Uma das maiores lembranças que guardo de minha mãe, desde que comecei a me entender por gente, é ela trabalhando e preocupada com a educ...

Palavras de Mãe

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Uma das maiores lembranças que guardo de minha mãe, desde que comecei a me entender por gente, é ela trabalhando e preocupada com a educação dos filhos. Sempre trabalhou. Três expedientes, dois fora e um dentro de casa. Reclamava? Muito, mas não deixava de fazer a sua obrigação e de nos ensinar. Bonita, vaidosa, sempre bem vestida, expressava-se e escrevia bem na forma, incluindo a letra, e no conteúdo. Sempre presente, nunca relaxou, no que diz respeito, principalmente, à nossa educação, doméstica e escolar.

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CC0
Já falei das palavras que aprendi com ela, ainda menino, como "profilaxia". Profilaxia não era só uma palavra que ela adorava, era ação, a própria encarnação de Hygies – daí a palavra higiene, em nossa língua –, a Saúde, filha de Asclépio. Quando descobri, muito tempo depois, nos estudos de língua grega, que profylax (προφύλαξ) era o guardião que ficava à frente, percebi, o quanto a minha mãe era avançada nos seus cuidados. Outras palavras também chegaram cedo para mim, como "assepsia" e "esterilizar". Espanta-me, portanto, que ainda hoje ouça pessoas letradas, alguns da área de saúde, dizendo "esterelizar"... Estas palavras, que cedo aprendi, estavam vinculadas a sua profissão, dupla, ambas diplomadas: parteira e técnica de laboratório.

O vocábulo “esterilizar” está gravado na minha memória, atado ao estojo de aço inoxidável, em que ela guardava as seringas de vidro e as agulhas de metal, numa época em que ainda não se encontravam por aqui as seringas e agulha descartáveis, usadas para as injeções domésticas e para, quando requisitada, atender a vizinhança. Acredito que ela ganhasse algum dinheiro desse modo, embora aplicasse injeções em pessoas amigas, sem cobrar nada. O fato é que ela esterilizava o estojo, as seringas e as agulhas, e sempre dizia da importância do ato, para evitar infecções. Uma palavra, no entanto, que ainda hoje guardo e me espanta pela sua sonoridade é "êmbolo". Admirava-me ver o êmbolo correr por dentro do tubo da seringa, quando ela impulsionava o líquido para o braço de alguém. Ou o barulho que ele fazia, ao sair da seringa.

Zezé Gouveia de Araújo
Tudo isto me veio à lembrança, porque acordei com uma nevralgia na arcada dentária. A dor era proveniente de um molar superior, que a retração da gengiva expusera, e se irradiava pela arcada inferior. Nevralgia era uma das palavras com que ela costumava nos brindar, nas suas explicações sempre claras e exatas. A memória afetiva, caprichosamente, desfiou na minha mente a figura de minha mãe e suas pérolas lexicais.

Hoje, tenho a mais profunda convicção de que o gosto por línguas e pela palavra vem de minha mãe. Não que meu pai não tenha contribuído. Contribuiu muito, com seu amor pela leitura e pelo conhecimento. Mas meu pai era um homem calado. Minha mãe, ao contrário, transbordava no seu palavreado, puxado bem o “s”, como boa pernambucana que era. Quanto mais penso nas suas palavras técnicas e nas afetivas, e ouço e leio o que se diz atualmente, mais sinto o quanto faz falta uma educação doméstica, que encaminhe a criança para a descoberta do mundo e para o seu enfrentamento com decência e dignidade, atenta para a sua responsabilidade diante da vida. O fato de trabalhar duro, em dois expedientes, nunca fez D. Zezé fugir de sua responsabilidade. Por mais que reclamasse, mas sem nunca ter transferido para o outro o que era da sua inteira obrigação.

Deus, na Sua infinita Bondade, deve tê-la consigo, guardada, como a seringa guarda o êmbolo...

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