ABDPRO #163 - GARANTISMO É TEXTUALISMO?

10/02/2021

Coluna ABDPRO

A Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior,

O Barão da Parahyba 

No desempenho da atividade jurisdicional, o juiz produz pronunciamentos. Eles consistem «em sentenças, decisões interlocutórias e despachos» [CPC, art. 203]. Mas no verbo produzir se encerram agires diferentes. Há vários modos de produção. É preciso saber, pois, se nesses pronunciamentos há um único modo de produção, ou se há um modo específico de produção para cada pronunciamento. Produção pode significar, v. g.: a) criação [= embora não parta de qualquer matéria, o produto não entra na mesma categoria do produtor - ex.: criação dos anjos, do mundo e dos homens por Deus]; b) geração [= sem se partir de qualquer matéria, produtor e produto se tornam da mesma categoria - ex.: geração do homem pelo homem, das aves pelas aves, das plantas pela plantas]; c) renovação [= matéria e produto são da mesma categoria e são a mesma coisa, embora no produto se recuperem qualidades que a matéria perdeu - ex.: rejuvenescimento facial, retífica de motor]; d) beneficiamento [= matéria e produto são da mesma categoria e são a mesma coisa, embora o produto tenha novas qualidades - ex.: ganho de massa muscular, melhoramento genético]; e) interpretação [= matéria e produto são da mesma categoria, mas não são a mesma coisa - ex.: representação teatral, execução musical]; f) transformação [= matéria e produto não são da mesma categoria - ex.: fotossíntese, termólise, eletrólise]; g) montagem isocategorial [= as matérias reunidas e o produto são da mesma categoria - ex.: fotomontagem, montagem de quebra-cabeça]; h) montagem heterocategorial [= as matérias reunidas e o produto não são da mesma categoria - ex.: montagem de automóvel, instalação de antena externa] (obs.: por oposição se chegam aos respectivos modos de desprodução - ex.: recolhimento, eliminação, envelhecimento, danificação, desinterpretação, reversão, desmontagem). Existem, assim, v. g.: a) um modo criativo de produção; b) um modo gerativo de produção; c) um modo renovativo de produção; d) um modo beneficiativo de produção; e) um modo interpretativo de produção; f) um modo transformativo de produção; g) um modo montativo de produção. Percebe-se que esses modos produtivos se dividem em 1) isocategoriais [= não há mudança de categoria - ex.: geração, renovação, beneficiamento, interpretação, montagem isocategorial] e 2) heterocategoriais [= há mudança de categoria - ex.: criação, transformação, montagem heterocategorial]. Percebe-se igualmente que os modos produtivos dependentes de matéria se dividem em 1) iso-objetivos [= matéria e objeto são a mesma coisa - ex.: renovação, beneficiamento] e 2) hetero-objetivos [= matéria e objeto não são a mesma coisa - ex.: interpretação, transformação, montagem]. Percebe-se, por fim, que esses modos produtivos se podem combinar. Na construção de um edifício, por exemplo, é possível que estejam mutuamente implicadas criações [ex.: elaboração do projeto arquitetônico] + renovações[ex.: regeneração do pavimento] + beneficiamentos [ex.: reciclagem dos resíduos da construção civil para reutilização] + interpretações [ex.: interpretação e execução do projeto arquitetônico] + transformações [ex.: preparação do concreto] + montagens [ex.: confecção de armações em ferro].

Vê-se facilmente, assim, que a atividade jurisdicional consubstancia um modo de produção isocategorial hetero-objetivo. O ofício do juiz se assemelha aos ofícios do ator e do instrumentista. Porque, em essência, a rotina ocupacional de todos eles é interpretar. O ator, o instrumentista e o juiz interpretam textos. O ator interpreta uma peça teatral para a representação de um personagem. O instrumentista interpreta uma partitura para a execução de uma música. O juiz interpreta um diploma normativo para a aplicação a um caso (obs.: o juiz interpreta-aplica decisoriamente para um caso real; o doutrinador interpreta-aplica cientificamente para um caso hipotético). Nota-se simpliciter et de plano que a obra-interpretada [peça teatral, partitura, diploma normativo] e a obra-de-interpretação [representação do personagem, execução da música, aplicação decisória ao caso] não são a mesma coisa. Da mesma forma, não são a mesma coisa: as representações do mesmo personagem pelos atores A e B; as execuções da mesma música pelos instrumentistas C e D; as aplicações decisórias ao mesmo caso pelos juízes X e Y. Ainda que a obra-interpretada seja a mesma, os intérpretes e, consequentemente, os esforços interpretativos são distintos; logo, distintas entre si são as obras-de-interpretação, cada qual com a sua dignidade. E é essa dignidade que permite comparem-se os intérpretes entre si, preferindo-se um a outro. A e B se podem diferenciar competencialmente, v. g., pela projeção vocal, pela presença cênica e pela apropriação do texto dramático; C e D, pela autodisciplina, pela afinação e pela coordenação técnica; X e Y, pela cultura jurídica, pela autocontenção e pela rapidez laboral. Ademais, a própria obra-interpretada pode franquear ao intérprete determinadas «margens de liberdade» e, consequentemente, obras-de-interpretação diferentes entre si. Todavia, se o ator imprimir adições, alterações ou supressões às falas de uma peça teatral de Shakespeare, já não estará mais interpretando Shakespeare, senão criando uma outra peça. Se o pianista imprimir adições, alterações ou supressões às notas de uma partitura de Bach, já não estará mais interpretando Bach, senão criando uma outra partitura. Se o juiz imprimir adições, alterações ou supressões às palavras de um dispositivo do Código Civil, já não estará mais interpretando o Código Civil, senão criando um outro dispositivo. É importante sublinhar que na interpretação não há propriamente atividade criativa. O ator, o instrumentista e o juiz [= produtores] não «criam», respectivamente, a representação, a execução e a aplicação decisória [= produtos]. Na verdade, produzem-nas, fazem-nas, realizam-nas, constituem-nas de modo interpretativo, não criativo. Não as produzem «do nada», mas desde uma base textual [= matéria]. Quem toma a criação pela produção, toma a espécie pelo gênero, baralhando os conceitos. No fundo, quer-se subverter os papéis, livrando o ator das amarras da peça que ele deve interpretar-representar, o instrumentista das amarras da partitura que ele deve interpretar-executar, o juiz das amarras do dispositivo que ele deve interpretar-aplicar decisoriamente. Ou seja, quer-se transformar o ator em autor, o instrumentista em compositor, o juiz em legislador. Quer-se, enfim, instituir o ativismo do ator, o ativismo do instrumentista, o ativismo do juiz.

Nesse contexto, atenção especial merecem 1) a interpretação extensiva e 2) a analogia. Em (1), o juiz estende a hipótese de incidência [preceito primário], ou a consequência jurídica [preceito secundário], a situações ignoradas pela norma, conquanto semelhantes às situações literalmente contempladas [A → B; J: A’ → B ou A → B’]. Em (2), o juiz cria uma norma até então inexistente, com hipótese de incidência [preceito primário] e consequência jurídica [preceito secundário] assemelhadas às partes constituintes de uma norma preexistente [A → B; J: A’ → B’]. Em (1), o juiz cria elementos para uma norma, porém não uma norma nova. Em (2), o juiz cria todos os elementos de uma norma e, portanto, uma norma nova. Tanto num caso quanto noutro, há produtividade judicial mediante o desempenho de um juízo de similitude ou semelhança [= elemento criativo] a partir de uma base textual preestabelecida [= elemento interpretativo]. Como se vê, não se trata de uma pura criatividade judicial, visto que o juiz não parte do nada, mas de uma base textual. Tampouco se trata de uma pura interpretatividade judicial, uma vez que o juiz extrapola os determinantes semântico-pragmáticos da base mencionada. Na realidade, trata-se de produções judiciais que orbitam a zona intercalar entre a interpretação e a criação. Na interpretação extensiva ou ampliativa, prepondera o elemento interpretativo [= «interpretação-criação»]; na analogia, predomina o elemento criativo [= «criação-interpretação»]. Na interpretação extensiva ou ampliativa, o juiz é mais juiz que legislador; na analogia, o juiz é mais legislador que juiz. Em ambos os casos, há um flagrante desalinhamento entre a matéria e o produto; contudo, não se verifica uma completa ruptura. De toda forma, o juiz pode realizar a interpretação extensiva ou a analogia somente mediante uma justificação normativa. Porque, sem fundamento em norma de direito, o trânsito do juiz entre a interpretação e a criação configura ativismo judicial. Afinal de contas, grosso modo: a) legislação ou subpoder legislativo é a criação do direito; b) jurisdição ou subpoder jurisdicional é a interpretação-aplicação imparcial do direito; c) administração ou subpoder administrativo é a interpretação-aplicação parcial do direito. Por conseguinte, quando a autoridade judiciária cria, ela usurpa subpoder legislativo. Logo, diante da separação dos Poderes, é de se esperar que a justificação da analogia (cuja criatividade é majus) exija um ônus argumentativo mais pesado que a justificação da interpretação extensiva (cuja criatividade é minus). De ordinário, na tradição jurídica ocidental, o emprego da analogia se circunscreve ao preenchimento de lacunas. No Brasil, isso está previsto expressamente no artigo 4º do Decreto-lei 4.657/1942, a chamada «Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro» (embora essa previsão - porque implica exceção à separação dos Poderes - devesse constar expressamente da Constituição). No entanto, ainda que haja lacuna, muitas vezes no sistema de direito positivo se entreveem dogmaticamente proibições implícitas à analogia, como é o caso da analogia in malam partem nos direito penal e tributário; por exclusão lógica, nesses específicos ramos se admite a analogia in bonam partem. Em contrapartida, o leque de possibilidades para a interpretação extensiva é geralmente muito mais amplo, haja vista ser menos afrontosa à separação dos Poderes.

Para o modelo garantístico que tenho defendido: i) os dispositivos constitucionais sobre os poderes do Estado devem ser interpretados estritamente; ii) em contraposição, os dispositivos constitucionais sobre os contrapoderes do cidadão (as chamadas garantias) devem ser interpretados extensivamente. A razão é simples. Na tradição constitucional brasileira, os dispositivos sobre poderes do Estado sempre antecederam os dispositivos sobre garantias do cidadão. O habitat natural das garantias sempre foram os últimos artigos dos diplomas constitucionais (Constituição de 1824, art. 179; Constituição de 1891, art. 72; Constituição de 1934, art. 113; Constituição de 1937, art. 122; Constituição de 1946, art. 141; Constituição de 1967, art. 153; «Constituição de 1969» (Constituição de 1967, com a EC 1/1969), art. 153). Esse traço topológico-textual tinha fundamental significação jurídico-hermenêutica. Sob o ponto de vista locativo-redacional, o Estado precedia o cidadão; o poder, a garantia; a autoridade, a liberdade. Sob o ponto de vista hierárquico-axiológico, o Estado [servido] precedia ao cidadão [servente]; o poder, à garantia; a autoridade, à liberdade. Noutras palavras: a liberdade nada mais era que um furo no manto autoritário, um «vácuo funcional», um «vazio de circunscrição», um espaço inocupado pelo Estado. Onde terminava a autoridade, só ali começava a liberdade. O edifício político-institucional do País se fundava a partir do primado do Estado e, portanto, a partir da primazia da autoridade sobre a liberdade. O Estado era a «porta de entrada» da ordem constitucional, não o cidadão. As constituições anteriores se davam a conhecer pela moldura inaugural do poder, não da cidadania e das garantias contrapotestativas que a municiam. Nesse sentido, a CF/1988 foi uma viravolta copernicana. Nela, as garantias passaram ineditamente a ostentar topografia frontispicial (art. 5º), tal como se constata hoje, v. g., nas constituições de Argentina (Primeira Parte), Chile (Capítulo III), Uruguai (Seção II), Colômbia (Título II), Peru (Título I), Paraguai (Parte I), México (Título I, Capítulo I), Costa Rica (Título IV, Capítulo Único), Panamá (Título III), Espanha (Título I), Portugal (Parte I), Itália (Parte I), Grécia (Parte II), Alemanha (Capítulo I), Suíça (Título II), Países Baixos (Capítulo 1) e Japão (Capítulo III). Enfim, as garantias receberam um upgrade de dignidade topológica. Passaram a integrar o groundfloor da predialidade político-institucional brasileira. Tornaram-se o piso de acesso à ordem constitucional do País. Com isso, o cidadão [servido] passou a vir antes do Estado [servente], a garantia antes do poder, a liberdade antes da autoridade. A lógica se inverteu, pois: a autoridade só começa onde termina a liberdade. Os espaços são antes ocupados pela cidadania; ao poder é dado apenas preencher ulteriormente os «terréus regulatórios», as «sobras regionais», os «restos baldios», os vazios inaproveitados pela autonomia individual. Não sem motivo se chamou a CF/1988 de Constituição Cidadã. A expressão não é mero slogan nem bordão: o adjetivo assume ali conotação técnico-constitucional, não retórico-propagandista. Na CF/1988, o edifício político-institucional do País se funda a partir do primado da cidadania e, portanto, a partir da primazia da liberdade sobre a autoridade (sobre o tema, v. nosso Liberdade e autoridade no direito processual... <https://cutt.ly/Ch4MugL>).

Da primazia constitucional da liberdade sobre a autoridade se podem extrair diversas «diretrizes interpretativas». Por exemplo: 1) o titular de poder não pode interferir nas garantias que o limitam e o controlam [intangibilidade da garantia]; 2) texto sobre garantia deve ser interpretado para fortalecer a garantia, não o poder correlato [maximização da garantia]; 3) texto sobre garantia do cidadão se deve interpretar extensivamente; por correlação, texto sobre poder do Estado se deve interpretar estritamente [expansão das garantias] (para um aprofundamento do tema, v. nosso Notas para uma garantística. <https://cutt.ly/Yh44pzd>). A obrigação de interpretação extensiva in bonam civem dos dispositivos constitucionais sobre garantias equivale, logicamente, à proibição de interpretação extensiva in malam civem dos dispositivos constitucionais sobre poderes. Isso implica a inadequação da «teoria dos poderes implícitos» [inherent powers ou implied powers], que se justifica, quando muito, nas constituições sintéticas (como a Constituição Americana de 1787), não nas analíticas (como a Constituição Brasileira de 1988). Isso implica, outrossim, a adequação de uma teoria das garantias implícitas ou subentendidas, que no ambiente autoritário brasileiro jamais foi desenvolvida. Embora o caput do artigo 5º da CF/1988 confira literalmente a titularidade das garantias «aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País», outros sujeitos podem ser vítimas do arbítrio estatal. Daí por que uma interpretação ampliativa [= «interpretação-criação»] permite que algumas garantias sejam estendidas, em função das particularidades do sujeito protegido: i) a estrangeiros não residentes no País; ii) a pessoas jurídicas de direito privado; iii) a pessoas jurídicas de direito público, que podem ser especificamente vítimas do arbítrio do Estado-juiz, necessitando assim das garantias contrajurisdicionais (processo, advocacia, contraditório, ampla defesa, imparcialidade judicial, publicidade, reclamação ao CNJ, reclamação às ouvidorias de justiça etc.). Além do mais, uma interpretação ampliativa [= «interpretação-criação»] permite que o âmbito de proteção das garantias constitucionais seja materialmente estendido, entrevendo-se, v. g.: a) uma dimensão extrajudiciária do juiz natural (o que importa a garantia implícita do promotor natural); b) uma dimensão extrajurisdicional da motivação das decisões (o que importa a garantia implícita da motivação das decisões administrativas); c) uma dimensão extrajurisdicional do duplo grau de jurisdição (o que importa a garantia implícita do duplo grau de «jurisdição» administrativa); d) uma dimensão extrapenal da presunção de inocência (o que importa a garantia implícita da presunção de inocência civil); e) uma dimensão extraprocedimental do devido processo legal (o que importa a garantia implícita do devido processo legal substancial); f) uma dimensão extrajurisdicional da advocacia (o que importa a garantia implícita da advocacia nos processos administrativos). Aliás, não fosse a previsão expressa do mandado de segurança, seria possível entrever uma dimensão extralibertária do habeas corpus, tal como entrevisto por RUI BARBOSA sob a égide da Constituição Republicana de 1891.

Daí a impropriedade da crítica que me fez RAVI PEIXOTO. Segundo o processualista pernambucano, «a Constituição é expressa em limitar a presunção de inocência ao direito penal, não havendo fundamentos para que haja essa expansão para todas as demais áreas do direito. Mais do que isso, tal interpretação entra em contradição com o modelo processual do próprio autor do texto, que segue o garantismo processual, tão combativo do ativismo judicial e que, ao mesmo tempo propõe uma interpretação que simplesmente ignora o texto constitucional, gerando uma interpretação completamente ativista» (Standards probatórios no direito processual brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 254). A crítica não é nova. Ela já me fora feita por MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA nos seguintes termos: «O próprio garantismo processual pressupõe acatamento irrestrito da Constituição da República, i. e., de seu texto. Vamos ao texto: ‘ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (inciso LVII do art. 5.º). Não há espaço para se cogitar, no texto, de ‘presunção de inocência civil’. O dispositivo garante a presunção de inocência no âmbito penal. Nada mais, nada menos» (Um debate com os adeptos do garantismo processual. <https://cutt.ly/Yh5RP4y>). Ora, nada impede que se discorde de uma interpretação ampliativa das garantias de liberdade em geral e da garantia da presunção de inocência em particular. A propósito, RAVI PEIXOTO tem motivação pessoal para isso, pois uma de suas teorias mais caras - a dinamização do ônus da prova - é inconstitucional à luz da presunção de inocência civil (sobre essa específica inconstitucionalidade, v. nosso Presunção de inocência civil: algumas reflexões no contexto brasileiro. RBDPro 100, p. 129-144). Mas não é correto dizer que a doutrina da presunção de inocência civil vai de encontro à própria garantística que defendo (aqui, prefiro garantística a «garantismo»; para uma diferenciação, v. nosso Garantismo ou Garantística?. <https://cutt.ly/Njq3ips>). Quem afirma isso não teve o cuidado de se inteirar do meu pensamento, não obstante tenha se sentido à vontade para combatê-lo. Como se viu ao longo deste artigo, a garantística que tenho desenvolvido não se reduz a um textualismo puro e simples. Não é exegetismo à outrance. Não tem invariável apego ao sentido literal das palavras do texto constitucional escrito. Entende que a Constituição deve ser lida não apenas a partir dos seus determinantes semântico-pragmáticos. Admite que ela se possa ler também de acordo com eventuais intenções do constituinte não incorporadas ao texto. Em verdade, essa garantística prescreve - como já dito - uma interpretação mais ampla ou extensiva para dispositivos constitucionais sobre garantias do cidadão, e uma interpretação mais estrita ou declarativa para dispositivos constitucionais sobre poderes do Estado. Por esse ângulo, a garantística que defendo se aproxima – se tanto –  de um «semitextualismo». No máximo, ela tangencia um textualismo «moderado», «mitigado», «enfraquecido». A garantística processual encerra naturalmente desacordos entre os seus adeptos. Além disso, é uma dogmática constitucional do proceder, não do julgar. Logo, não dispõe de uma teoria endógena da interpretação. Assim, entre os garantistas pode haver textualistas, quase-textualistas, semi-textualistas e não-textualistas, desde que todos defendam unissonamente o processo como garantia. Portanto, é um despautério afirmar que eu «entro em contradição com o garantismo».

A garantística em geral e a garantística processual em particular constituem um modelo dogmático em construção e, paralelamente, um paradigma teórico em ascensão. No Brasil, trata-se de uma proposta que, conquanto in statu nascendi, tem crescido desde a fundação da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) em 2016, em cujo âmbito institucional a garantística é bastante cultuada. De todo modo, os garantistas brasileiros entenderam por bem revisar os conceitos e a base metodológica do garantismo processual praticado nos países da América Espanhola, especialmente no âmbito do Instituto Pan-Americano de Direito Processual (IPDP). Nesse sentido, já é possível falar-se em uma Doutrina Brasileira do Garantismo Processual (cf., p. ex., RAATZ, Igor. A resistência instrumentalista e a doutrina brasileira do garantismo processual... <https://cutt.ly/tjpntLF>). Com alguma razão, processualistas de escol como ANTONIO DO PASSO CABRAL têm se referido a essa doutrina como um «Neogarantismo». Portanto, se o garantismo hispano-americano já é novo, a garantística brasileira é novíssima. Daí por que ela necessita com premência de críticas adversárias. Elas são muito bem-vindas, tendo em vista que são imprescindíveis para o fortalecimento epistemológico da garantística. Afinal, a submissão constante da garantística a testes de refutabilidade tende a lhe adensar o grau de cientificidade. Entretanto, para ser criticada, ela precisa ser estudada e compreendida (o que infelizmente ainda não tem sido feito). A consolidação garantística obedece a um duplo movimento: a destruição dos postulados instrumentalistas e, correlativamente, a construção dos seus próprios postulados, retirando-se a camada impertinente de sedimentos que tem impedido de se ver o processo como objeto de um «direito fundamental de defesa» [CF/1988, art. 5º, LIV], que se liga ao valor liberdade e que, em consequência, protege o cidadão do Estado. Decididamente, o processo não é instrumento, ferramenta, utensílio ou método a serviço do poder estatal. Isso faz de todo garantista um experto no pensamento instrumentalista (o que é relativamente fácil, pois se trata do paradigma dominante, sob cuja batuta todos nós nos formamos). O garantista há de ser um profundo conhecedor do instrumentalismo processual por dever de ofício. Enfim, o prelúdio de um garantista é a crítica à visão judiciocêntrica do fenômeno processual. Em contraposição, um instrumentalista quase nunca é um experto no pensamento garantista. Os garantistas sabem bem como os instrumentalistas pensam, porém os instrumentalistas poucas vezes sabem como pensam os garantistas. Pudera: não raro, os adeptos de uma teoria majoritária se deixam contaminar por soberba e conseguinte desinformação, mostrando-se indiferentes com teorias minoritárias. Aliás, isso se passa em todo e qualquer ramo do conhecimento científico. Na ciência processual não é diferente (posto que nela isso se dê com «requintes de crueldade»). Em boa parte, isso explica por que a garantística processual não tem quase sofrido críticas no Brasil. Quando as sofre, em geral são críticas de orelhada, de ouvir dizer, de improviso. Quase sempre se baseiam em «espantalhos teóricos», que tentam desqualificar os garantistas como «inimigos fáceis de derrotar». Enquanto isso, a garantística só faz crescer e crescer...

 

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