Edição de 2019 em Viseu do Passeio da Memória, uma iniciativa nacional em Portugal em função da temática das pessoas com Alzheimer (Foto Divulgação)

UMA VISÃO EUROPEIA SOBRE O IMPACTO DA PANDEMIA NA POPULAÇÃO IDOSA

A população com mais de 60 anos é aquela que mais tem sentido os impactos da pandemia de Covid-19, estando nessa faixa etária o maior número de óbitos, sobretudo nas pessoas com comorbidades como cardiopatia e diabetes. Neste cenário, a pandemia “tornou também visível uma realidade que tem sido escamoteada, negligenciada, subvalorizada”, que é a forma como a sociedade contemporânea “trata os nossos cidadãos mais velhos”.

      A opinião é de Jose Carreira, um dos principais especialistas de Portugal sobre a população idosa. Atual presidente das Obras Sociais de Viseu, ele foi presidente da Alzheimer Portugal e fundou o Centro de Apoio Alzheimer Viseu. Carreira é mestre em Intervenção a Pessoas com Enfermidade de Alzheimer e Mestre em Trabalho Social, Especializado em Gestão das Organizações Sociais. Também é fundador e diretor da Revista Digital Envelhecer.

      Nesta entrevista exclusiva ao Portal Longevinews, Jose Carreira comenta os impactos da pandemia sobre a população idosa na Europa e avalia sobretudo as perspectivas nos próximos anos para as pessoas com Alzheimer, um desafio crescente em termos de saúde pública em todo mundo.

José Carreira apresenta uma Utopia pós-pandemia: a construção de uma Cidadania Social, ancorada numa Economia do Cuidado (Foto Divulgação)

O que a pandemia está mostrando com relação à população idosa no mundo, e sobretudo no caso europeu?

A pandemia que assola o mundo tornou também visível uma realidade que tem sido escamoteada, negligenciada, subvalorizada. Refiro-me a uma das fragilidades da sociedade, a forma como tratamos os nossos cidadãos mais velhos. 

Sabemos que a letalidade por Covid-19 aumenta com a idade, e de forma muito evidente quando as pessoas padecem de comorbilidade. Devemos considerar a situação específica das pessoas idosas pobres que congregam fatores que aumentam a sua vulnerabilidade, das quais destaco a sua pior situação de saúde e a debilidade da rede familiar de apoio.    

A “seniorização” da sociedade, o envelhecimento da população continua a ser símbolo de um problema que se manifesta no idadismo.

Segundo a London School of Economics, foram nos lares 42% a 57% das mortes na Bélgica, no Canadá, na França, na República da Irlanda e na Noruega. No Reino Unido, 20%. Na Alemanha, um terço. Em Espanha é pior: 69%. No nosso país, de acordo com as estatísticas, os idosos são mais de 40% do total de mortes por covid-19 e quatro em dez viviam em lares.

O Diretor Regional para a Europa, da Organização Mundial de Saúde (OMS), Hans Kluge, em conferência de imprensa referiu-se a este cenário dantesco como uma “tragédia humana inimaginável”.

A “seniorização” da sociedade, o envelhecimento da população continua a ser símbolo de um problema que se manifesta no idadismo. A discriminação e o preconceito em relação às pessoas mais velhas, em função de um único critério, a sua idade cronológica, não têm merecido a justa e necessária atenção da comunidade. Os exemplos de idadismo multiplicam-se em Portugal e no mundo: a Presidente da Comissão Europeia, Ursula Van der Leyen, avançou a ideia de que as pessoas mais velhas poderão ter de ficar em confinamento até ao final do ano; O Vice-Governador do Texas, que se opôs às medidas de isolamento, verbalizou: “os velhos norte-americanos estão dispostos a morrer para salvar a economia do país”; Ramalho Eanes, antigo Presidente da República preconizou:“Nós, os velhos, vamos ser os primeiros a dar o exemplo. Não saímos de casa, recorremos sistematicamente aos cuidados que nos são indicados e mais, quando chegarmos ao hospital, se for necessário oferecemos o nosso ventilador ao homem que tem mulher e filhos”.

Atividade nas Obras Sociais Viseu (Foto Divulgação)

É possível esperar melhorias nas políticas para idosos depois dessa crise sanitária, que está vitimando sobretudo essa população?

Uma das lições mais positivas desta crise é a crescente sensibilidade social sobre a situação em que vivem muitas pessoas idosas e a necessidade de estudar e implementar respostas e modelos que resolvam o problema e a crise de cuidados que teremos no futuro, caso não coloquemos em prática políticas e ações ajustadas que reforcem e reorientem as atuais políticas públicas. Estas iniciativas devem privilegiar um enfoque baseado em direitos e a valorização da opinião das pessoas idosas. Defendo um forte, programado e contínuo aumento da presença humana juntos dos nossos idosos e a organização de um programa que contemple medidas de consciencialização orientadas para o combate aos estereótipos negativos em relação à idade e às pessoas idosas. Aumentar a humanização do cuidado requer uma reforma do modelo de financiamento, associado a objetivos de qualidade. Ambição e responsabilidade devem equilibrar-se para que as imperativas reformas possam responder melhor às necessidades de hoje e moldem um sistema sustentável que permita fazer face às necessidades futuras. Façamos as nossas escolhas, enquanto comunidade, sequenciemos as nossas aspirações, e definamos o destino do financiamento. Olhar a velhice de frente reflete a dignidade de uma sociedade madura e humanizada. Todos nós queremos ser acompanhados, cuidados e amados.

A discriminação e o preconceito em relação às pessoas mais velhas, em função de um único critério, a sua idade cronológica, não têm merecido a justa e necessária atenção da comunidade.

Utopia pós-pandemia: a construção de uma Cidadania Social, ancorada numa Economia do Cuidado (sugiro a leitura do artigo, da investigadora canadiana Jennifer Nedelsky, Part-Time for All: New Norms for Work and Care, 2017).

Quais as perspectivas para o Alzheimer nos próximos anos? Quais mudanças culturais precisamos vivenciar para um cuidado de qualidade com essa população?

O principal fator de risco para a doença de Alzheimer, bem como para outro tipo de demências é a idade. Com o aumento da esperança média de vida, Portugal é o 5.º país mais envelhecido do mundo, prevê-se o aumento do número de casos de pessoas com demência. Gostava de recordar que quando falamos de demência, devemos ter sempre em consideração o binómio pessoa cuidada e pessoa cuidadora. Num país como Portugal que tem cerca de 10 milhões de habitantes, estima-se que existam cerca de 200 mil pessoa com demência, se lhes somarmos os cuidadores, estamos a falar de um universo de quase meio milhão de habitantes.

Urge o combate ao estigma e preconceito relativamente às demências, algo que contribui para o isolamento e solidão das pessoas com demência e dos seus cuidadores e familiares.  

Temos que dar passos firmes na direção de uma Comunidade de Cuidados e Amiga na Demência.  José Tolentino Mendonça, na sua intervenção, no Dia de Portugal, marcadamente humanista considerou que para “reabilitar o pacto comunitário implica robustecer, entre nós, o pacto intergeracional.”  e também que “A tempestade provocada pelo Covid19 obriga-nos como comunidade, a refletir sobre a situação dos idosos em Portugal e nesta Europa da qual somos parte.” 

Uma das reflexões que considero prioritária centra-se nos modelos de cuidados que queremos para o futuro. Creio que fará sentido priorizar os cuidados no domicílio. Muitos países europeus já apostaram, há muitos anos, noutras respostas sociais e sanitárias. Continuamos a investir milhões de euros na criação de Estruturas Residenciais para Idosos, investimentos encorajados pelas políticas públicas das últimas décadas. Uma estratégia que deve ser reequacionada. Fará sentido investir em grandes equipamentos onde residem dezenas ou mesmo centenas de pessoas idosas? Fará sentido investir milhões no edificado e reduzir custos na qualidade dos cuidados, não apostar na qualificação especializada dos recursos humanos, manifestamente insuficientes, e mal remunerados?

O nosso futuro depende, em boa medida, do futuro dos cuidados. É fundamental fazer do cuidado um direito universal e apostar em políticas do cuidado e da interdependência que coloquem a vida no centro das preocupações. Devem ser respeitadas, protegidas e remuneradas dignamente os profissionais do cuidado. Outra questão a ter em linha de conta é a necessidade de reinventar as respostas sociais que prestam cuidados.   

E com relação à pesquisa sobre Alzheimer. Em que estágio estamos e como precisamos avançar?

Os resultados da pesquisa são pouco conhecidos e mal compreendidos pelos pacientes e suas famílias e há pouco conhecimento sobre como contribuir e colaborar em estudos de pesquisa clínica ou programas de doação de tecidos.

Não há ainda, apesar dos esforços desenvolvidos pelas farmacêuticas, um medicamento eficaz para tratar a doença de Alzheimer. Muitos das investigações realizadas têm-se revelado infrutíferas.

Laboratórios de todo o mundo estão a trabalhar com grande interesse na identificação de novos genes relacionados com a patologia que possam contribuir para esclarecer as suas bases fisiopatológicas e identificar novas terapêuticas. Um dos principais obstáculos à investigação resulta do fato de quando a doença é diagnostica, o cérebro já sofreu danos significativos e irreparáveis. Urge encontrar biomarcadores que permitam detetar a doença em fases mais precoces, quando possam não existir ainda sintomas, momento em que qualquer estratégia terapêutica será mais passível de êxito.

Entendo que devem ser priorizadas as investigações sobre prevenção, redução de riscos, diagnóstico, tratamento e cuidados, abrangendo disciplinas como biomedicina, ciências sociais, saúde pública e pesquisa na aplicação de tecnologias em saúde.

É fulcral para o sucesso das novas investigações a articulação de planos e políticas específicas para apoiar projetos de pesquisa de âmbito social e de saúde, bem como estudar as situações sociais reais e concretas que a doença de Alzheimer gera e que afetam tanto os pacientes e as suas famílias quanto a sociedade como um todo.

Devem ser desenvolvidos esforços para superar o modelo biomédico da doença de Alzheimer, tendo em linha de conta o modelo biopsicossocial proposto pela OMS na sua Classificação Internacional sobre Funcionalidade, Incapacidade e Saúde.

Também a digitalização pode ter um papel fulcral na prevenção, redução de risco, diagnóstico precoce, tratamento, cuidados e suporte relacionados com a doença de Alzheimer.

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