades rebeldes: Passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013. p. 27-34. HONNETH, Axel. El reconocimiento como ideología. In: ISEGORÍA, Nº 35 Julio Diciembre, 2006. 129-150. KNAUSS, Paulo. Grafite Urbano Contemporâneo. In: TORRES, Sônia (org). Raízes e Rumos. Rio de Janeiro: 7 letras, 2001. p. 334-353. LASSALA, Gustavo. Pichação não é Pixação: uma introdução à análise de expressões gráficas urbanas. São Paulo: Altamira Editorial, 2010. 169 MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro. Três bases estéticas e comunicacionais da política: cenas de dissenso, criação do comum e modos de resistência. In: Revista Contracampo, v. 26, n. 1, ed. abril, 2013. Págs: 126-145. MARQUES, Ângela Cristina Salgueiro; MAFRA, Rennan Lanna. O diálogo, o acontecimento e a criação de cenas de dissenso em contextos organizacionais. In: Dispositiva, v.2, n.2, 2013. P.2-20. MOUFFE, Chantal. Artistic Activism and agonistic spaces. Art & Research, v.1, n.2, 2007, p.1-5. Disponível em: <http://www.artandresearch.org.uk/v1n2/pdfs/mouffe.pdf>. Acesso em 08/02/2015. OLINTO, Antonio. Minidicionário Antonio Olinto da Língua Portuguesa. São Paulo: Moderna, 2001. OLIVEIRA, Ana Karina de Carvalho; MARQUES, Ângela C. S.. Cenas de dissenso e processos de subjetivação política na poética enunciativa das pixações. In: Revista Líbero, São Paulo, V.17, n.33A, jan./jun. de 2014. P.71-84. OLIVEIRA, Ana Karina de Carvalho. Vozes marginais no espaço urbano: os stickers no Centro de Belo Horizonte. Monografia de conclusão de curso de Graduação. Área de concentração: Comunicação Social com Habilitação em Publicidade e Propaganda. Belo Horizonte: Faculdade Promove, 2008. PANAGIA, Davide; RANCIÈRE, Jacques. Dissenting words: a conversation with Jacques Rancière. Diacritics, v.30, n.2, 2000, p.113-126. PEREIRA, Alexandre Barbosa. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social. São Paulo: USP, 2005. PONTES, Juliana. A cidade na superfície. In: MACIEIRA, Cássia; PONTES, Juliana. Na rua: pós-grafite, moda e vestígios. Belo Horizonte: Ed. Universidade FUMEC – Faculdade de Engenharia e Arquitetura, 2007. PUTNAM, Robert. “Bowling alone: america‟s declining social capital”. Journal of Democracy, vol. 6, n. 1, janeiro 1995, pp. 65-78. RAMOS, Pedro H. van V. Rancière: a política das imagens. Princípios - Revista de Filosofia, Natal, V. 19, n. 32, Julho/Dezembro de 2012. P. 95-107. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Estética e política. Trad. Mônica costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009a. RANCIÈRE, Jacques. El destino de las imágenes. Trad. Paulo Bustinduy. Pontevedra: Politopías, 2011. P.25-82. RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: Política e Filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: Ed. 34, 1996. 170 RANCIÈRE, Jacques. O espectador emancipado. In: Revista Urdimento, vol.1, nº15. Florianópolis: Ceart/UDESC, 2010. P.107-122. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante. Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad.: Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. P.55-82. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad.: Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014. RANCIÈRE, Jacques. Sobre políticas estéticas. Barcelona: Bellaterra (Cerdanyola del Vallés), 2005. P.69-80. RANCIÈRE, Jacques. Ten Theses on Politics. Theory & Event, v.5, n.3, 2001. RANCIÈRE, J. The method of equality: an answer to some questions. In: ROCKHILL, G.; WATTS, P. (eds.). Jacques Rancière: History, Politics, Aesthetics. Durham and London: Duke University Press, 2009b, p.273-288. RANCIÈRE, Jacques. Literature, Politics, Aesthetics: Approaches to Democratic Disagreement. Interviewed by Solange Guénoun and James H. Kavanagh, Substance, n.92, 2000, p.3-24 ROSS, Alison. Expressivity, literarity, mute speech. In: DERANTY, Jean-Philippe (org.). Jacques Rancière: Key Concepts. London: Taylor & Francis, 2010. P.133-150. SÁ, Xico. Jardins Suspensos de Babel/Babilônia. In: BOLETA (org.). Ttsss... A grande arte da pixação em São Paulo, Brasil. São Paulo: Editora do Bispo, 2006. SCOTT, James C. Domination and the Arts of Resistance. Hidden Transcripts. Londres: Yale University Press, 1990. TAMBAKAKI, P. When does politics happen? In: Parallax, v.15, n.3, 2009. P.102-113. TASSIN, Etienne. De la subjetivación política. Althusser, Rancière, Foucault, Arendt, Deleuze. Revista de Estudios Sociales, n.43, 2012, p.36-49. TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar. A perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983. VAN DIJK, Teun. Critical Discourse Analysis. In: SCHIFFIN, D.; TANEN, D.; HAMILTON, H. (eds.). The Handbook of Discourse Analysis. London: Blackwell, 2001, p.352-371. Material audiovisual CIDADE CINZA. Direção de Marcelo Mesquita e Guilherme Valiengo. São Paulo: Espaço Filmes, 2013. Documentário. (80 min). 171 ENTREVISTA COM DJAN IVSON. Altas Horas. São Paulo: Rede Globo de Televisão, 19 de dezembro de 2009. Programa de TV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=RBAM-WfxBtM>. Último acesso: 20/01/2015. ENTREVISTA COM DJAN IVSON. Palavra Ética. Belo Horizonte: TV Comunitária, 04 de outubro de 2012. Programa de TV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=MIspJePHHo>. Último acesso em 20/01/2015. ENTREVISTA COM DJAN, WILLIAN, BISCOITO e GABRIEL. Desculpe a Nossa Falha. São Paulo: PosTV, 30 de março de 2012. WebTV. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7PVnOKjqw0>. Último acesso em 20/01/2015. ENTREVISTA COM PICHADORES. Altas Horas. São Paulo: Rede Globo de Televisão, 18 de maio de 2014. Programa de TV. Disponível em: <http://gshow.globo.com/programas/altashoras/videos/t/programa/v/serginho-groisman-bate-um-papo-com-um-grupo-depichadores/3353635/>. Último acesso em 20/01/2015. O REBU. Rafael Augustaitiz. São Paulo, 19 de janeiro de 2014. Vídeo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=yX84QvqGCDw>. Acesso em 23/04/2014. PIXO. Direção de João Wainer e Roberto T. Oliveira. São Paulo: Sindicato Paralelo Filmes, 2009. Documentário. (61 min). Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=JjS0653Gsn8>. Acesso em 08/04/2014. Matérias jornalísticas e outros conteúdos online CAPRIGLIONE, Laura. Escola expulsa aluno que vandalizou prédio. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 18 de julho de 2008(a). Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1807200826.htm>. Último acesso em 21/01/2015. CAPRIGLIONE, Laura. Ódio a pichadores me deixou tanto tempo presa, afirma jovem. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 20 de dezembro de 2008. Cotidiano. Disponível em < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2012200813.htm>. Último acesso em 22/01/2015. CAPRIGLIONE, Laura. Pichadores vandalizam escola para discutir conceito de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de julho de 2008(c). Cotidiano. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1306200820.htm>. Último acesso em 21/01/2015. CYPRIANO, Fábio. Bienal abre no sábado com ameaça de pichação. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 24 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/459724-bienal-abre-no-sabado-comameaca-de-pichacao.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 172 CYPRIANO, Fábio. Curador „pichado‟ por brasileiro chama ato de diálogo. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1104997-curador-pichado-por-brasileirochama-ato-de-dialogo.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. FOLHA ONLINE. Grupo invade a Bienal e picha o segundo andar. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 26 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/460634-grupo-invade-a-bienal-e-picha-osegundo-andar.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. FOLHA ONLINE. Organização da Bienal remove pichações e reforça segurança. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 28 de outubro de 2008. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2008/10/461213-organizacao-da-bienal-removepichacoes-e-reforca-seguranca.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. EZABELLA, Fernanda. Paris celebra pichação de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 04 de julho de 2009. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0407200907.htm>. Último acesso em 22/01/2015. LUZ, Amanda. Para curador alemão, ato de pichadores brasileiros foi irresponsabilidade. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1105215-para-curador-alemao-ato-depichadores-brasileiros-foi-irresponsabilidade.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. MACRUZ, Beatriz. Pichadores narram intervenção na Bienal de Berlim. Caros Amigos (online), São Paulo, 26 de julho de 2012. Cultura. Disponível em: <http://www.carosamigos.com.br/index.php/cultura/noticias/2317-a-arte-como-crime-emuma-bienal-cuja-proposta-era-esquecer-o-medo>. Último acesso em 22/01/2015. MARTÍ, Silas. Ataques de pichadores reacendem debate na Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 29 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/806126-ataques-de-pichadores-reacendemdebate-na-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MARTÍ, Silas. Curadoria da Bienal faz reunião com grupo de pichadores. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 28 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/805740-curadoria-da-bienal-faz-reuniaocom-grupo-de-pichadores.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MARTÍ, Silas. Pixador da Bienal vira celebridade e faz longa sobre movimento. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de março de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/03/1062064-pichador-da-bienal-viracelebridade-e-faz-longa-sobre-movimento.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. MARTÍ, Silas. Segundo dia da Bienal tem nova obra pichada. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 27 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: 173 <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/805143-segundo-dia-da-bienal-tem-novaobra-pichada.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MENA, Fernanda. “Pixo” na Bienal de São Paulo provoca racha nas artes. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/721033-pixo-na-bienal-de-sao-pauloprovoca-racha-nas-artes.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MENA, Fernanda. “„Pixo‟ questiona limites que separam arte e política”, diz curador da Bienal de SP. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 15 de abril de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/04/720657-pixo-questionalimites-que-separam-arte-e-politica-diz-curador-da-bienal-de-sp.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MERCIER, Daniela. Cerca de 30 pichadores invadem galeria de arte danificam obras expostas. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 09 de setembro de 2008. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0909200835.htm>. Último acesso em 22/01/2015. MOURA, Danila. Igreja pichada por brasileiros em Berlim está interditada por tempo indeterminado. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 14 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2012/06/1104868-igreja-pichadapor-brasileiros-em-berlim-esta-interditada-por-tempo-indeterminado.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MUNIZ, Diógenes. Às portas da Bienal, “pixo” busca modelo de negócio no mercado de arte. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800384-as-portas-dabienal-pixo-busca-modelo-de-negocio-no-mercado-de-arte.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. MUNIZ, Diógenes. Convite revela medo da Bienal, diz pichadora presa em 2008. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de setembro de 2010. Ilustríssima. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2010/09/800387-convite-revela-medo-da-bienaldiz-pichadora-presa-em-2008.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. NEVES, Fernanda Pereira. Pichadora de Bienal diz em audiência que ato foi manifestação artística. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 17 de fevereiro de 2009. Cotidiano. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2009/02/505370-pichadora-debienal-diz-em-audiencia-que-ato-foi-manifestacao-artistica.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. VAZ, Juliana. Obra polêmica da Bienal de Artes de SP é alvo de pichador. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 25 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/804784-obra-polemica-da-bienal-de-artes-de-sp-ealvo-de-pichador.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. 174 VAZ, Juliana. Pichador de obra na Bienal é do grupo que pichou o prédio em 2008, diz polícia. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 25 de setembro de 2010. Ilustrada. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2010/09/804794-pichador-de-obrana-bienal-e-do-grupo-que-pichou-o-predio-em-2008-diz-policia.shtml>. Último acesso em 23/01/2015. WAINER, João. Paulista “picha” curador da Bienal de Berlim. Folha de São Paulo (online), São Paulo, 13 de junho de 2012. Ilustrada. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/48530-paulista-picha-curador-da-bienal-deberlim.shtml>. Último acesso em 22/01/2015. 175 APÊNDICE: TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA COM DJAN IVSON Entrevista realizada em 16 de maio de 2014, em Belo Horizonte. ANA KARINA: O que significa a pixação para você? E ser pixador? Me conta um pouco da sua história. DJAN IVSON: Então, eu comecei bem jovem, né, na pixação. Com 12 anos, e tal. Tipo, nessa época tava tendo um boom de pixação em São Paulo. Em 96, a pixação, ela tava ganhando maturidade como movimento, em São Paulo. Ela vinha dos anos 80 ali, se moldando, né, passou por algumas transformações, desde os primeiros pixadores, tipo... Vamos dizer, desde a ditadura, onde nasceu realmente a pixação e a pronúncia “pixação”. E aí, nesse ano que eu comecei, a pixação, ela já tava consolidada como um movimento de grupos, já tinha as uniões, os pontos de encontro, festa, tudo isso já tava muito consistente. E eu morava num município na região metropolitana de São Paulo, Barueri, que era um município que não tinha muita tradição no pixo, como algumas outras regiões da cidade, tipo, o pixo tava se espalhando, sabe, começando a se difundir. Então, comecei com a aquela percepção totalmente regional, ali, de um pixador de vila mesmo, né, e o que motivou mesmo é a questão da transgressão, da autoafirmação, da... É... Da adrenalina, também, de um tipo de lazer, né? Isso, eu jovem já fazia vários esportes, assim. Eu jogava bola, eu lutava capoeira, eu andava de patins, gostava de fazer manobra radical, e tal, e aí, quando eu conheci o pixo foi onde eu me acorrentei de vez... Foi quando eu me acorrentei de vez, né, ao movimento, tipo, que eu vi que tinha... Ali tinha tudo o que a gente precisava: autoafirmação, transgressão, aventura, né? Então, comecei com essa onda, né, de tá ali fazendo uma coisa que me dava prazer, trazia adrenalina. Porque no meu primeiro rolê, inclusive, eu fui pego pixando e voltei todo pintado pra casa, entendeu? AK: No primeiro? DI: No primeiro! Eu fui... Porque, assim, meus colegas pixavam, eu nem gostava muito. Eles já pixavam, eu andava com eles e eles tavam na onda de começar a pixar. Aí, eu fui tentar acompanhar o rolê e me dei mal, entendeu? E aí no começo, né, quando eu descobri a dimensão que o pixo tinha na cidade, que era um movimento que interligava toda a cidade, e aí você começa a se sentir pequeno dentro do movimento e querer buscar, assim, um espaço de projeção, né, nesse meio. Porque resumindo mesmo, eu acho que o pixo é uma projeção existencial, é uma promoção existencial, né? É uma forma da gente tá marcando a nossa passagem aqui, criando uma memória da nossa passagem, né? E eu acho que... Esse e vários outros fatores que acabam (palavra incompreendida). Você vê que não é só uma coisa que motiva a gente à pixação, são vários... Várias coisas, vários fatores que acabam formulando, né, essa coisa de ser pixador. AK: Eu li em alguns lugares que você tinha parado com o pixo. Várias matérias assim: “Djan Ivson, ex-pixador”. Você parou e voltou? O que te motivou? Ou é assim mesmo: vai parando, vai voltando... DI: Não, é que, na realidade, parar, parar, eu nunca parei, né? Mas eu tive um momento de tá se afastando um pouco da atividade na rua como pixador, né? Porque, eu comecei com doze, 176 né? E aí, com vinte, eu já tava consagrado no pixo, já tinha uma vivência grande na cidade e já tinha acumulado processos criminais, e, também, tinha acabado de formular família, né, tava há dois anos casado, e aí eu... Foi quando eu resolvi... Eu... A pixação tava me prejudicando naquele momento, né? E eu já tinha chegado no auge também, tipo, aquilo que eu busquei na minha infância eu consegui. Com vinte anos, até antes, tipo, dos dezesseis aos vinte, eu me consagrei como pixador, porque eu participei de uma transição importante do pixo, que foi a escalada vertical. Eu participei dessa transição e eu fui pioneiro em várias escaladas e tal. Então, com vinte anos, eu já tava meio que, sabe, consagrado no pixo, eu não tinha mais o que fazer, né, não tinha mais uma motivação, assim, porque eu já tinha pixado tudo, já tinha feito de tudo na pixação. E eu tava precisando parar mesmo, dar um tempo. Então, nesse período, eu comecei a produzir os vídeos, que foi uma forma que eu encontrei de canalizar toda aquela energia que eu tinha pra pixar, e não tá afastado da pixação, foi fazendo os vídeos. E aí eu canalizei toda aquela disposição que eu tinha, né, como pixador, nos vídeos. E muitas entrevistas... Foi nessa época que eu comecei a aparecer mais na mídia, né, devido às documentações e tal, e eu, ao falar com os jornalistas que eu não tava pixando, eles já me rotulavam de ex-pixador, né, porque, eu falava que não tava na atividade. Então, o fato de eu não tá na atividade acabou... E tá dando entrevista pra imprensa, acabou gerando esse estereótipo na época, né? Mas na real, eu nunca deixei de ser pixador, né? AK: Uma vez pixador, sempre pixador? DI: Eu troquei a lata pela câmera, essa que foi a transição que eu fiz. E foi importante, porque foi num momento que a gente tava carente desse tipo de registro, né, a gente não tinha esse tipo de registro. E eu senti essa carência do pixador, e foi um momento que eu comecei a me dedicar a isso com a mesma dedicação que eu tive no pixo, eu tive no registro também. AK: Você esteve presente nas invasões de 2008, nos ataques lá com o Rafael, no Centro Universitário Belas Artes, na Galeria, né, e na Bienal de 2008. Você podia me contar um pouco sobre esses eventos, assim, como que eles foram organizados, como que isso foi passado, porque participaram dezenas de pixadores, né? E o que te motivou a fazer parte disso? DI: Então, é... Esse período de 2008, quando começou isso, o Rafael, que é um pixador que era do nosso grupo, né, d‟Os Mais Fortes, ele foi estudar, né, já tava estudando há algum tempo na Belas Artes, e estudando lá ele descobriu a potência do pixo dentro da arte contemporânea, né? E ele defendia o pixo como a tese de Artes Plásticas dele. Ele sofria resistência, né, dos professores... Sofria preconceito e resistência em relação a defender esse tema, né? Então, ele chegou no último ano, o Rafael meio que deu uma surtada, né, com tudo aquilo que tentaram empurrar goela abaixo dele, e aí... Como ele descobriu que o pixo era essa potência na arte contemporânea, ele queria tornar essa discussão pública, entendeu? E foi por isso que ele sacrificou o diploma dele, né? Ele queria inserir o pixo numa discussão, ele sabia que a instituição era simbólica, né, a instituição de Belas Artes... A faculdade de Belas Artes, né... Ele também pensou nessa simbologia e ele me comunicou isso, né? Como amigo, no começo, eu não entendia, nem apoiava, porque eu tinha uma preocupação com o diploma dele, com os estudos dele, que a gente sabe a luta que foi pra ele ganhar uma bolsa, né? Ele era bolsista, e tal. Ganhou a bolsa fazendo um trabalho pra faculdade, onde ele quebrou o braço e não tinha... Aí ele ficou desempregado, e aí a faculdade se viu obrigada a dar a bolsa pra ele. Então, eu acompanhei todo esse processo, o Rafa era um exemplo pra nós, porque ele 177 sempre foi... Sempre desenhou, sempre era o cara que tinha um talento, né, já dominava as artes. Ele veio do grafite, na realidade, ele fez o caminho inverso: ele veio do grafite pra pixação. Então, bem nesse período, a gente tava no auge dos registros, e tal, e eu não via essa possibilidade de, né, eu tinha essa preocupação de não prejudicar ele. Mas, quando alguns produtores que eu tava trabalhando, o João Wainer e tal, os caras do Pixo, eles falaram pra mim que o que o Rafael tava propondo ia mudar tudo na pixação. Porque, eles já tavam num nível, o Rafael tava num nível, é, de conhecimento cultural que a gente não conseguia acompanhar ele. A gente falava até que ele tava ficando doido, na época. É, o papo é que ele tava maluco, entre nós, pixadores, ninguém acompanhava o que ele falava. Parecia... Porque, né, o cara tinha estudado. Quando eu comecei a entender ele que as coisas mudaram, porque ele precisava de mim pra tocar essa revolução, né, tipo, ele precisava da minha influência com os pixadores pra tornar isso uma revolução coletiva. Então, quando os diretores do Pixo me ajudaram a entender o Rafael, e aí que eu me convenci de... Eu falei: “não, tudo bem, vamo fazer então, vamo fazer essa bagunça no seu TCC”, né, que acabou gerando a expulsão dele e que... Assim, a gente não se arrepende, né, de nada que aconteceu, mas na época, assim, foi um baque, né, pra família dele. Que nem, o primeiro telefone que tocou, quando a mãe dele ligou, foi o meu, ligou pra mim pra saber o que tava acontecendo, porque ele foi detido, eu consegui fugir. Então, tinha essa preocupação de amigo, né, mas a gente tinha uma revolução pra tocar, né? Então, quando a gente decidiu isso, a gente fez um comunicado convidando os pixadores abertamente a participar desse ato que foi a primeira defesa coletiva do pixo, entendeu? Tipo, foi a primeira vez que os pixadores deixaram seu rolê de lado e se juntaram numa causa coletiva em prol da pixação, que era, né, essa defesa, começando pelo TCC do Rafa. Acho que a gente começou bem. E aí, as outras intervenções foram nascendo, né? Então, o ataque da Belas Artes teve uma repercussão muito grande, né? E aí teve o MTV Debate, convidaram... é... o Lobão convidou a Choque Cultural, a Belas Artes, advogado, policial... E aí, não tinha a gente lá, né? A gente ficou vendo um debate sobre nós só pela mídia, e meio que querendo tirar onda com a Belas Artes, o dono na Galeria Choque Cultural lá, o Baixo Ribeiro, falou que a galeria dele era a única que representava a arte de rua e que eles não tinham nenhum tipo de preconceito com nenhum estilo de arte de rua, e que tal... Questionando a postura deles, né, de ter reprimido... de ter... do Rafa... da Belas Artes ter reprimido o Rafael, entendeu? Eles quiseram dizer que eles não, que eles apoiavam todo tipo de intervenção urbana e que eles eram representantes. Eles se intitularam como os representantes da arte de rua. Aí, dessa declaração, nasceu a intervenção na galeria dele, que o Rafael, que foi o mentor intelectual de todas as intervenções, ele chegou e falou: “pô, então, vamo fazer uma visita lá, né? Já que eles são representantes, acho que eles não vão se incomodar, né?”. E aí, quando teve a intervenção lá, eles deram queixa crime, fecharam a galeria, alegaram prejuízo, vandalismo, e tal, e, assim, a pixação é legal até que não seja no meu muro, né? E daí em diante, a imprensa já começou a meio que dar a Bienal pra nós, falar que só faltava a Bienal pra gente, e tal. E aí, pra terminar de culminar tudo isso, teve aquela história da “Bienal do vazio” aquele ano, né, que a Bienal ia deixar um andar vazio e o curador foi pra TV aberta falar que a Bienal daquele ano tava aberta a intervenções urbanas. O Rafael chegou e falou: “Djan, nos tamos convidados”. Ah, beleza, fizeram um convite convocando a galera pra fazer essa ocupação. Porque, na realidade, tudo isso que a gente fez na época foi uma demonstração de potência do pixo dentro do campo da arte, porque a gente já tinha pixado tudo, só o campo da arte que a gente não tinha invadido ainda. Então, é, foi a forma que a gente encontrou de dar um grito existencial dentro do circuito que simplesmente negligenciava a gente. Então, aí a gente, né, meio que aproveitamos essas lacunas que deixaram pra gente e a gente ocupou, né, esses 178 espaços desde o começo. Então, quando... Depois da ação da Bienal, teve a prisão, né, de uma das... Durante a ação, teve a prisão da Carol, que acabou simbolizando mais aquele fato, porque o Ministro da Cultura saiu na nossa defesa, né? Porque, poxa, ele viu que nossa ação foi legítima. Ele fez um texto defendendo a gente e pedindo a libertação da garota. Não só o texto, ele veio, arrumou um advogado, ajudou a tirar a menina da cadeia, e daí a gente começou a ter um diálogo com o Ministério da Cultura, e eles quiseram... Eles vieram até a gente saber o que que era aquelas intervenções, e a gente falou: “na real, a gente tá defendendo a pixação como parte da cultura brasileira, a gente quer que a pixação tenha esse reconhecimento de cultura brasileira, mas sem tirar nada da essência dela”, né? E essa mensagem foi entendida pelo circuito da arte, tanto que, dois anos depois, na outra Bienal, a gente tava lá, convidado, fazendo uma representação coletiva da pixação. AK: Mas antes disso, em 2009, você foi para Paris. DI: Então, antes disso, foi... Pra você ver, teve todas essas invasões, só que, antes disso, aquilo que o Rafael falou pra mim... Um ano antes, Rafael falou: “não, a gente vai ser reconhecido pela pixação, como pixador”, e eu não conseguia ver, né? E aí, depois de um ano, surge um convite, né? Acho que todo barulho que a gente fez na pixação foi ouvido, né? E a Cartier tava fazendo uma retrospectiva mundial da história da arte de rua e eles me convidaram pra ir lá representar a pixação. Bem na época, coincidiu, também, da gente tá produzindo o Pixo, o Pixo ter acompanhado essa história, né? Porque eu já tava produzindo o Pixo quando os ataques... quando a gente começou... antes de fazer as intervenções, isso. O filme já tava rolando, o Rafael já era personagem e tudo, e foi de última hora que a gente decidiu ir lá e filmar a Belas Artes, né? E aí, daí em diante, a gente passou a registrar tudo. E aí, veio esse convite pra Cartier, que foi meio que a confirmação, né, de que o pixo realmente tava sendo reconhecido como uma expressão artística marginal, né? O mais legal é que a gente conseguiu o reconhecimento pela transgressão, pela nossa marginalidade, né? A gente tava sendo reconhecido, tendo o mesmo reconhecimento que a gente tem de pixador pra pixador, né, não era um reconhecimento pra domesticar a gente, era admiração justamente pelo que a gente é de verdade, entendeu? AK: E eles, o pessoal da Fundação Cartier chegou a você a partir dos eventos de 2008? DI: Eu não sei exatamente se... Se... Fez muito barulho, né, isso é verdade. Mas eles tavam atrás de um pixador pra levar pra exposição. Só que todas as instituições de arte que eles comunicavam, principalmente a Choque Cultural, aconselhava a não levar pixador. Né, pra você ver, que eles continuavam tentando negligenciar a gente, né, os próprios brasileiros da arte tentavam... Tentaram, ainda. “Não, não leva esses caras”. Mas, a Cartier não se satisfez e eles descobriram que o João tava indo fazer uma viagem a trabalho lá, foram atrás do João pra saber se tinha possibilidade de trazer um pixador, né, e aí a gente tava produzindo o Pixo, e o João falou de mim, e aí eles já tinham um interesse também, eles meio que queriam... Chegaram no João pra chegar em mim, também, né? E aí, a gente teve essa oportunidade de fazer, né, essa representação estética e simbólica do pixo, né, num espaço consagrado da arte internacional. AK: Você já tinha saído do Brasil? 179 DI: Não, nunca tinha saído. Pra mim, foi uma coisa surreal, porque, eu lembro quando eu recebi o convite, eu fiquei até deprimido, porque eu tinha muitos processos criminais ainda em andamento, e eu não sabia se eu tinha condições legais pra sair, e eu realmente não tinha. E eu tive que correr atrás e ralar muito pra arquivar meus processos e conseguir ir a tempo, foi tudo em cima da hora, tipo, eu consegui resolver tudo aos 45 do segundo, cheguei na exposição meio que por último, sabe? Ninguém já acreditava que eu ia mais, mas eu tive essa oportunidade. Foi muito, muito legal, assim. AK: Lá você teve autorização, incentivo pra pixar lá dentro. Foi assim, você podia pixar como quisesse? DI: É, ali era um espaço... um espaço pra uma reflexão da rua, né? Então, todos os artistas que tavam ali eram artistas de rua, e a intenção era transformar aquilo ali numa rua, uma lembrança da rua, né? Então a gente fez uma representação estética do que a gente faz na rua. Foi... Assim que eu vejo minha intervenção lá, né? Porque não é nada além disso. Pixo mesmo, ele só acontece na rua, de forma ilegal. Ali dentro, era uma representação estética, até porque tinha tudo a ver com o tema da exposição, né? Então, tudo que a gente faz tem um sentido, né, não é só chegar ali e “ah, vamo fazer”, não. Tem que ter uma questão coerente, entendeu? Não é só chegar e participar, aceitar fazer qualquer coisa. Ali tinha sentido por quê? Era uma retrospectiva mundial da história da arte de rua, e eles tiveram a generosidade de não deixar a pixação de fora disso. Então, foi muito importante eu tá lá, não era contradição nenhuma, porque todo mundo que tava ali era artista de rua, né, e isso não interferiu em nada no nosso rolê, na rua, não mudou nada na rua pra gente, né? Nenhuma dessas participações em bienais mudou alguma coisa pra gente na rua. O que mudou foi a percepção dentro do campo da arte. AK: E aí, a partir dessa mudança de percepção pela arte, dentro da galeria você é artista ou você é pixador? Como você se identifica nesses espaços? DI: É... Não, eu acho que é... Não, o pixador ele é um artista, entendeu? Ele já é um artista. Tipo, o pixador, ele tem intenção artística, né? Tem todo um processo criativo, tem beleza, tem pixo feio, tem pixo bonito, se exige técnica e talento pra pixar, né? Ninguém frisa isso mais, é... Existe a intenção artística do pixador, entendeu? Tem um processo de você elaborar onde você vai fazer sua intervenção, né? Então, nós somos uns artistas de uma classe diferente, né? Nós somos artistas que trabalham com a transgressão, como, né, nossos princípios são outros. Subversão, transgressão, né? Então, é, essa que é a diferença. Mas, é que a gente não entendia também, antes. A gente não sabia. Acho que o Rafael foi o primeiro cara a entender que a gente realmente era artista, por isso que ele sacrificou o diploma dele. E era difícil, a gente só se via como vândalo, porque a gente tava tão, é, acostumado com esse estereótipo. E também, no pixo tem essa questão dessa inversão de valores, da gente transformar o que é negativo em positivo. Você chamar um pixador de vagabundo, de maloqueiro, pra gente é um elogio, entendeu? É um status. Então, essa inversão de valores sempre foi uma coisa comum no pixo. AK: Aí, você mencionado sobre 2010, a Bienal seguinte, né, que vocês foram convidados. O que esse convite representou pra vocês? 180 DI: Esse convite, na real, não foi nem pra nós, né? Foi pra pixação, porque a gente que organizou essa representação lá dentro, documental... Primeiro, primeira coisa: a gente se reuniu com os curadores, antes de tudo, pra pensar numa forma de como fazer isso sem ambas as partes estarem se submetendo. Então, a gente foi de, foi de comum acordo a gente optar por representar o pixo dentro da Bienal através só de representações documentais: vídeo, foto, e as assinaturas. Porque, dessa forma, a gente não tava negociando espaço, né, a gente só tava fazendo uma representação histórica do pixo como parte da cultura brasileira dentro da instância máxima da arte ali, dentro da grande vitrine da arte brasileira. Então, ali, realmente os curadores assumiram, entraram na linha de fogo e falaram “não, a pixação é arte, sim. Ela tá aqui porque ela é arte e é política também”. E tinha a questão também de ser uma Bienal de arte política, né? E a gente abraçou essa história. Tipo, porra, Bienal de arte política, tem tudo a ver, né, com a pixação, porque a pixação é um ato político, mesmo que o pixador não tenha um discurso político, né? É uma política urbana, a gente criou a nossa política e tem os nossos princípios, né? Então, tinha tudo a ver com Bienal, né, daquele ano, a gente tá ali. Mas mesmo assim, mesmo a gente estando convidado e tendo essa representação estética, eu continuei mantendo uma discussão acesa, que o pixador tem autonomia e que ninguém, mesmo a gente estando dentro de uma instituição, ninguém vai controlar a gente, né? Foi quando eu pixei a obra do Nuno Ramos. Além de ter, também, de ser uma discussão política, eu quis mostrar esse lado do pixador que jamais o pixador vai ser domesticado, entender? Mesmo estando ali inserido como artista oficial, né, eu tomei uma decisão polêmica que quase custou a minha vida, porque os seguranças agiram com uma truculência muito grande, foi um conflito bem pesado com eles, né, pancadaria mesmo, e eu apanhei muito, né, pensei até que eu ia morrer de tanto que eles me enforcaram. Aí, o chefe da segurança viu, perdeu o controle e meio que abriu uma porta lá nos fundos e me jogou pra fora. O pau quebrando lá dentro, né, que tinha os pixadores convidados, e o pessoal dos direitos dos animais, os ambientalistas, também tavam... Fecharam com a gente, né? Porque, assim, eu peguei a obra do Nuno Ramos de suporte pra uma discussão política, porque os curadores falaram que a Bienal era um palco pra discussão política, que aquilo ali tava aberto pra tudo. Então, eu me apeguei, como sempre, a gente sempre se apegou em algum tema, sabe, pra não falar que foi um ataque gratuito, né, tudo tinha um tema. Então, ah, aqui é um campo aberto pra discussão política? Beleza, me apropriei da obra do Nuno Ramos pra fazer uma analogia entre pixadores e urubus, os pixadores... É, os urubus tavam ali trancafiados, privados da sua liberdade, então, eu quis trazer a situação dos Piores de Belô, né, tipo, que tavam presos na mesma época, e era um contraste muito grande pra gente tá representando o pixo na instância máxima da arte, enquanto os amigos nossos, do estado vizinho, estavam sendo presos pela mesma coisa, entendeu? Então, era uma forma de eu tá fazendo, tá dando tanto uma demonstração de liberdade do pixador, e também tá trazendo à tona uma discussão política. AK: E aí, em 2012, dando sequência a essa trajetória, você e mais três pixadores, o Biscoito, o R.C. e o William, foram pra Berlim. Mais um convite para um evento artístico, pra dar um workshop de pixação, certo? Como vocês receberam esse convite? Como que funcionou dessa vez? DI: Olha, esse convite veio um ano antes da Bienal, em 2011, a gente foi procurado por um dos curadores, né? Uma artista polonesa chamada Joanna Warsza, ela veio pessoalmente no Brasil convidar a gente a tentar pensar numa forma de participar dessa Bienal. Então, a gente ficou cerca de um ano tentando pensar numa forma e propor uma forma, mas, no final das contas, eles acabaram impondo o workshop, e a gente se recusava, se recusava de todas as 181 formas de... Poxa, tentamos explicar, mas a tradução, a comunicação era difícil. A gente falava através de intermediários, eles lá, a gente aqui. Mas, também, as instituições de arte têm essa postura de querer impor. Eles foram inocentes, na realidade, eles impôs e pronto, e esperou a gente chegar lá pra resolver isso. Então, quando eu cheguei na Bienal, olha, a gente chegou lá pra não fazer nada, a gente foi lá pra falar que não ia ter workshop. E foi o que aconteceu. A gente foi lá, o que a gente fez lá não foi workshop. Porém, a curadora exigiu uma demonstração prática. Exigia, exigia, e eu alertei eles, eu falei: “gente, vocês têm noção do que que é uma ação prática de pixação?”. “Ah, não sei o quê”. Beleza. Então, como a gente tava lá, eu falei pra eles que a gente não ia dar workshop nenhum, que o pixo era uma manifestação urbana, que só acontecia na rua, no contexto da transgressão, que não era assim, não tinha como a gente dar uma demonstração prática sem envolver uma transgressão. E eles insistiram nessa história, então, quando a gente começou a pixar lá dentro, aí eles vieram querer restringir espaço. Aí eu falei não, aí a curadora veio apavorada pra mim falar “não, mas ali não pode”, eu falei “ah, mas agora tá tendo sua demonstração”, falei “é justamente isso”. Eu falei “ó, pixação é justamente isso que tá acontecendo aí”. Os meninos pixando e eles apavorados “ah, não”, que tinha uns tapumes, é, direcionados à intervenção, cobrindo as paredes internas da igreja. Só que não tinha espaço nesse tapume, e a gente não atropela, entendeu? Se não tiver conflito, não tem porque a gente atropelar uma intervenção, né? Então, tinha vários desenhos, lá, pinturas, a gente “pô, aqui não tem espaço pra pixar”. A mente do pixador sempre tá em busca de espaço livre, e foi quando os meninos começaram a pixar encima dos tapumes que teve toda essa confusão, né? O curador, querendo medir força com a gente, me jogou um balde de água suja, né, o Arthur, que é o curador, polonês, também, e falou que tava me pixando. Falei “ah, legal, cê tá me pixando? Só que a gente não pixa pessoa, a gente pixa parede. Isso que você fez foi uma agressão física. Então, beleza”. Mas, eu não entrei nessa de agressão, eu falei “beleza, já que cê me pixou, eu vou te pixar também”. Foi a hora que eu peguei a garrafa de tinta e pintei ele, ele pegou uma garrafa de tinta, me pixou também, e aí, a gente começou a pixar tudo, e eles não tiveram o que fazer, chamaram a polícia. E agente só parou depois que a gente tinha terminado e a polícia tinha chegado, né? A polícia ia levar a gente preso, aí os convidados ficaram constrangidos com a situação e acabaram por liberar, tipo assim, ajudaram a liberar a gente. Eles ficaram com vergonha, na realidade, de levar, deixar eles... Porque pensa só: eles convidam a gente pra sair daqui, do Brasil, pessoas simples, de origem humilde, entendeu? Eles não arcaram com as passagens, né? Foi o MinC que pagou, tipo... Na real, a Bienal convidou a gente, depois quase desconvidou, por causa de dinheiro. Só que esse convite já tinha gerado toda uma programação na Alemanha, então a Bienal virou só uma coisa complementar da nossa passagem lá, a gente tinha palestras, tinha exposições pra fazer lá, então, não tinha mais volta. E isso nos deu autonomia também, né? A única coisa que eles pagaram pra gente foi a hospedagem, que a gente ficou hospedado no instituto deles, que era o mínimo, porque nem nosso cachê coletivo eles pagaram, entendeu? Eles não deram ajuda de custo nenhuma, eles não ajudaram em nada. Porra, a gente foi lá com as nossas pernas, discutir com eles pessoalmente, e deu no que deu, deu nessa confusão. Depois, eles processaram a gente, né? Eles entraram com uma ação, aí o Ministério... Contra o MinC. A gente criou um debate diplomático, tá ligado? Um embate diplomático. E a gente se defendeu falando que eles exigiram essa ação prática, a gente anexou todas as nossas conversas, traduzimos, tá aqui a prova: eles exigem uma demonstração prática. Nosso advogado pegou a causa e falou “ó, a partir do momento que você pede pra que se tenha uma demonstração prática de uma ação que tá incluída a transgressão, né, você tá pedindo pra que isso aconteça”. Então, a gente ganhou, né, a gente ia ter que devolver o dinheiro pro MinC, ia ter que pagar o restauro da 182 igreja, é o que eles queriam. Mas a gente conseguiu reverter essa situação. Isso ia gerar quase setenta mil de prejuízo pra nós, a gente tava ferrado, e a gente nunca mais ia poder participar de nada no MinC. AK: Depois desse evento de 2012, teve mais algum outro convite, alguma outra participação em evento de arte? DI: Olha, ficou meio difícil pra gente, né, trabalhar nesse circuito, né? Eu, agora, to desenvolvendo um trabalho autoral meu, que é uma representação... Uma representação do pixador no mercado da arte, né? Eu to desenvolvendo algumas pinturas, alguns trabalhos, porque, também, há esse interesse, né, desse circuito, e eu também, como pixador, como um defensor do pixador artista, eu to seguindo em frente com isso, como eu tenho potencial pra isso... Rafael já tinha dado essa indicação, né, ele já tinha desenvolvido alguns trabalhos só com a estética do pixo muito incríveis, assim, que me inspirou a tá fazendo o que eu to fazendo agora, e eu to começando essa entrada no mercado da arte, né, com um trabalho que não é meu pixo, entendeu? É uma representação estética do pixo, é uma reflexão estética do pixo, né? É uma lembrança do pixo. Eu uso as técnicas que eu aprendi da pixação, a minha influência, misturada com... Também o desenho, também, com minhas técnicas de ilustração, pra tá criando esse trabalho. Mas, é, no circuito da arte não teve mais convite nenhuma, assim, pra eventos institucionais, como bienais, né, por enquanto, não teve nada. Mas, sempre tem alguma coisa rolando, né? A gente tá forte no meio acadêmico. Depois disso, o MinC financiou um seminário só sobre pixação, onde eu fui curador, eu e mais um sociólogo, que é pesquisador, e mostrou que a gente ainda tem uma abertura. Na realidade, a gente tá criando a nossa própria rede, né? Porque, o que que a gente fez? A gente deu uma demonstração de potência pro circuito da arte inteiro, mundial, né? E a gente desmascarou muitas instituições. E a gente meio que invadiu o monopólio da arte, né? Então, eles tentam criar uma resistência agora, mas a gente sabe que todo império cai, né? E a gente vai continuando aí, nós tamo seguindo em frente. A gente sabe do nosso potencial como artista, né? E assim, além disso não, pra nós na rua não mudou nada. AK: Você tinha falado que na rua não mudou, mas mudou essa relação com a arte. Você acha que a partir desses eventos, desses convites todos que vocês receberam, vocês passaram a ser mais ouvidos, mais respeitados, aumentou a visibilidade, como foi? DI: Sim, mudou muito, é, a visibilidade pública, é... Eu digo assim, antigamente, você tinha uma enquete sobre pixação ou alguma matéria, aí 90% era crítica e 10% defendendo. Hoje em dia, a gente conseguiu chegar nuns 30%, entendeu? Já mudou isso, sabe? Hoje em dia tem pessoas que estão abertas a discutir a pixação, a defender a pixação como uma forma de expressão artística. Antigamente, ninguém via nem essa possibilidade, era vandalismo e ponto, né, o que mudou foi isso. Então a mídia começou a ter mais abertura, começou a se abrir mais, não fazem só aquelas matérias tendenciosas, como denúncias, tipo de tráfico e tal. Começaram a ter matérias em programas onde a gente teve espaço pra argumentar e pra mostrar esses contrapontos. O fato, também, da gente chegar nesses eventos já mudou muito, porque quando alguém vem me questionar “ah, o pixo é arte?”. Tá bom, pergunta lá pro curador, lá, da Bienal, que é um cara que é leigo, né, de arte, né? Pergunta pra ele, então! Porque não sou só eu que to afirmando, né, todo o circuito. Por mais que o circuito negligencie a gente, eles fizeram a parte deles, eles deram abertura. A gente mostrou que é difícil trabalhar com a gente, né? A gente manteve a nossa postura também, a gente tem um 183 respeito por isso. A gente só não é viável mercadologicamente pra eles, né? Pode ser que venha a ser, futuramente, não sei. Mas eu acho que é... Eu me sinto assim, mesmo se não der certo, sabe? Se a gente não... Eu to trabalhando só com arte e cinema, hoje em dia. Mas, se não der certo, pelo menos eu sei que eu fiz minha parte, sabe? Minha preocupação maior é com a galera da rua, tipo, todas essas ações eu tive o apoio deles, sabe? Isso que não tem preço pra mim, os caras chegar “pô, Djan, demais o que cê fez lá, lá em Berlim, quase foi preso”, “putz, o que cê fez na Bienal aqui”, entendeu? Acho que o nosso compromisso com o movimento a gente manteve, né, a gente conseguiu dialogar, né, com a imprensa, com as instituições de arte, com o meio acadêmico, mantendo a nossa essência, né? AK: Você acha que esse contato com o meio acadêmico, com o campo da arte, com a mídia, pode vir a transformar a situação da pixação na rua, de alguma forma? DI: No espaço público, eu acho muito difícil, né, alterar. Porque por mais que se tenha uma aceitação da ideia que o pixo é uma manifestação artística no campo da arte, pra população isso é muito difícil de ser atingido, entendeu? Pra população aceitar, ter mais aceitação com o pixo. Porque sempre vai vim o apego com o seu bem, né? Seu bem material. Até eu mesmo, não vou negar. Alguém pixar alguma coisa minha, sei lá, minha casa, de início eu não vou gostar mesmo, é um choque, né? Então, esse conflito vai sempre existir, ninguém vai ser obrigado a aceitar, a gostar do pixo. Eu acho que o máximo que nós vamos conseguir é o que a gente conseguiu agora, é essa abertura em outros campos. Eu acho que na rua vai ser muito difícil mudar alguma coisa efetivamente, e também não é a nossa busca. Porque pra nós, negociar espaço na rua é abrir mão de liberdade, entendeu? E o pixo existe, justamente... Ele nasceu justamente dessa liberdade, né? Ele existe porque ele é livre, porque tem essa questão de não ter regras, entendeu? Tipo, sempre vai vim um pixador que vai quebrar regras, né? Isso tá na essência do pixo. AK: Pra você, a pixação é resistência? DI: Sim. AK: Ela resiste a quê? DI: Ela resiste ao preconceito, ela resiste a essa privatização do espaço público, que tá cada vez maior, né? Você vê que é um movimento que ele é considerado crime, ele é reprimido, ele é odiado. A gente apanha, a gente responde processo criminal, mas a gente tá sempre ali, né, você vê o Goma, ficou quatro meses preso, né? Então, esse já é um sinal de resistência: continua pixando, não vai deixar de ser pixador pro resto da vida, né? Então, eu acho que o pixo é essa resistência, sim, é um grito existencial num espaço onde ele não é aceito. Então, o fato de ele não ser aceito e dele continuar existindo torna ele uma resistência. AK: Bom Djan, eu acho que é isso. Muito obrigada pela conversa. 184